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PEDRO E A IGREJA DE ROMA

  • Foto do escritor: Reverendo Padre Jorge Aquino ✝
    Reverendo Padre Jorge Aquino ✝
  • 25 de mar. de 2020
  • 21 min de leitura

Atualizado: 27 de mar. de 2020


Reverendo Padre Jorge Aquino.

Umas das questões mais relevantes para qualquer pessoa que se envolva em estudar as origens do Cristianismo é, justamente, a relação enigmática existente entre o apóstolo Pedro e a igreja em Roma. Esta relação tem sido, durante séculos, razão para questionamentos entre as mais diversas vertentes do Cristianismo, seja ele Romano, Ortodoxo ou Reformado. Nossa intensão aqui, é a de apresentar alguns dados que, em nossa opinião devem esclarecer um pouco a questão e, para tanto, nos serviremos tanto de autores destas mesmas tradições religiosas.

A origem de toda a questão se encontra no texto do evangelho de Mateus 16 no qual Jesus pergunta aos discípulos sobre o que eles pensam a seu respeito. Pedro, sempre pronto a expor sua opinião imediatamente diz: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”. Ao que Jesus responde: “Bem-aventurado és tu, Simão Barjonas, porque não foi carne e sangue quem to revelou, mas meu Pai, que está nos céus. Pois também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Dar-te-ei as chaves do reino dos céus; o que ligares, pois, na terra será ligado nos céus, e o que desligares na terra será desligado nos céus” (Mateus 16: 17-19).

Desnecessário dizer que esse texto nos dá a impressão de que (1) Pedro e a pedra sobre a qual Cristo edificaria sua igreja e, que (2) ele – e seus sucessores - possui as chaves do reino dos céus, o que sempre foi interpretado como se ele fosse a pessoa que atua como o meio, pelo qual, alguém poderia entrar no reino. Mas, será que essas afirmações possuem fundamento bíblico e histórico? Curiosamente, estas interpretações passaram a fazer parte do bojo fundamental de doutrinas da igreja Católica Romana, a ponto de se chegar a afirmar que ninguém pode ter Deus como Pai sem ter a igreja (de Roma) como mãe. Novamente pergunto. Será que existe fundamentação bíblica e histórica para essas afirmações? Depois de iniciar esse debate, proponho os seguintes pontos para nortear nossa exposição.

1. O surgimento da igreja em Roma

Em primeiro lugar, creio que, antes de falar sobre o surgimento da igreja de Roma, que tem a pretensão de ser a principal Sé da igreja Cristã, é preciso registrar que “Roma, nem pela antiguidade, sequer, podia a princípio prevalecer sobre as outras sés. Antecederam-na as de Jerusalém, Éfeso, Antioquia e Corinto. O título apostólica, reservado hoje exclusivamente à daquela cidade Tertuliano atesta-nos que se aplicava a todas as igrejas, quer instituídas pelos apóstolos, quer ramificações dessas. (...) e ainda no século IV, os bispos orientais denominavam a igreja de Jerusalém ‘mãe de todas as igrejas’” (RUI BARBOSA, In JANUS, 1877(?), p. 55).

Tendo deixado claro que a primazia eclesiástica e apostólica – se eventualmente precisarmos usar a expressão – pertence à igreja de Jerusalém, é importante, para o nosso estudo, fazer algumas considerações sobre o surgimento da comunidade Cristã em Roma. Não existe qualquer dúvida de que, conforme assevera Küng (2002, p. 49), “desde o início, a comunidade romana mostrou ter-se em alta conta e ser merecedora de respeito geral”. E isso ocorreu no transcorrer da história, não apenas porque era a comunidade da capital imperial, grande, próspera e famosa por suas atividades caritativas, mas porque era o lugar onde se acreditavam ter sido enterrado os corpos dos apóstolos Pedro e Paulo. Até hoje Roma goza de grande respeito por um considerável número de Cristãos. Mas, como, afinal ela surgiu?

