
Padre Jorge Aquino.
O termo “revisionismo” tem sido muito usado em nossa sociedade. Na verdade, o que vemos é a existência de um conflito entre uma forma já tradicional e consagrada de ver certas verdades ou fatos, e as novas possibilidades de ver estas mesmas verdades ou fatos. Assim, o revisionismo diz respeito a uma atitude própria de quem discorda de uma doutrina ou pretende levantar um debate em torno dela.
O “revisionismo”, em primeiro lugar, pode ser um problema. Um exemplo muito comum dessa forma de “revisionismo” é o chamado “revisionismo” histórico. Esse movimento, por exemplo, vem tentando desde a década de 1950 fazer uma releitura do que realmente ocorreu na Segunda Guerra mundial e negando a existência do Holocausto. Outra forma pejorativa de “revisionismo” é o científico, que parece ser muito comum entre nós hoje. Teses como a da “terra plana” parece atrair muita gente, apesar do que a ciência já demonstrou. Como conclusão podemos dizer que o “revisionismo” parece se estender sobre todas as formas de pensamento, e isso inclui a teologia.
Em segundo lugar, o “revisionismo” pode ser algo desconhecido. Por isso é importante saber a história dessa expressão para compreendermos seu sentido. Falando de forma estrita, a palavra “revisionismo” foi utilizada para criticas as posturas defendidas por Eduard Bernstein que defendia uma reforma do marxismo, no sentido de manter as instituições democráticas de forma pacífica, evolutiva e legal. Para muitos marxistas conservadores, a proposta de Bernstein era um revisionismo. Essa nova forma de ver o marxismo (também chamada de neo-marxismo) é vista como uma postura “revisionista”.
Em função dessa experiência, chegamos, em terceiro lugar, à leitura de que o “revisionismo” pode ser visto como algo negativo. Desta forma, afirma Mora, a palavra “‘revisionismo’ passou, desde então, a ser frequentemente empregada como rótulo condenatório de posições consideradas heterodoxas. ‘Revisionismo’ foi muitas vezes sinônimo de ‘desviacionismo’. De um ponto de vista ortodoxo, uma posição revisionista é uma posição errônea, quer ‘objetivamente’, quer ‘subjetivamente’” (MORA, 1996, p. 631). Assim sendo, podemos dizer, de uma forma mais aberta, que o “revisionismo” não tem cor ideológica ou postura política e, apesar disso, sempre é visto como algo ruim. Isso ocorre apesar de não ser de direita ou de esquerda, mas porque representa uma mudança, alteração ou modificação a ser feita em uma determinada crença ou forma de ver o mundo, portanto, uma postura desviante e heterodoxa.
Um exemplo disso pode ser visto entre os anglicanos mais conservadores, que costumam rotular aqueles anglicanos mais abertos como “revisionistas”. O exemplo mais comum disso pode ser visto nas falas daqueles que entendem que na Comunhão Anglicana, o “revisionismo” ocorre na revisão e modificação dos ensinamentos tradicionais da igreja sobre a não aceitação de pessoas homoafetivas na vida e ministério da igreja. Os “revisionistas”, ao revés, são associados àqueles que entendem que as pessoas homoafetivas devem ser acolhidos na Igreja sem qualquer forma de discriminação, inclusive reconhecendo sua união matrimonial ou defendendo sua ordenação ao ministério.
Para os anglicanos mais conservadores, a postura oficial da igreja está registrada na Resolução 1.10 de Lambeth-88, que trata da Sexualidade Humana e que afirma que o “ensino da Escritura, defende a fidelidade no casamento entre um homem e uma mulher em união vitalícia” (...), “rejeita a prática homossexual como incompatível com as Escrituras” e “não pode aconselhar a legitimação ou benção de uniões do mesmo sexo nem ordenar os envolvidos em uniões do mesmo sexo”. Até a ultima Conferência de Lambeth –realizada em 2022 -, esse tema ainda foi uma questão motivadora de bastante conflito.
Em quarto lugar, parece que esta questão específica fez surgir uma espécie de “revisionismo” seletivo dentro do anglicanismo. assim, muito embora a Resolução 1.10 de Lambeth-88 represente a postura conservadora, quando participei de um encontro da EFAC em Limuro/Quênia, conheci pessoalmente um bispo nigeriano conservador que conversou conosco sobre sua realidade de bispo casado com cinco esposas. Ademais, uma parte significativa dos sacerdotes que se dizem conservadores e que condenam o “revisionismo”, são divorciados e casados novamente. Ora, quando lemos a tão invocada Resolução 1.10 de Lambeth-88, percebemos que ela não só condena o matrimônio e a ordenação de pessoas homoafetivas, mas também afirma que o casamento é monogâmico e indissolúvel. Meu estranhamento reside no fato de que muitos conservadores somente adjetivam de “revisionistas” os que defendem os direitos das pessoas homoafetivas, sem nada dizer sobre os que são divorciados – e casados em segundas núpcias - e os que são polígamos. Essa postura é claramente incoerente e/ou desonesta. Parece-me claro que a acusação de “revisionista” só recai sobre os que defendem os direitos das pessoas homoafetivas e não sobre os divorciados que se casaram novamente nem sobre os que vivem na poligamia.
O grande problema é que os “revisionistas” passaram a ser considerados quase como criminosos ou marginais. Afinal, o que é a revisão senão a revisitação, e o repensar acerca de determinado tema? Será que podemos dizer que já chegamos à verdade última acerca de todos os assuntos, inclusive sobre os que ainda não surgiram?
Outro assunto a ser lembrado é que o grande problema que mobiliza nossos irmãos conservadores, diz respeito apenas à pauta moral e comportamental. Parte-se do princípio de que existe um modelo único, absoluto e universal para a moral humana, quando, na verdade, a moral é relativa e condicionada pelo tempo e pelo espaço. O mesmo não se pode dizer da ética.
Um outro aspecto que os anglicanos mais conservadores esquecem é que o anglicanismo possui uma forte tradição protestante herdada da Reforma do século XVI. Dessa forma, ele sempre conviveu com a tese segundo a qual a igreja reformada está sempre se reformando: “ecclesia reformata, semper reformanda”. Para o pensador Paul Tillich, existe o chamado “princípio protestante”, que para ele, “contém o protesto divino e humano contra qualquer reivindicação absoluta feita por realidades relativas, incluindo mesmo qualquer igreja protestante. O princípio protestante é o juiz de qualquer realidade religiosa... Guarda-nos contra as tentativas do finito e do condicional de usurpar o lugar do incondicional no pensamento e na ação” (TILLICH, 1992, p. 183). Assim, por estar sempre aberta à reforma (e à revisão) não se encontra no anglicanismo qualquer instância eclesial infalível, qualquer dogma inquestionável ou qualquer realidade absoluta. Ao reconhecer a possibilidade – e até a inevitabilidade – das mudanças, nenhum anglicano deveria se assustar em “rever”, “revisitar”, “repensar” sua credenda ou sua agenda frente às novas demandas que o mundo hodierno levanta. Por isso, ninguém deveria ver o “revisionismo” como algo essencialmente ruim e anormal, mas como uma possibilidade e uma oportunidade que as mudanças paradigmáticas nos dão para repensarmos e relermos a doutrina e a prática da igreja de uma forma mais relevante para o mundo de hoje.
Referências bibliográficas:
MORA, José Ferrater. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1996
TILLICH, Paul. A era protestante. São Paulo: S. Bernardo do Campo, Ciências da Religião, 1992.
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