
Padre Jorge Aquino.
No início do capítulo III do livro de Voltaire (1694-1778) “Tratado sobre a tolerância”, publicado em 1763 para tratar da morte de Jean Calas, injustamente acusado e executado pela morte de seu filho que havia se convertido ao Catolicismo, Voltaire pretende fazer um relato sobre a Reforma Protestante do século XVI, associando-a ao Renascimento Intelectual. Vejamos suas palavras: “Assim que, em consequência da Renascença das letras, as mentes começaram a se tornar um pouco mais esclarecidas e se puseram conjuntamente a queixar-se dos abusos. Todos concordam que essas queixas eram legítimas. O papa Alexandre VI havia comprado publicamente a mitra papal, e seus cinco bastardos partilhavam das vantagens que ela lhe trazia. Seu filho, o cardeal duque de Bórgia, mandou matar, com o consentimento do papa seu pai, as famílias dos Vitelli, dos Urbino, dos Gravina, dos Oliveretto e centenas de outros nobres, a fim de apoderar-se de seus domínios. O papa Júlio II, animado pelo mesmo espírito, excomungou o rei Luís XII e deu seu reino ao primeiro que o tomasse; ele próprio, um capacete na cabeça e uma couraça em volta do torso, submeteu a ferro e fogo uma parte da Itália. O papa Leão X, a fim de financiar seus próprios prazeres, traficava com indulgências como se vendem as vitualhas no mercado público. Os que se rebelaram contra tantos banditismos não tinham, ao menos, qualquer defeito moral. Vamos ver se eles possuíam defeitos políticos que nos pudessem contrariar”.
Observando as palavras de Voltaire, percebemos que a Reforma Protestante do século XVI ocorreram em função e em razão da confluência de uma série de fatores que são enumerados nesse texto pelo ilustre pensador francês. A primeira grande influência que acabou criando um ambiente adequado para que houvesse, não apenas o desejo de uma reforma, mas uma Reforma ampla e profunda na Igreja Cristã Ocidental, foi a “Renascença das letras, as mentes começaram a se tornar um pouco mais esclarecidas e se puseram conjuntamente a queixar-se dos abusos”. Não existe dúvida de que o Renascimento procurava voltar às fontes. E estas “fontes” originais, no que diz respeito ao cristianismo, fazia com que todos buscassem o exemplo dado pelo Cristianismo primitivo. Lá, não existiam papas, nem luxo, nem as condições que deram espaço para a criação de tantos dogmas que afastava o povo da sua própria igreja.
Um segundo elemento que Voltaire cita é a unanimidade das críticas. Ele diz: “Todos concordam que essas queixas eram legítimas”. O Renascimento fez com que a Bíblia em latim fosse deixada de lado e todos se voltassem para ler o texto no original hebraico e grego. O Renascimento fez com que dogmas como o celibato obrigatório se revelasse uma imposição medieval sem sentido, a autoridade absoluta do bispo de Roma fosse vista como uma apropriação indevida que o bispo de Roma fazia procurando ocupar o espaço deixado pela ausência do Imperador romano.
Um terceiro elemento que Voltaire ressalta em sua crítica à postura da igreja romana é sua falta de compostura na esfera moral. De fato ele se refere ao papa Alexandre VI que “havia comprado publicamente a mitra papal”, e fazia referência a seus “cinco bastardos” que partilhavam das vantagens que esse poder lhe trazia. Voltaire faz referência ao “cardeal duque de Bórgia, que mandou matar, com o consentimento do papa, que era seu pai, as famílias dos Vitelli, dos Urbino, dos Gravina, dos Oliveretto e centenas de outros nobres, a fim de apoderar-se de seus domínios”. Em seguida, faz referência ao papa Júlio II que, “animado pelo mesmo espírito, excomungou o rei Luís XII e deu seu reino ao primeiro que o tomasse”. Há, portanto, a clara leitura de que os papas que antecederam à Reforma eram, em sua maioria, um amontoado de assassinos, déspotas e adúlteros. Seus interesses eram apenas ligados a esse mundo, e não ao Reino dos céus.
Por fim, em quarto lugar, Voltaire faz referência ao papa Leão X, que “a fim de financiar seus próprios prazeres, traficava com indulgências como se vendem as vitualhas no mercado público”. É surpreendente como Voltaire é consciente dos erros cometidos pelo papa Leão X. O que esse pontífice desejava era (1) “financiar seus próprios prazeres”, e (2) traficar “com indulgências como se vendem as vitualhas no mercado público”. Aqui vemos uma clara referência à prática católico-romana da venda do perdão (indulgências), o que foi frontalmente atacada por todos os reformadores.
Assim, as causas da Reforma, conforme esse parágrafo da obra de Voltaire, parecem ser sobejamente conhecidas pelos intelectuais de seu tempo. Em razão disso, Voltaire faz referências à causas intelectuais, morais e teológicas para que a Reforma ocorresse.
Comments