A bem da verdade, não se sabe exatamente como a comunidade Cristã em Roma surgiu. O que podemos afirmar, com satisfatório lastro histórico, é que, seu surgimento antecedeu, em muito, a chegada de Paulo ou de Pedro àquela cidade. Podemos fazer essa afirmação com base em dois argumentos. O primeiro deles nos diz que o escritor romano Suetônio registrou que Cláudio expulsou os judeus de Roma em função de assíduos tumultos relacionados a Cresto (Cristo). A expressão original usada por ele diz: “Judaeos impulsore Cresto assidue tumultantes, Roma expulit”. Pelo que sabemos, esse fato ocorreu em torno do ano 52, portanto, vinte e cinco anos depois da morte de Cristo. Ademais, esse fato é mencionado nas Escrituras, que registra que Paulo foi até a cidade de Corinto e que lá, encontrou “um judeu por nome Áquila, natural do Ponto, que pouco antes viera da Itália, e Priscila, sua mulher (porque Cláudio tinha decretado que todos os judeus saíssem de Roma), foi ter com eles” (Atos 18: 2). Ora, pelo que verificamos no contexto desse versículo, esse casal já era cristão quando de seu encontro com Paulo e, certamente, foi por meio deles que Paulo teve as primeiras informações da comunidade Cristã em Roma. Até onde sabemos, por essa época, Pedro ainda estava na Palestina. Fica, portanto, assentado de forma cristalina e clara que já existiam Cristãos em Roma muito antes da chegada de Paulo ou Pedro àquela cidade.

No entanto, caso o leitor não tenha se dado por convencido pelo que foi exposto acima, citamos um segundo argumento. Esse retirado do comentário sobre a epístola aos Romanos chamado de Ambrosiater (porque sua autoria é atribuída a Ambrósio, bispo de Milão) escrito entre os anos 366 e 384. Lá, em seu prefácio, lemos textualmente que “a igreja de Roma não foi fundada por nenhum apóstolo” (Nulla insignia virtutum videntes nec aliquem apostolorum susceperunt fidem Christi).

O que é surpreendente, é que a crença de que Pedro e Paulo estiveram juntos em Roma é uma crença bastante antiga entre os Cristãos. Quanto a presença de Paulo em Roma esta informação é tanto bíblica quanto historicamente fundamentada. Sobre a presença de Pedro, contudo, não há qualquer registro bíblico, muito embora existam documentos que façam essa afirmação. Sabemos, por exemplo, que Inácio de Antioquia, enquanto estava indo preso em direção à Roma, escreveu uma carta aos Cristãos daquela cidade (c. 110 A.D.) na qual diz: “Não vos dou ordens como Pedro e Paulo; eles eram apóstolos, eu sou um condenado” (Carta de Inácio aos Romanos 4: 3 In PATRÍSTICA, Vol 1, 1995, p. 105). Não sabemos sobre qual fundamento ele declara que Paulo e Pedro estiveram, ambos, em Roma, contudo, ele também não traz qualquer luz a essa questão. Segundo afirma Salvador, em seu comentário introdutório à Carta de Clemente de Roma aos Coríntios, “É bem possível que se tenha inspirado na epístola de Clemente, pois é o mais antigo documento a fazer referência a ambos. E daí em diante outros teriam seguido na trilha de Inácio, inclusive o bispo Irineu, de Leão (c. 115 a c. 200)” (SALVADOR, 1959, p. 37). De fato, a Carta de Clemente aos Coríntios dirá em seu capítulo 5: 3-5: “Consideremos os bons apóstolos. Pedro, pela inveja injusta, suportou, não uma ou duas, mas muitas fadigas e, depois de ter prestado testemunho, foi para o lugar glorioso que lhe era devido. Por causa da inveja e da discórdia Paulo mostrou o preço reservado à perseverança. (...) deixou o mundo e se foi para o lugar santo, tornando-se o maior modelo de perseverança” (CLEMENTE In PATRÍSTICA, Vol 1, 1995, p. 27).

