
Reverendo Jorge Aquino.
4º Mandamento: “Lembra-te do dia de sábado, para santificá-lo. Trabalharás seis dias e neles farás todos os teus trabalhos, mas o sétimo dia é o sábado dedicado ao Senhor, o teu Deus. Nesse dia não farás trabalho algum, nem tu, nem teus filhos ou filhas, nem teus servos ou servas, nem teus animais, nem os estrangeiros que morarem em tuas cidades. Pois em seis dias o Senhor fez os céus e a terra, o mar e tudo o que neles existe, mas no sétimo dia descansou. Portanto, o Senhor abençoou o sétimo dia e o santificou” (Êxodo 20:8-11).
Antes de fazer qualquer espécie de comentário, creio ser imprescindível dizer que não existe qualquer outro Mandamento semelhante a esse em nenhuma das religiões do antigo Oriente Próximo. Somente entre Israel um dia dentre os demais é considerado “santo” e deve ser dedicado à adoração. Assim, diferentemente de outros mandamentos que dizem respeito ao relacionamento entre os membros da sociedade e mesmo aos que se referiam à relação com os deuses, não há paralelo algum em nenhum outro lugar sobre um dia específico para o descanso e para a adoração à Deus. Um outro detalhe interessante é que, neste quarto, os Mandamentos deixam de se apresentar de forma negativa e passam a se expressar de forma positiva. Ou seja, eles deixam de dizer “não façam isso” para afirmar positivamente o que deve ser feito. Segundo R. Alan Cole, “Esta mudança de um mandamento negativo para outro positivo não é desconhecida em códigos antigos” (COLE, 1986, p. 151). Ou seja, era comum em outras culturas contemporâneas do povo de Israel. Há, ainda uma terceira informação que precisamos registrar, qual seja, os Israelitas não davam nomes aos dias de sua semana, como nós fazemos. Assim, eles tinham apenas do primeiro até o sétimo dia, que é chamado de “dia do descanso”. Ocorre que no hebraico, o mandamento começa dizendo “Lembra-te do dia de descanso para o santificar” (Êxodo 20:8). E apalavra usada aqui para se referir ao dia do “descanso” é “shabat” (em hebraico: הַשַּׁבָּת). Por isso devemos sempre lembrar que “shabat” não significa “sétimo dia”, mas “descanso”. E é aqui que surge a confusão, uma vez que na nossa semana, em português, nós temos um dia chamado sábado. É preciso atentar que nossa atenção não deve se voltar para a semana que temos nos nosso país, mas para a semana na qual os Israelitas viviam, pois somente assim, teremos uma visão da realidade deles. Para eles, o último dia da semana era o dia do “shabat”, ou seja, o dia do descanso. A noção de uma semana com sete dias era comum, por exemplo, tanto na Babilônia quanto na Assíria. Eles, inclusive utilizavam a palavras semelhantes para se referirem ao sétimo dia, que também seria de descanso. Conforme já vimos, de acordo com as Escrituras (Êxodo 20:8) esse dia era o dia de “descanso”. Muito embora tenhamos em nosso calendário um dia chamado “sábado”, não devemos inferir que ele tem o mesmo sentido judaico. Veja bem, a grande questão é que, para Deus, o mandamento é claro: “seis dias trabalharás e farás toda a tua obra, mas o sétimo dia é o Shabat (descanso) do Senhor teu Deus; nele não farás nenhuma obra” (Êxodo 20:9,10a). O mandamento, portanto, tanto exige que trabalhemos por seis dias, quanto exige que descansemos no sétimo dia.
Outro aspecto de extrema significância surge, quando atentamos para as duas palavras que acompanham este Mandamento nos dois textos em que eles são registrados: o primeiro, que vem do Êxodo 20:8 é “lembra-te”, “zakhar” (רזכו) do “dia de descanso”; e o segundo, que nos vem do Deuteronômio 5:12 que é “guarda”, “shama” (רשמו) “como te ordenou o Senhor teu Deus”. Estas duas palavras nos convidam de forma forte e intensa para que observemos e conservemos toda a vontade de Deus. Lembrar dela é nossa obrigação constante, e guardar seus mandamentos é um compromisso que temos para toda a nossa vida.
