UMA ESPIRITUALIDADE MALTRAPILHA
- Reverendo Padre Jorge Aquino ✝
- 14 de set. de 2021
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Reverendo Jorge Aquino
Particularmente, eu que convivo com a igreja brasileira a mais de quarenta anos, não tenho a menor dúvida de que muita coisa mudou na forma de ser dos cristãos, nas músicas religiosas que ouvimos nas celebrações e, muito especialmente, nas ênfases e nos temas dos discursos religiosos pregados dominicalmente. Em outras palavras, tanto a forma quanto o conteúdo mudaram. Toda essa mudança, quer queiramos ou não, é o resultado de uma adaptação que a igreja fez aos novos tempos e à nova realidade advinda desde a queda do muro de Berlim e o esfacelamento do comunismo. Tudo isso acabou por produzir uma guinada espiritual em busca de alvos e trazendo consigo um comportamento e um discurso estranhos ao que se vivia até a década de oitenta, em nosso país.
Mas, como aqui – lamentavelmente -, nós apenas nos apegamos ao que já está gasto e amplamente conhecido nos Estados Unidos, a igreja brasileira se aproximou como nunca, do discurso da teologia da prosperidade e operou uma guinada espiritual que resultou em inúmeros cismas e no surgimento de personalidades que assumiram a liderança nessas novas igrejas, trazendo para sí, até mesmo, os títulos de bispos e de apóstolos. Hoje, essas novas igrejas mal conhecem o Evangelho da graça! São grandes conglomerados religiosos liderados por alguém com uma projeção nacional e uma personalidade dominadora. O objetivo comum? Poder, dominação, dinheiro, tudo isso, revestido de uma linguagem religiosa que seja capaz de camuflar os verdadeiros objetivos e transformá-los em bênçãos ou em promessas que Deus nos fez.
Uma das grandes vantagens que recebi da pandemia que nos atingiu entre 2020 e 2021, foi o período em que me mantive em casa e que pude por em dia minha leitura. Neste período lí todos os livros que pude achar de um pregador americano chamado Brennan Manning – já lí sete até esse momento. O surpreendente, é que nele eu não achei nada do que já não tinha visto, por exemplo, em Richard Foster ou em Henri Nouwen. Mas nele, eu vi uma forma mais forte, e até mais agressiva, de expor nossos grandes problemas. E acredito que isso foi o resultado do fato de que este autor precisou lutar, durante toda a sua vida, contra o alcoolismo. Ele, talvez mais do que muitos dos escritores que conhecemos, conheceu a glória e a sarjeta, o púlpito das grandes igrejas e as casas de recuperação, a extrema tristeza de ter cedido mais uma vez ao poder do álcool e a alegria de ser chamado por Deus para transformar e edificar vidas. E, convenhamos, não estamos acostumados a aceitar que nossos líderes tenham defeitos. Mas, acredite, eles têm. Pode não ser o álcool, mas talvez seja algum outro pecado de estimação. Foster, por exemplo, comentando um dos livros de Manning, chega a dizer que “Este livro é de fato um ataque frontal a todos os pecados egocêntricos de nossos dias: autoindulgência, vontade própria, serviço em causa própria, louvor dirigido a sí mesmo, autogratificação, justiça própria, autossuficiência e outros do mesmo gênero” (FOSTER, In MANNING, 2009, p. 12).
E pensando em uma nova espiritualidade, que na realidade não é outra senão o velho Evangelho da cruz, pregado desde o início do cristianismo, resolvi fazer apenas algumas observações acerca de alguns parágrafos retirados de um dos livros de Manning, no qual ele nos descreve – a nós que pretendemos ser verdadeiramente cristãos -, como maltrapilhos. Neste livro – chamado de Confiança cega -, encontramos um aprofundamento daquele tema que é tratado no primeiro texto dele, traduzido para o português em 2005, O evangelho maltrapilho.
A primeira questão que Manning quer tratar de forma clara tem a ver com a pergunta: quem são os maltrapilhos? E sua resposta é bem clara: “A obscura assembléia de pecadores salvos, que sabem que são inexpressivos, têm consciência de seu quebrantamento e da sua incapacidade diante de Deus, pecadores que se fiam na misericórdia divina. Atônitos diante do extravagante amor de Deus, não dependem de sucesso, fama, riqueza nem poder para autenticar o valor que eles têm” (MANNING, 2009, p. 9). Estas pessoas podem ser encontradas em todos os lugares e circunstâncias. Eles então entre os poderosos e os fracos, entre os instruídos e analfabetos, entre os instruídos e os analfabetos ou entre os que habitam o circo e o santuário. No entanto, o que existe de comum entre todos os maltrapilhos, esfarrapados e rotos, é que todos eles (1) sabem que são pecadores inexpressivos, mas salvos; (2) todos eles têm consciência da sua incapacidade diante de Deus, confiando apenas na misericórdia divina, (3) todos eles se surpreendem com o grande e insondável amor de Deus por eles, e (4) todos eles estão absolutamente cientes que que seu valor para Deus não pode ser medido em razão do sucesso, fama, riqueza ou poder que têm. Muito ao revés, eles apenas confiam no perdão irreversível de Deus e em sua absoluta misericórdia. É somente a maravilhosa graça de Deus que os mantêm de pé. E se caírem, será essa mesma graça, que os levantará. Existem, portanto, no coração dos maltrapilhos, apenas duas grandes verdades: todos nós somos grandes pecadores e, Jesus Cristo é nosso grande salvador.