De fato, é muito provável que esta crença da presença de Pedro em Roma tenha tido origem em uma lenda, segundo a qual, durante a perseguição realizada por Nero, Pedro sentiu medo e fugiu da cidade. Ainda segundo a lenda, quando estava em seu caminho de fuga, Pedro se encontra com Jesus, e lhe pergunta: “Para onde vais, Senhor?” – “Vou para Roma. Vou sofrer com os cristãos”. Diante da altivez dessas palavras, envergonhado, Pedro retorna à Roma e é martirizado como seu Senhor, mas de cabeça para baixo. Muito provavelmente esta lenda está na base do relato de Clemente, e o relato de Clemente acabaria servindo de base para a defesa dessa tese por homens como Inácio de Antioquia e Irineu de Lyon que, em seu livro Contra as Heresias (III: 1,1) dirá claramente que Pedro e Paulo “evangelizaram em Roma e aí fundavam a igreja” (IRINEU DE LIÃO, III.1,1, In PATRÍSTICA, Vol 4, 1995, p. 247), o que, conforme verificamos, não há a menor possibilidade de fundamentação ou lastro histórico.

De fato, a questão da presença ou não de Pedro em Roma, faz surgir uma gama enorme de argumentação, mas a exposição bíblica e uma leitura mais crítica da história nos dirá que Pedro nunca esteve em Roma. Ainda tecendo comentários em torno desse tema, cito o doutor Hans Küng, teólogo católico-romano, que pontua o seguinte: “é impressionante que até Inácio, este defensor e ideólogo do episcopado monárquico, não tenha se dirigido a um bispo em sua carta à comunidade romana, como Paulo não se dirigiu. E não havia menção de um bispo em Roma em qualquer outra das primeiras fontes, como a ‘Carta de Clemente’ (por volta de 90)” (KÜNG, 2002, p. 49). Esta é a mesma posição de Stagg, para quem, “Não há nenhuma partícula de evidência bíblica de que Pedro foi feito bispo sobre toda a igreja, ou que qualquer ofício especial foi transmitido dele para outra pessoa” (STAGG, In COMENTÁRIO BÍBLICO BROADMAN. Vol 8. 1986, p. 218). Na realidade, segundo defende Küng, “Pedro esteve certamente em Antioquia, onde havia uma disputa com Paulo sobre a aplicação da lei judaica. Possivelmente, esteve também em Corinto, onde era evidente que havia um partido que afirmava fidelidade a Cephas, isto é, Pedro. Mas o Novo Testamento não diz, em parte alguma, que Pedro esteve em Roma” (KÜNG, 2002, p. 36). Das palavras de Küng depreendemos que além de Pedro jamais ter estado em Roma, quando Paulo e Inácio de Antioquia escrevem à comunidade de Roma, surpreendentemente, não fazem qualquer referência a seu eventual bispo.

Seja como for, a posição Anglicana sobre esse tema sempre foi bastante clara. Ela pode ser vista no Artigo XXXVII dos 39 Artigos de Religião, que afirma: “O Bispo de Roma não tem jurisdição alguma no reino da Inglaterra”. Com essa afirmação, os Anglicanos afirmavam que a suposta primazia da igreja de Roma sobre as demais sés ao redor do mundo, não passou de uma construção histórica com origem na Idade Média e que se fundamentou no mito fundante de que Pedro era a pedra sobre a qual a Igreja fora fundada, de que ele foi o fundador da igreja em Roma, de que esteva em Roma quando morreu, que foi o primeiro papa e que deixou seus sucessores como seus substitutos na liderança da Igreja. Entre os Anglicanos, bem assim, entre os demais reformadores, essa tese não prosperou por absoluta falta de fundamentação bíblica, teológica e histórica.

