QUANDO O ANGLICANISMO AGE COMO UMA SEITA
- Reverendo Padre Jorge Aquino ✝
- 21 de dez. de 2020
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Reverendo Padre Jorge Aquino.
Estudar o fenômeno religioso a partir de uma perspectiva científica implica, certamente, em trilhar um caminho extremamente rico, em razão não apenas das inúmeras formatações assumidas por este fenômeno, mas também em função das possibilidades de abordagens que podem ser feitas neste estudo.
O ilustre pesquisador do fenômeno religioso, Ernest Troeltsch – por exemplo -, já dizia que de uma perspectiva histórica, existia dois tipos sociológicos básicos no fenômeno organizacional cristão: as Igrejas instituídas e as seitas. Segundo o pensamento de Filho acerca de Troeltsch (1992, p. 32), enquanto as seitas surgem em oposição à ordem estabelecida, a Igreja “é uma instituição que assegura sua existência pela associação às classes sociais dominantes”. Claro que não estamos nos referindo apenas a questões econômicas, mas principalmente, a aspectos da estrutura social. Por isso, continua Filho: “Com isso, Troeltsch não quer dizer que o sectarismo seja um simples aspecto do reflexo do ressentimento ou das aspirações das classes baixas, e sim que os verdadeiros os verdadeiros sectários são recrutados dentro dessa classe” (FILHO, 1992, p. 32). Particularmente entendo que essa forma de caracterizar os dois grupos revela uma visão exageradamente classista e até certo ponto limitada. Muito provavelmente esta visão é o resultado de uma leitura muito comum aos pensadores de meados do século passado, que observavam dentro do Congresso Americano ou na lista dos Presidentes Americanos, apenas membros das Igrejas instituídas. Hodiernamente, nossa experiência tupiniquim revela que a visão sectária pode conviver muito bem com as classes sociais mais abastadas.
Como se pode perceber, a realidade ficou bastante complexa. E esta complexidade nos leva a afirmar que mesmo dentro de uma Igreja instituída, é possível encontrar pessoas que desenvolvem um pensamento sectário. Para que possamos abordagens de uma forma mais prática esse tema, vamos fazer uma distinção que nos ajude a distinguir melhor as “religiões instituídas” e as “seitas”. Para que logremos êxito nessa empreitada, procuraremos distinguir esses dois grupos observando os seguintes elementos.
Em primeiro lugar, destacamos o papel do tipo de liderança. Normalmente, as religiões instituídas possuem uma liderança organizacional e uma sólida presença de normas instituídas que são cumpridas, independentemente de quem infrinja as normas. Por outro lado, o comportamento sectário se volta para o fortalecimento do líder carismático que, via de regra, está até mesmo acima das eventuais normas (cânones) existentes, sendo ele o “critério interpretativo” da norma ou mesmo o próprio legislador. Não é incomum, nas seitas, ocorrer uma identificação entre a vontade do líder e a vontade de Deus, o que significa que o líder sectário nunca pode ser questionado.
Em segundo lugar, o comportamento sectário se caracteriza pelo desenvolvimento de um sentimento religioso extremamente individualizado e subjetivo. Enquanto as religiões instituídas costumam revelar um comportamento ou uma dimensão mais estrutural e coletivista em sua agenda, as seitas se voltam muito fortemente para os sentimentos pessoais e para o que Deus está revelando particularmente a alguém. Assim, ao invés de se voltar para a história, para a tradição e para o que a Igreja sempre apregoou, as seitas dão grande importância ao individualismo e a eventuais revelações pessoais. Existem seitas que fazem questão de abordar seus futuros membros com a afirmação: “Ore a Deus e peça para que ele revele se estamos certos ou não”.
Um terceiro elemento que caracteriza o comportamento de seita se revela no fato de que elas, geralmente, acreditam possuir a verdade absoluta. Sendo possuidoras e detentores da verdade divina absoluta, tais grupos não precisam dialogar ou aprender com outros movimentos religiosos. Não havendo abertura para diálogo, só existe possibilidade para o proselitismo, ou seja, para o recrutamento de pessoas para seu projeto, sua credenda e sua agenda.
Em quarto lugar, de uma perspectiva intelectual, as seitas – diferentemente das religiões instituídas -, se inclinam para um comportamento de absoluta impermeabilidade ao novo. Esta impermeabilidade ao novo é uma consequência concreta da crença de que eles possuem a verdade de Deus. Assim, quem acredita possuir toda a verdade, não precisa mais aprender ou se abrir para algum tipo de novidade. Até porque a novidade pode trazer em seu bojo, alguma nova ideia que mine as verdades absolutas que já estão postas criando dúvida nas mentes dos fiéis. A ciência é vista como perigosa e a Bíblia não pode ser interpretada com instrumentos oriundos da sociologia, da história, antropologia, etc.