Uma segunda marca do cristão maltrapilho se encontra no fato de que, depois de tropeçar e cair, “o maltrapilho não afunda em desânimo nem em autocondenação sem fim; ele logo se arrepende, oferece ao Senhor aquele momento de quebrantamento e renova sua confiança no Messias dos pecadores” (MANNING, 2009, p. 10). O cristão maltrapilho sabe que Jesus se relaciona com os quebrantados que se lembram de amar. Por isso, Deus é apresentado por Manning como o grande Abba (Pai) que, mesmo sentado em sua cadeira, olhando para a estrada empoeirada, reconhece que seu filho – aquele mesmo que pediu toda a sua parte na herança e a gastou dissolutamente -, está voltando para casa cabisbaixo e arrependido. E o que faz o Pai? Se levante, corre até seu filho, o abraça, põe um anel em seu dedo e faz uma festa. Pois aquele que estava morto reviveu; o que se estava perdido, foi achado. Este é o Deus que acolhe e abraça o pecador arrependido. Ou, nas palavras de uma antiga canção religiosa: “Jesus não esquece o pecador que padece, mas não tem alegria em pecar”. O cristão maltrapilho conhece o sabor amargo do fracasso, mas também conhece a alegria do perdão que inunda a alma. Por isso, ainda que caia, ele não permanece no pecado, antes se volta como a ovelha que caiu no lamaçal do erro. A relação desta verdade com a justificação é clara. Por isso Manning afirma que “A justificação pela graça mediante a fé significa que sou aceito por Deus como sou. Quando minha mente é iluminada e meu coração penetrado por essa verdade, posso aceitar-me como sou. A autoaceitação genuína não deriva do poder do pensamento positivo, de jogos mentais ou da psicologia popular. É operação da fé no Deus da graça” (MANNING, 2005, p. 48).
Uma terceira marca característica dos cristãos maltrapilhos, é que eles “se recusam a entregar o controle da vida a regras e regulamentos. Sabem que a religiosidade desgastada dos legalistas, apanhados no narcisimo fatal do perfeccionismo espiritual, torna obscura a face do Deus de Jesus. Eles não vendem a alma em troca da falsa segurança de uma religiosidade cheia de medos que deixa aleijado o espírito humano” (MANNING, 2009, p. 10). Os cristãos maltrapilhos estão cansados das regras que criam cristãos de várias qualidades e hierarquias diferentes. Eles preferem entregar o controle de suas vidas ao Deus que nos ama e a esse amor que deve dirigir nosso coração e nossas decisões cotidianas. Os maltrapilhos têm profundas diferenças com os santarrões que vivem apontando o pecado na vida dos outros (fariseus), assim como contra os que conhecem a bíblia decorada e são incapazes de retirar a trave de seus próprios olhos, antes de apontar o argueiro nos olhos dos outros (escribas). Na verdade, para os cristãos maltrapilhos, o que mais se encontra nos dias de hoje, são pessoas que andam em carros cheios de delcalques onde se lê: “Esse foi Deus que me deu”, mas vivem uma vida inaltêntica, atuando como verdadeiros atores em um palco. Não se deve esquecer que a palavra hipócrita vem do grego e significa, ator. Para o maltrapilho, devemos andar na luz sempre, e nunca na escuridão cômoda da hipocrisia. Eis a razão pela qual muitos cristãos maltrapilhos têm dificuldades com a religião instituída.
Se você compreendeu os três elementos que foram colocados aqui, saiba que existe um caminho para você, caso também queira se tornar um maltrapilho. Mas esse caminho, inevitavelmente, passa pela lenta, mas constante e miraculosa transformação da autorrejeição para a autoaceitação que se fundamenta no fato de que Jesus nos aceita e nos ama. Esta é a confiança que todo cristão maltrapilho precisa desenvolver. Manning chama isso de “segunda conversão” e, de fato, se estamos falando de uma mudança de vida que aponta para uma confiança radical e absoluta em Deus. Somente algo assim pode ser chamado, de fato, de uma conversão. Para Foster (FOSTER, In MANNING, 2009, p. 12), a conversão implica tanto em um afastamento como em uma aproximação. Em suas palavras: “Ao nos aproximarmos de Deus estamos aprendendo a nos afastar do ‘mundo, da carne e do Diabo’. Também estamos nos afastando de nós mesmos como centro e razão do nosso viver” e passamos a perceber que é Deus – e não nós - que é o centro e a razão de todas as coisas.
Referências Bibliográficas:
MANNING, Brennan. O evangelho maltrapilho. São Paulo: Mundo Cristão, 2005
MANNING, Brennan. Confiança cega. São Paulo: Mundo Cristão, 2009

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