2. O papel de Pedro em Roma

Um segundo tema que inafastavelmente teríamos que enfrentar, diz respeito ao papel de Pedro como o eventual “primeiro” bispo de Roma e como o criador de uma sucessão apostólica. Iniciamos verificando a posição oficial da igreja de Roma sobre essa questão, que pode ser encontrada nas palavras do Cardeal Gibbons, para quem “A Igreja Católica ensina que nosso Senhor conferiu a S. Pedro o lugar máximo de honra e jurisdição no governo de toda a Sua igreja, e que a mesma supremacia espiritual sempre residiu nos papas, ou bispos de Roma, como sucessores de S. Pedro. Consequentemente, para sermos verdadeiros seguidores de Cristo, todos os cristãos, tanto o clero quanto os leigos, devemos estar em comunhão com a Sé de Roma, onde Pedro governava na pessoa do seu sucessor” (GIBBONS In BOETTNER, 1985, p. 89, 90). Outra exposição da doutrina romanista pode ser lida na exposição do cardeal jesuíta Belarmino, principal teólogo da Contra-Reforma, e que descreveu a igreja da seguinte forma: “a Igreja é uma, não duas; e essa uma verdadeira Igreja é a reunião daquelas pessoas, unidas pela confissão da mesma fé cristã e da comunhão dos mesmos sacramentos, sob a orientação de pastores legítimos e principalmente do único representante de Cristo sobre a terra, o papa romano” (BELARMINO, Apud MAYER, In O CATOLICISMO ROMANO, 1962, p. 96). De uma forma bastante singela e clara, Denzinger vai direto ao ponto quando diz que “o estar submetido ao Romano Pontífice é absolutamente necessário a toda criatura humana para ser salvo” (DENZINGER, In LACUEVA, 1979, p. 37). Como consequências de exposições como estas, podemos concluir com a assertiva de Robleto, segundo quem “A pretensão do papado consiste em dizer que o bispo da diocese de Roma é o Papa ou o Pai da cristandade, o sucessor de Pedro e o Vigário de Jesus Cristo, com autoridade temporal e espiritual não somente sobre as igrejas, mas também sobre os reinos que há na terra. Estas declarações tão grandes pretendem-se baseá-las praticamente em uma só passagem das Escrituras, Mateus 16:18, (...). ali Cristo instituiu a Pedro como a pedra ou o alicerce da Igreja” (ROBLETO, 1977, p. 26). Estas exposições da doutrina oficial da igreja de Roma nos colocam diante de duas questões relevantes: a tese de que Pedro foi colocado por Cristo como líder monárquico da sua igreja e, a de que Pedro foi o primeiro bispo infalível de Roma. Iniciemos pela última questão. Teria Pedro iniciado uma sucessão apostólica e estabelecido a Sé de Roma – e seu bispo - como o centro do Cristianismo?

Acerca do segundo tema, portanto, principiamos citando o Doutor Hans Küng, que é profundamente incisivo e peremptório ao afirmar que “a primeira lista de bispos, do padre da igreja do século II Irineu de Lyon, segundo a qual Pedro e Paulo transferiram o ministério do episkopos para um certo Lino, é uma falsificação do século II” (KÜNG, 2002, p. 49). Perceba, caro leitor, que o doutor Hans Küng – do alto de sua autoridade como teólogo com uma profunda formação Católica Romana - utiliza uma expressão muito forte para se referir a essa lista de bispos.

Cremos que Küng usa a expressão “falsificação” porque, como já vimos, tudo surge com uma lenda que se espalha entre os romanos e que, muito provavelmente, serviria de base para a afirmação feita na Carta de Clemente aos Coríntios de que Pedro e Paulo morreram martirizados em Roma. Esta carta, muito provavelmente serviu de base para as afirmações – ainda que superficiais – feitas por Inácio de Antioquia e, mais tarde por Irineu de Lyon. A transformação de uma lenda em uma “falsificação” é fortalecida pelo fato histórico e real de que Paulo realmente morreu em Roma. Assim, se a história fala a verdade acerca de Paulo, a lenda – unida à história – teria o condão de assumir a mesma autoridade ou credibilidade.

Irineu dá um passo mais adiante não apenas ao afirmar em seu livro Contra as Heresias (III: 1,1) que Pedro e Paulo eram os fundadores da igreja de Roma (embora – obviamente - não entre em detalhes sobre o ministério de Pedro e Paulo em Roma), mas ao se tornar o grande paladino do episcopado e o primeiro a mencionar uma sucessão apostólica como a conhecemos hoje. Em sua relação, Lino aparece como primeiro bispo de Roma, ladeado dos fundadores Pedro e Paulo. Somente depois Pedro é colocado à frente da linhagem de sucessão apostólica.