Considerando que o fenômeno religioso faz parte e se desenvolve dentro do bojo de uma sociedade bem mais ampla, inevitavelmente as seitas acabam por se identificar, em quinto lugar, com algum tipo de ideologia mais extremista. Assim, por exemplo, no sul dos Estados Unidos, existe uma forte ligação entre algumas seitas e a tradição de supremacia branca, com o lobby do uso de armas, com a luta contra as pessoas homoafetivas, contra a prática do aborto, contra o casamento inter-racial e até, a favor da criação de normas sobre o comportamento sexual do casal.
Em quinto lugar, as seitas se comportam psicologicamente, como uma elite privada. Isso faz com que eles literalmente desprezem os membros dos demais movimentos religiosos. Esta arrogância e empáfia é fruto da convicção que eles têm a verdade, de que sua leitura do mundo é oriunda diretamente de Deus, e que se alguém discordar deles, estará discordando do próprio Deus. Assim, esta arrogância pode – e em muitos casos acontece -, em determinadas circunstâncias, assumir inclusive contornos de uma forte intolerância ao diferente.
Em sexto lugar, as seitas diferem das Religiões instituídas pela importância que dão a um extremado rigorismo moral e comportamental. Desta forma, práticas como ir ao teatro, ao cinema, dançar, beber ou fumar, são associadas com práticas demoníacas que precisam ser extirpadas da vida cristã.
Como registramos no início desse texto, a complexidade do mundo pós-modernos nos faz ver que hoje, mesmo dentro das Igrejas instituídas, existem setores que desenvolvem um comportamento de seita. Setores dentro do Anglicanismo, por exemplo, infelizmente estão desenvolvendo esses mesmos elementos. Esses setores são tão exageradamente Low Church (Igreja Baixa) que quase se pode chamá-los de undergraund Church ou de igreja subterrânea. Eles desenvolvem exatamente os mesmos elementos que marcam e caracterizam um comportamento sectário. O que é uma pena, pois este comportamento não apenas macula a identidade milenar do Anglicanismo, mas também fere claramente o caráter profundamente espiritual do evangelicalismo de Charles Wesley (que usava todo o Livro de Oração Comum) e de Wilberforce, que estava profundamente envolvido com questões políticas e sociais.
Outros setores dentro do Anglicanismo são tão profundamente arrogantes que negam a identidade “Anglicana” a quem discorde deles. Sua leitura extremamente inclusiva e compreensiva para com membros da comunidade LGBT+ e para com os setores sociais mais à esquerda e engajados em questões ligadas à defesa do meio-ambiente – que é o resultado de uma hermenêutica bem mais aberta da realidade e produto da utilização de instrumentais e categorias pós-modernas em sua cosmovisão (refiro-me a Rorty, Foucault, Heidegger, Sartre, Vattimmo, dentre outros) não lhes permite, contudo, produzir um pensiero debole institucional e eclesial, mas paradoxalmente os fazem manter uma metanarrativa colonialista, de uma identidade dura que exclui os que não se submetem à sua instituição política e à sua administração. Este é o tipo de visão sectária “chapa-branca” desenvolvida pelos Anglicanos ligados à Comunhão Anglicana que “excluem” os demais Anglicanos (continuantes, não-alinhados, etc.) e sequer os reconhece como “Anglicanos”.
Assim, pergunto: quem está na Igreja e quem está em uma seita? Esta resposta não pode mais ser encontrada de uma forma tão fácil. O comportamento sectário invadiu o Anglicanismo pelas duas portas extremas: a do individualismo evangelical e a do institucionalismo clericalista. Haverá alguma saída para o Anglicanismo no futuro? Qual o futuro que espera este movimento religioso que já foi um dos mais pujantes e multifacetários do mundo? Enquanto os que viverem apenas na “microfísica” e os que viverem no “poder” – para referenciar o livro de Foucault – mantiverem suas posturas de prática exclusivistas não vislumbramos muito futuro para o Anglicanismo enquanto Igreja instituída. O que veremos será apenas a manifestação sectária dos carreiristas que se mantêm no poder se digladiando com os membros do movimento Anglicano undergraund.
Referência bibliográfica
FILHO, Tácito da Gama Leite. Seitas do nosso tempo, Vol 7 – fenomenologia das seitas. Rio de Janeiro: JUERP, 1992
MATA, Sergio da. Religião e modernidade em Ernest Troeltsch. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-20702008000200012> acessado em 21 de janeiro de 2020

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