Agora, que nos voltamos para o texto do quarto Mandamento, em si, é significativo dizer que não há questionamentos sobre a importância que o sétimo dia tinha para os israelitas. Segundo as Escrituras, foi no sétimo dia que Deus descansou de sua criação, tornando-se assim, um modelo para todos o seu povo. Mesmo os escravos dos israelitas deveriam cessar o trabalho neste dia santo. E, durante o período do Novo Testamento, podemos ver muito conflito envolvendo Jesus e os judeus por causa da guarda do sábado. Diante dessa realidade, é imperativo que reflitamos sobre três relevantes temas. Em primeiro lugar, precisamos compreender qual o aspecto positivo deste quarto Mandamento para cada um de nós, ou seja, qual deve ser nossa grande obrigação diante dele? Não parece ser difícil perceber que nosso grande comprometimento revelado neste quarto comando, tem a ver com o compromisso que temos com o trabalho e com o compromisso que temos com a guarda de um dia específico para o descanso e a adoração. Em outras palavras, nossa vida não deve ser vivida tão somente em função de nossos compromissos laborais, ou seja, nossos empregos. Dizer isso pode até soar estranho, uma vez que nossa sociedade é tão voltada para o trabalho e para o sucesso nessa esfera, que até mesmo criamos uma palavra para designar àquelas pessoas que são adoecidas em razão de seu envolvimento com o trabalho. Elas são chamadas de workaholic, ou seja, são viciadas ou vivem compulsivamente para o trabalho todos os momentos de suas vidas. Neste mandamento aprendemos que, muito embora a maior parte da vida de alguém naquela ou na nossa comunidade fosse gasta em seu trabalho, também era da vontade de Deus que seu povo guardasse um dia na semana, um momento em sua vida, para o descanso, para o lazer e para dedicar-se ao culto ao seu Senhor. Este aspecto da vida era tão necessário e importante que esse dia deveria ser visto como um dia santo (em hebraico: שדק), ou seja, “separado”. Perceba que que esta é a mesma palavra usada para falar da santidade de Deus! Eis aqui uma outra questão importante a ser debatida. Qual seria a razão da santidade do sábado? De acordo com Craigie, “A santidade do dia relaciona-se com a razão do seu estabelecimento; são oferecidas duas razões e, embora pareçam diferentes à primeira vista, há um tema comum que as vincula. Na primeira versão (Êx 20:11), o sábado deve ser observado em comemoração da criação; Deus criou o mundo em seis dias e descansou no sétimo. Na segunda versão (Dt 5:15), o sábado deve ser observado em comemoração ao Êxodo do Egito. O tema que liga as duas versões é a criação; Deus criou não somente o mundo, como também ‘criou’ Seu povo, Israel, ao redimi-lo da escravidão no Egito” (CRAIGIE, In ELWELL, Vol 1, 1988, p. 455). Desta forma, o tema da criação – tanto do universo quanto de seu povo - foi a razão para que Israel santificasse o dia de sábado.
Uma outra questão que sempre surge quando se debate esse tema tem a ver com a questão do princípio pars pro toto. Com esse princípio, entregamos a parte para representar o todo. Em outras palavras, por exemplo, quando entregamos as primícias dos frutos que colhemos ao Senhor, estamos, na verdade, dedicando toda a nossa colheita. Assim, quando o homem deixa de “exercer esforços naturais nesse dia, o homem efetivamente reconhecia o senhorio divino. Assim sendo, todo o tempo, pertence a Deus, bem como toda a criação. (...) O homem ‘santificava’ uma parte da semana, e, ao fazê-lo, reconhecia que, toda ela era do Senhor” (HONEYCUTT JR. In CLIFTON, Vol. 1, 1988, p. 489). Em outras palavras, ao dedicar uma parte da semana e uma parte da criação à Deus, ele estava reconhecendo que Deus era Senhor de todos os dias e de todas as coisas. Desta forma, descansamos para nos identificar com o Deus que também descansou da criação e também para estar ao seu lado ou em sua companhia, ao adorá-lo.
Conforme já nos referimos acima, é preciso que tenhamos um dia de descanso durante a semana. Mas, como deve ser nosso relacionamento com esse dia de descanso? Para responder a essa questão, precisamos ver como Jesus se relacionava com o sábado. Esse entendimento nos faz perceber que durante o chamado Período Persa, toda a atenção estava voltada para a observância do dia do sábado. No entanto, no chamado Período Intertestamentário, “foi surgindo gradualmente uma alteração no que diz respeito à compreensão acerca do propósito do sábado. Nas sinagogas a lei era estudada no sábado. Paulatinamente a tradição oral foi se desenvolvendo entre os judeus, e a atenção passou a focalizar-se na observância de minúcias. Dois tratados da Mishnah, Shabbath e ‘Erubin, são devotados à consideração de como o sábado devia ser detalhadamente observado. Foi contra essa sobrecarga aos mandamentos de Deus, pelas tradições humanas, que nosso Senhor Se insurgiu. Suas observações não eram dirigidas contra a instituição do sábado como tal, nem contra o ensinamento do Antigo Testamento. Mas Ele Se opunha aos fariseus, que deixavam a Palavra de Deus sem efeito por causa de suas pesadíssimas tradições orais” (E.J. YOUNG, Apud SHEDD, In REIFLER, 2009, p. 90, n. 1). Foi nesse contexto que o comportamento de Jesus despertava tanto estranhamento entre os judeus.