Conforme pontua o professor Salvador, ao que parece “tal relação não existia até ao pontificado de Anicleto (154-165), décimo bispo, segundo Irineu. Quem nos ajuda a fazer a afirmação desta vez é Eusébio. Conta ele que Hegesipo foi a Roma a fim de certificar-se se a doutrina ensinada ali era a mesma de outras igrejas. Como base da verdade histórica procurou estabelecer então uma lista de seus bispos” (Hist. Ecle. IV,22:1,2 In SALVADOR, 1959, p. 38). E porque Eusébio agiu dessa forma? Porque, na condição de historiador, sempre buscou os fatos in loco, ademais, a igreja não dispunha desses dados. Não possuímos, hoje, essa relação, mas acreditamos que foi com base nela que Irineu se inspirou para confeccionar a sua. Eis a razão pela qual Hans Küng é tão incisivo em sua afirmação acerca dessa lista de bispo, chamando-a de “falsificação”. Desta forma, afirmar que Pedro foi o primeiro papa é um mito fundante que procura dar legitimidade aos bispos que surgiriam posteriormente.

Além do mais, a visão que a igreja de Roma tem acerca da “sucessão apostólica” como sendo uma transferência de autoridade produzida por meio da mera imposição das mãos é bastante questionada, até mesmo por teólogos cuja formação foi eminentemente católica. Segundo afirma Hans Küng, por exemplo, “A sucessão apostólica pela imposição das mãos não se processa automaticamente. Ela supõe a fé e exige fé ativa em espírito apostólico. Não exclui a possibilidade do erro e engano, razão por que postula o exame pela totalidade dos crentes” (KÜNG, 1976, p. 427). Assim, a mera imposição das mãos não transfere a fé da igreja apostólica aos bispos que forem ordenados posteriormente.

Voltando-nos, agora, para a primeira questão, é importante lermos com bastante cuidado o que diz as Escrituras sobre o assunto. No Evangelho lemos efetivamente que Pedro faz uma declaração fundamental para a Igreja: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”, e que Cristo faz uma declaração fulcral para Pedro: “Tu és Pedro; e sobre essa pedra edificarei a minha igreja”. O que Jesus queria dizer com essa afirmação? Quem, afinal, é a Pedra de que fala este texto?

Os comentaristas mais conhecidos que tratam desse texto são claros ao afirmar que, embora tenhamos o texto de Mateus escrito em grego, quando Jesus falava, ele se servia do aramaico. Assim, muito embora no texto grego apareçam duas palavras diferentes: “tu és Pedro (petros), e sobre essa pedra (petra) edificarei minha igreja”, onde ambas as palavras significam a mesma coisa, petros, que tinha a forma masculina, se refere a um homem, ao passo que petra, por ter a forma feminina, corresponderia ao aramaico kepha. Assim, afirma Frank Stagg, comentando o texto: “nenhum jogo de palavras era possível com ‘rocha’, em aramaico, em que uma só palavra servisse para Petros e petra. A declaração aramaica teria sido: ‘Tu és Kepha e sobre esta kepha’” (negrito dele) (STAGG, In COMENTÁRIO BÍBLICO BROADMAN. Vol 8. 1986, p. 217).

Creio, outrossim, ser importante ressaltar que existe uma forte tendência contemporânea que afirma ter sido esse texto enxertado ou interpolado – eingerschoben - em uma época posterior, na qual a hierarquia da igreja estava sendo formada, como uma elaboração teológica que tinha como propósito “realçar a autoridade de Pedro”. Segundo esses exegetas, “É difícil crer que Jesus mesmo tenha dito essas palavras. Nem Marcos nem Lucas as têm” (HENDRIKSEN, 1996, p. 677). Contudo, não se pode negar que este texto está presente nos manuscritos mais antigos, bem como naqueles datados mais posteriormente – conforme testifica o Textus Receptus e o Novo Testamento publicado por Kurt Aland -, revelando uma clara concordância diante do fato de que estamos diante de palavras ditas pelo próprio Jesus.

Desta forma, para aqueles que entendem terem sido essas palavras, ditas por Jesus, a leitura desse texto bíblico nos permite, dependendo do comentarista, pelo menos cinco possibilidade para a expressão “e sobre esta pedra edificarei a minha igreja”. Stagg enumera as seguintes possibilidades: “Há possibilidades de que fosse ela o próprio Pedro, a fé de Pedro, a confissão de Pedro, o próprio Cristo, ou uma combinação de fatores. Superficialmente, a referência parece ser ao próprio Pedro; mas, se ele for a pedra é estranho que o impessoal esta pedra venha logo a seguir do pessoal tu és” (negrito dele) (STAGG, In COMENTÁRIO BÍBLICO BROADMAN. Vol 8, 1986, p. 217).

