PRESBÍTEROS E SACERDOTES NA IGREJA ANGLICANA
- Reverendo Padre Jorge Aquino ✝
- 9 de nov. de 2020
- 7 min de leitura
Atualizado: 15 de nov. de 2020
Reverendo Padre Jorge Aquino.
Nas Igrejas Anglicanas, ainda mantemos as três ordens oriundas da igreja primitiva e que são: diácono, presbítero e bispo. No entanto, os presbíteros também têm sido chamados de sacerdotes em muitas províncias. Qual a razão do uso desse termo? Seria correto utilizá-los para indicar os presbíteros anglicanos? Pensando em responder a essas questões, faremos as seguintes considerações.
Uma perspectiva histórica
Antes de mais nada, é preciso saber que a palavra “presbítero” é originária do termo grego presbyteros, que significa “ancião” ou “mais experiente”. No inglês antigo, esta palavra era pronunciada como preost e, posteriormente priest. Deve ser digno de nota que ela não é equivalente ao termo latino sacerdos, que origina a palavra “sacerdote”, ou seja, aquele que oferece um sacrifício.
Embora os Anglicanos também utilizem a palavra “sacerdotes”, é preciso compreender que nós não a utilizamos no sentido de sacerdos, e sim no sentido de presbyteri. Benjamin Scott, nos diz que a língua inglesa é muito pobre – e o mesmo pode ser dito sobre o português – e que não possui “um termo que corresponda ao ofício sacerdotal dos judeus ou dos pagãos” (SCOTT, 1982, p. 135). A diferença é fundamental. Primeiramente, dentro de uma perspectiva bíblica e litúrgica, ou seja, tanto o Novo Testamento quanto o Livro de Oração Comum, entendem essa palavra como essencialmente pastoral, e nunca como uma atividade mediadora. Isso significa que o múnus do presbítero é o de pregar, administrar os sacramentos e pastorear o rebanho de Deus. A atividade sacrificial ou mediadora só vai ser associada ao ministério presbiteral com a entrada, na Igreja Cristã, das multidões oriundas do paganismo, com a conversão do Imperador Constantino. É nesse momento que práticas e nomenclaturas pagãs passaram a ser utilizadas pelos cristãos.
Eis o segundo aspecto, o teológico. Muito embora a Igreja Latina tenha absorvido a teologia pagã que associava o exercício presbiteral ao de um sacerdote pagão – que oferecia sacrifícios aos deuses, muitos setores da igreja resistiram a essa postura. Dessa forma, embora a Igreja Romana entenda que a missa é uma “renovação incruenta do sacrifício de Cristo”, no qual Cristo é novamente sacrificado na forma de hóstia (do latim: vítima) nos altares diariamente, pelas mãos dos sacerdotes, os Anglicanos não comungam dessa leitura.
Desta forma, fica claro que entre os Anglicanos – embora ainda seja utilizada a palavra “sacerdote” para designar seus presbíteros, queremos com isso, unicamente, fazer referência ao aspecto pastoral de quem tem a obrigação de pregar a Palavra de Deus e de administrar os Sacramentos – conforme ensina o Novo Testamento e nossa liturgia. A ideia de alguma atividade sacrificial está absolutamente ausente de nossa teologia, bem assim de nossa liturgia e prática pastoral. Entendemos que todos os cristãos exercem o sacerdócio real que nos foi dado por Cristo (ver I Pd 2:5,9; Ap 1:6; 5:10; 20:6). Uma citação bastante clara sobre como interpretamos o sacerdócio hoje, pode ser encontrada nas palavras do Cônego Stowell, que diz: “O sacerdócio humano pertenceu a uma dispensação material e simbólica. (…) Não há mais sacerdotes, no sentido próprio da palavra, pois cessaram quando o veio o verdadeiro Sacerdote. Seria uma felicidade, se a palavra sacerdote nunca tivesse sido usada pela Igreja Cristã, porque está sujeita a interpretações erradas, ainda que todo o estudioso honesto bem sabe que, na Igreja Evangélica, a palavra nunca é empregada na sua antiga significação. Para qualquer espírito livre de preconceitos, é bem evidente que nenhuma igreja cristã usa a palavra com esse sentido antigo; se a usa é no sentido de ministro, onde os dois termos se equivalem. Em vão a dialética e a sofística dalguns, que, embora se digam evangélicos, têm o coração para o lado de Roma, se têm esforçado por torcer o uso da palavra sacerdote num sentido que indique que o nosso ramo da Primitiva Igreja de Cristo retém qualquer coisa que se pareça com a desgraçada invenção de Roma – a de um sacerdócio sacrificador ainda em existência. Roma transformou o simples evangelista, o arauto da graça, o apóstolo ou mensageiro, o pastor ou apascentador, o pescador de almas, o mordomo cujo dever é dar a todos a comida em tempo devido, numa ostentosa hierarquia sacerdotal sacrificadora. Se nos perguntarem donde se originou esta monstruosa estrutura de heresia papal, responderemos que foi da ambição sacerdotal!” (STOWELL In SCOTT, 1982, p. 136, 137).
Por fim, é importante registrar que este tema já chegou a ser objeto de decisão em denominações, como por exemplo a Free Church of England, desde sua organização em 1844. Nesta igreja, o próprio termo inglês “priest” foi retirado do LOC. Essa mudança realizada no The Book of Common Prayer de 1662 acabou por fazer com que onde se lia o termo “sacerdote” se lê, hoje, “presbítero” ou, mais comumente, “ministro”. A tese teológica que está por trás dessa iniciativa é a realidade bíblica de que todos os cristãos são sacerdotes. Eis aqui uma referência à tese luterana do sacerdócio universal dos cristãos.