Conforme assegura o Catecismo jovem da Igreja Católica, “O fato de Jesus ter curado no Sábado e ter interpretado o Mandamento do Sábado de uma forma misericordiosa colocou os judeus, Seus contemporâneos, perante duas hipóteses: ou Jesus é o Messias enviado por Deus e, portanto, o ‘Senhor do Sábado’ (Mc 2:28) – ou Ele é apenas um homem simples, cujo trato com o Sábado constitui um pecado contra a Lei” (YOUCAT-Brasil, 2011, p. 200). O versículo seguinte, nos mostra que no cerne do pensamento de Jesus acerca do Sábado, havia uma realidade inafastável, segundo a qual, “O Sábado foi feito para o homem e não o homem para o Sábado. Assim, o Filho do homem até do sábado é Senhor” (Marcos 2:27,28). Temos aqui duas informações fundamentais. Primeiro, que o homem é mais importante do que o sábado, que, inclusive, foi criado para o bem do homem. Isso significa que, sempre em que o bem-estar do homem se contrapõe à observância ou à guarda do Dia de Descanso, o ser humano terá a primazia. A segunda informação é que Jesus é o “Senhor do Sábado”, ou seja, nós não podemos absolutizar um dia como tendo mais relevância do que o próprio Senhor que criou o dia, pois isso também seria uma forma de idolatria. Portanto as pessoas e o Senhor, são mais importantes do que um mero dia.
Outro tema que precisa ser compreendido e enfrentado é a razão pela qual os cristãos trocaram o Sétimo dia (Sábado) pelo Domingo – do latim “Dominus”, ou “dia do Senhor”. Conforme afirma Craigie, “Para a maior parte da cristandade, o conceito do ‘sábado’ [literalmente, ‘dia de descanso’] foi mudado do sétimo dia da semana para o primeiro, que é o domingo. A mudança relaciona-se com uma alteração no pensamento cristão, identificada na ressurreição de Jesus Cristo, no domingo. A mudança é apropriada, porque os cristãos agora refletem em cada domingo, ou ‘dia de descanso’, num terceiro ato da criação divina, a ‘nova criação’ estabelecida na ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos” (CRAIGIE, In ELWELL, Vol 1, 1988, p. 455).
Em segundo lugar, precisamos compreender claramente tudo aquilo que nos é proibido por este Mandamento. Assim, quando lemos o quarto Mandamento, verificamos que há, implícitamente nele, algumas claras proibições. A primeira delas é a proibição de trabalhar. O texto bíblico é extremamente claro: “seis dias trabalharás e farás toda a tua obra” (Êxodo 20:9). Assim, antes de mais nada não podemos nos esquecer de que temos a obrigação de trabalhar e de sustentar nossa família. O trabalho é tão importante para o cristão que Paulo chega a dizer: “Se alguém não quiser trabalhar, também não coma” (II Tessalonicenses 3:10). Portanto, é preciso que nos dediquemos com afinco e denodo ao nosso trabalho. Quando lemos o quarto Mandamento, verificamos outrossim, que nele há uma outra clara proibição, qual seja, a de esquecer de nosso dia de descanso. O texto sagrado diz: “Mas o sétimo dia é o sábado do Senhor , teu Deus; não farás nenhum trabalho, nem tu, nem o teu filho, nem a tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu animal, nem o forasteiro das tuas portas para dentro” (Êxodo 20:10). Assim, a vontade de Deus é que, no dia adequado, cessemos todo o nosso trabalho, seja ele físico, mental ou espiritual, para que nos reunamos com nossa família e amigos, com a finalidade de descansar, de repousar e de aproveitar nosso lazer de forma plena. Mas não somente isso, este é também o momento que temos para adorar a Deus e de servir ao próximo por meio de nossas boas obras, motivados pelo amor.
Eis a razão pela qual não podemos nos esquecer de santificar, tanto o trabalho quanto o dia de descanso. Desta forma, nos é proibido esquecer que nosso trabalho é um dom de Deus para prover e sustentar a nossa família. Não podemos, portanto, esquecer de trabalhar e de abandonar a preguiça e, com diligência, seguir com alegria nossa vocação laboral. Um detalhe final e importante que advém desse texto, é que nós estamos proibidos de permitir que os que dependem de nós, também trabalhe neste dia. É claro que dentro deste contexto social, a referência é claramente sobre os escravos. No entanto, se aplicarmos esse ordenamento para os dias de hoje, ele bem que poderia incluir aqueles que trabalham para nós.