Como exemplo de interpretação, começo com Tasker, que parece se inclinar para a tese de que a melhor interpretação da “pedra” se inclinaria para a fé que Pedro estava revelando ao fazer essa declaração. Para este exegeta, Jesus estava declarando que Pedro era alguém altamente favorecido, “dirigindo-se a ele chamando-lhe Pedro, homem de rocha, e esclareceu que a fé por ele expressa era a rocha sobre a qual Ele edificaria a Sua igreja, a igreja do Deus vivo, que os poderes da morte jamais poderiam derrotar” (TASKER, 1985, p. 126). No entanto, contra os que defendem essa teoria, há quem argumente que essa não parece ser a leitura ou o sentido mais simples ou natural do texto. Ademais, o que as Escrituras afirmam de forma inconteste, é que a igreja é edificada sobre as pessoas que confessam e não sobre a fé que as leva a confessar ou mesmo sobre sua confissão. Basta ler Efésios 2: 10 e I Pedro 2: 4-8.

Uma exposição bastante interessante nos é feita pelo eminente teólogo Leonardo Boff que, comentando o texto de Mateus 16: 17-19 nos informa que até o 5º século, este texto era entendido pelas igrejas Católicas e Ortodoxas “como um elogio de Jesus diante da fé de Pedro sem referi-la à fundação da Igreja. Sobre esta fé se construirá a Igreja, e não sobre a pessoa de Pedro. Tal constatação é importante para relativizar a interpretação posterior e oficialista da Igreja Romano-católica que buscava e ainda busca sua autojustificação como a única Igreja verdadeira na sucessão do Apóstolo Pedro. O mérito de Pedro foi o de, antecipando-se aos demais apóstolos, fazer a profissão de fé em Jesus como Filho de Deus (Mt 16,18;18,17). Sobre esta fé, portanto, e não sobre a figura de Pedro, depois desqualificada por Jesus como satanás, construir-se-á a comunidade cristã, constituída por aqueles que creem como Pedro creu” (BOFF, 2011, p. 148, 149). Do que foi exposto, fica claro, portanto, que para Boff, o texto em questão aponta não para a pessoa, mas para a fé de Pedro.

É claro que as Escrituras dizem abertamente que Cristo é a pedra de angular sobre a qual a igreja foi fundada. Escrevendo aos Coríntios, Paulo já dizia que “ninguém pode lançar outro fundamento além do que foi posto, o qual é Jesus Cristo” I Coríntios 3: 11. E o próprio Pedro escreveu que devemos nos achegar “a Ele, a pedra viva, rejeitada sim pelos homens, mas para Deus eleita e preciosa” (I Pedro 2: 4-8). No entanto, aqueles que defendem a interpretação do texto em análise, buscando ver nele, uma afirmação de que a pedra sobre a qual a igreja seria edificada é uma indicação de Cristo, precisam lembrar e reconhecer, diz Champlin, o fato de que no aramaico não existe a possibilidade de haver um jogo de palavras, como no grego. Assim, diz esse exegeta: “Se no aramaico não houve esse jogo de palavras, e foi usada uma única palavra para significar “petros” e “petra”, no dizer dos defensores dessa interpretação, Jesus teria feito a diferença por um movimento de mão. Quando falou sobre Pedro, ao usar a palavra “petros”, deve ter feito um gesto na direção do apóstolo; e quando falou sobre a “petra”, a rocha maciça que é ele mesmo, sobre quem a igreja deveria ser edificada, deve ter feito um gesto que apontava para si mesmo” (CHAMPLIN, 1985, p. 445). Ora, este recurso não nos parece claro nem presente no texto.