Uma perspectiva linguística
Uma reflexão, no entanto, poderia ser feita nesse momento. Nós, seguramente, não somos fundamentalistas na linguagem. Isso significa que acreditamos existir uma diferença entre morfologia, sintaxe e semântica. É de fundamental importância, quando nos aproximamos desse estudo, citar o intelectual suíço Ferdinand de Saussure (1857-1913). Foi sobre suas teses que se fundaram a tradição semiótica europeia. Uma de suas contribuições essenciais foi a fixação da língua como sistema semiológico. Partindo da conhecida esquematização da comunicação baseada entre emissor e receptor, Saussure opera uma separação entre os elementos psíquicos, físicos e fisiológicos. Se, por um lado, a linguística estuda o ato individual da fala, por outro ela também se envereda pelo estudo da dimensão psíquica na medida em que se centra no fato social, ou seja, no fato de que todos os indivíduos reproduzem – ainda que aproximadamente – os mesmos signos unidos aos mesmos conceitos. Ele também vai distinguir no signo o significado e o significante. O significante são os elementos concretos, materiais e perceptíveis de uma palavra, o que ele chamava de imagem acústica. O significado é o elemento inteligível, conceitual, ou seja, é uma imagem mental que surge quando ouvimos ou lemos o significante. A união desses dois elementos é o signo. O referente, por sua vez, nos fala do objeto particular a que a palavra corresponde no caso concreto da circunstância ou do uso. Tudo isso nos fala o estudo empreendido por Saussure sobre a língua. Aliás, normalmente entende-se por “língua”, um sistema que expressa de forma verbal e/ou escrita, um pensamento. Esse sistema, para ser visto como tal, precisa ter um conjunto de regras bem definidas chamada, comumente, de gramática. Quando a língua expressa cabalmente um pensamento, estaríamos diante de uma linguagem.
Mas o estudo da linguagem foi mais além. Quando estudamos hermenêutica, lemos sobre a importância do movimento que ficou conhecido como Linguistic turn. Quem deu a maior contribuição para que ocorresse essa virada linguística, foi o filósofo Ludwig Wittgenstein. Para ele, os modos de uso da linguagem (jogos de linguagem) equivalem às formas de vida existente. Ele entendia, então, que uma forma de vida é o nexo que une linguagem à realidade. Como cada um de nós vive dentro de uma realidade sócio-político-cultural-linguístico, é ela que nos determina em todos os graus. Ao falar sobre as “formas de vida”, Wittgenstein estava acusando a concepção “essencialista” da linguagem de ser fundamentalmente abstrata e não pragmática. Quem adota essa orientação não pode oferecer um procedimento intersubjetivo para apreender a “essência” de algo, mas apenas recomendar a confiar na “intuição intelectual”. Ora, sabemos que as palavras podem cambiar de sentido, pelo simples fato de serem marcadas pela ambiguidade, vagueza e porosidade. Mas, quando acrescentamos o aspecto do contexto social que nos é trazido por Wittgenstein, aprendemos que o sentido das palavras nos são colocadas pelo seu meio e pela intencionalidade. Desta forma, antes de pregar uma visão essencialista das palavras, ele defende uma leitura instrumentalista, já que a “essência” da palavra pode mudar. Isso significa dizer que, “uma palavra tem sentido na medida em que se pretende com ela conseguir algo e a linguagem seria apenas meio para o fim, sendo que o que determina, efetivamente, a significação seria esse fim” (negrito do autor) (DANTAS, 2005, p. 35). Ou, citando as palavras de Alexy, “Wittgenstein entende as práticas comuns da vida diária que subjazem a diversos jogos de linguagem e que foram moldadas por certas convicções e regras fundamentais. As regras e convicções fundamentais que definem uma forma de vida constituem um sistema, qualquer que seja sua determinação; formam o que Wittgenstein chama de ‘representação do mundo’. Essa representação do mundo constitui ‘o substratum de toda minha pesquisa e de todas as minhas proposições’. Como tal, deve ser concebida como ‘algo que está além do justificado ou injustificado; por assim dizer, parecido com algo animal’. Assim, as representações do mundo e as formas de vida não são nem certas nem erradas. Quem quiser induzir alguma outra pessoa a aceitar uma delas, apenas pode fazê-lo por persuasão, mas não mediante uma fundamentação, pois somente há razão dentro de uma forma de vida ou de uma representação do mundo” (ALEXY, 2008, p. 74).
Conclusão.
O que pretendemos dizer com isso é que, conquanto entendamos o sentido teológico original da palavra “sacerdote” – e com ele concordemos -, também entendemos que, semanticamente, o sentido que atribuímos a esse termo, hoje, dependerá de todos esses fatores que foram apontados pelos estudos linguísticos. Em resumo, se alguém gostaria de fazer um “cavalo de batalha” por causa de uma palavra, tal pessoa está no seu direito. No entanto, advogamos a possibilidade de sermos mais “generosos” com nossos irmãos Anglicanos que, dentro de suas realidades peculiares, continuam a usar esse termo, embora entendendo-o de forma diferente da que é usada pela igreja Romana, e dando um significado mais pastoral.
Referências bibliográficas:
ALEXY, Richard. Teoria da Argumentação Jurídica. São Paulo: Landy, 2008
DANTAS, David Diniz. Interpretação constitucional no pós-positivismo: teoria e casos práticos. São Paulo: Madras, 2005.
SCOTT, Benjamim. As catacumbas de Roma. Rio de Janeiro: CPAD, 1982

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