Finalmente, em terceiro lugar, precisamos compreender o que, neste Mandamento, precisa ser destacado e ensinado às pessoas que nos cercam. Para buscar atender a esse terceiro propósito recorreremos, primeiro à figura singular de Martinho Lutero. Sobre este, que Lutero entendia ser o terceiro Mandamento, o reformador escreveu em seu Catecismo Menor: “Devemos temer e amar a Deus, de maneira que não desprezemos a pregação e a sua palavra, porém a consideremos santa, gostemos de a ouvir e estudar” (LUTERO, 1983, p. 367). Assim, o Dia do Senhor deveria ser utilizado, primordialmente, em atividades de adoração e aprendizado da vontade de Deus. Parece-nos claro, no entanto que, vivendo em uma sociedade na qual as pessoas viviam sua religiosidade de uma forma tão vazia, descuidada e frouxa, havia um sentido em destacar a proeminência do aspecto cúltico sobre o da cessação do trabalho. Mas ele não estava só em apontar para a importância do aspecto didático do quarto Mandamento. Na verdade, este Mandamento também é objeto da reflexão oriunda da questão 103 do Catecismo de Heidelberg, que pergunta sobre qual a exigência de Deus exposta no quarto mandamento. Lá, encontramos a seguinte resposta: “Primeiro, que o ministério do evangelho e as escolas cristãs sejam mantidas e que eu, especialmente no dia de descanso, seja diligente em ir à igreja de Deus para ouvir a Palavra de Deus, participar dos sacramentos, para invocar publicamente ao Senhor e para praticar a caridade cristã para com os necessitados. Segundo, para que em todos os dias da minha vida eu cesse as minhas más obras, deixe o Senhor operar em mim por Seu Espírito Santo, e assim começar nesta vida o descanso eterno” (HEIDELBERG, 2023, questão 103). Assim, fica claro que no Dia do Senhor nossa dedicação deveria se voltar para “ir à igreja de Deus”, “ouvir a Palavra de Deus”, “participar dos sacramentos”, “invocar publicamente ao Senhor” e para “praticar a caridade”, sem esquecer, é claro de ver em tudo isso uma forma de “começar nesta vida o descanso eterno”. Aqui tanto verificamos tanto o aspecto didático do dia de descanso, como também o aspecto cúltico e o diaconal ou do serviço ao próximo, bem assim o do descanso propriamente dito.
No entanto, quando pensamos sobre quais seriam as grandes lições que deveríamos repassar aos nossos contemporâneos, seguramente em Calvino obteremos os três grandes elementos que precisamos relembrar ainda hoje aos nossos contemporâneos. Vejamos suas palavras: “Em primeiro lugar, o Legislador celeste quiz explicar ao povo de Israel, acerca do repouso do sétimo dia, o repouso espiritual com o qual os fiéis devem cessar de seus trabalhos para deixar que Deus trabalhe neles. A segunda causa é que Deus quiz que houvesse um dia determinado, no qual se reunissem para ouvir a Lei e se servir das cerimônias; ou ao menos, que se dedicassem a meditar em suas obras, para que com essa lembrança exercitassem a piedade no que diz respeito à glória de Deus. Em terceiro lugar, quis dar um dia de descanso aos servos e a todos aqueles que vivem submetidos a outros, para que tivessem algum repouso em seu trabalho” (CALVINO, 1981, II.viii, 28). Assim, em Calvino, encontramos os mesmos elementos que são vistos no Catecismo de Heidelberg com uma elaboração teológica mais desenvolvida.
Encerro estas breves palavras lembrando que, foi durante a Modernidade que a Reforma nos fez perceber a necessidade e a importância da trabalho, bem como a importância de reformar a tradição eclesiástica. Na verdade, tanto Lutero, quanto Calvino e o Catecismo de Heidelberg, dá muita ênfase à importância de termos um tempo para a adoração ao Senhor, no nosso dia de descanso. No entanto, uma vez que no mundo moderno o trabalho é tão valorizado, é imprescindível que a Igreja tenha muito cuidado com sua ênfase sobre a importância das atividades dominicais, para que elas não sejam óbices ou empecilhos para que as famílias tenham mais tempo para si. Digo isso porque verifico que em muitas igrejas, as atividades do domingo começam com a Escola Dominical às 9 da manhã, entram pelo ensaio do coral às 11, envolvem encontros de jovens durante à tarde ou uma celebração própria para crianças, que antecede a celebração principal às 19 horas. Já tive a oportunidade de conversar com pais que sentiam uma certa dificuldade para poder encontrar com seus filhos durante o domingo, em razão de suas atividades com a igreja. Nesse momento, a igreja prejudica mais do que ajuda. E isso precisa ser dito e relembrado sempre.
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