Particularmente – e com todas as vênias para os eminentíssimos teólogos e exegetas que discordam de mim -, entendo que nosso Senhor Jesus, no texto que está sendo examinado, está sim se referindo à pessoa do próprio Pedro, no entanto, Cristo não o observa isoladamente ou em separado dos demais apóstolos e nem mesmo da igreja. Assim compreendo que Pedro, representando os outros apóstolos ao responder o questionamento de Jesus, e revelando sua fé no Cristo (o Filho de Deus) por sua confissão, se torna a petra ecclesiae (a pedra da igreja), juntamente com os demais apóstolos. Pelo que lemos nas Escrituras, o ofício do apostolado consiste justamente em dar testemunho, em primeira mão, das palavras de Jesus. Segundo afirmou Brunner, “Deste testemunho depende todo o futuro da comunidade cristã. O que eles receberam deve ser passado para o mundo. E o que eles receberam tem o pleno peso da autoridade divina final. Sem os apóstolos não haveria cristianismo; ou mais precisamente, sem a autoridade divina dos apóstolos não haveria Ecclesia. A comunidade de Jesus só é concebível, somente eficaz, como uma comunidade apostólica” (BRUNNER, 2000, p. 32).

Não estamos com isso nem afirmando que Pedro tem a primazia sobre todas as igrejas, nem que a igreja de Roma está correta ao afirmar que ele foi o primeiro papa exercendo um ministério monárquico sobre toda a igreja de Cristo. Até porque, segundo o que postula Brunner, a autoridade apostólica dada por Cristo a Pedro e aos demais membros do colégio apostólico, possuía duas características fundamentais. Em primeiro lugar, essa autoridade é intransferível, ou seja, a autoridade da dar um testemunho acerca do que presenciou, viu e ouviu, não pode ser repassada para outrem. Em segundo lugar, essa autoridade “reside completamente no dom em si, no conteúdo do qual eles são os vasos. Portanto é inevitável que quando esse dom é transmitido a outros, o ultimo participa agora no que originalmente o primeiro possuía com exclusividade. A autoridade é comunicada à comunidade receptora, na proporção em que os apóstolos efetivamente transmitem o que eles têm para transmitir” (BRUNNER, 2000, p. 33). Assim, com a morte dos apóstolos, algo nos é deixado de herança, a saber, seu registro escrito.

O que afirmo não difere do que disse Paulo quando escreveu: “Edificados sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, sendo ele mesmo, Cristo Jesus, a pedra angular” (Efésios 2: 20). Como assevera Champlin, “O texto mostra que esse edifício é a igreja, a habitação de Deus no Espírito, a ‘família’ de Deus (vs. 19). E a passagem de Apo 21:14 indica a mesma ideia” (CHAMPLIN, 1985, p. 446). Desta forma, em um sentido exclusivo, somente Cristo pode ser apontado como o fundamento da igreja e ninguém pode lançar outro fundamento além do que já foi posto (I Coríntios 3: 11). No verso 10 lemos que, segundo a graça de Deus, Paulo lançou o fundamento, mas os outros edificam sobre ele. Paulo se refere à nossa vida cristã e da forma como a edificamos em Cristo e em torno de sua pessoa. Nesse sentido, não pode existir outro fundamento.

No entanto, quando tratamos do texto de Mateus 16 e Efésios 2, não é isto que está em jogo, mas o grande edifício da igreja. Este edifício que é habitação de Deus, possui como pedras fundamentais os apóstolos, os profetas e todos os que são chamados de “pedras vivas”. Neste edifício, indiscutivelmente, Cristo é a pedra angular ou fundamental.

O que advogo é que, indiscutivelmente, uma interpretação natural das palavras de Jesus inevitavelmente aponta para a pessoa de Pedro, não tenho como negar. Feitas as ressalvas anteriores, sobre os mitos e fantasias que foram criadas em torno da figura desse apóstolo, concordo com o pensamento de Stagg quando afirma que: “Embora Pedro fosse um indivíduo especial, e um apóstolo e discípulo peculiar, pode ser também que ele fosse visto por Mateus como um tipo e figura dos primitivos cristãos. Mateus dá muita atenção a Pedro, ampliando a ênfase dada por Marcos, com adicional tradição petrina, peculiar a ele mesmo (cf. 14:28-31; 15:15; 17:24-27; 18:21), mas não tem interesse biográfico especial em Pedro. Ele não é nem pró-petrino nem anti-petrino. Mateus apresenta os aspectos positivos e negativos de Pedro, mostrando não apenas a sua inconsistência, mas considerando-o como tipo e figura dos discípulos, com todas as contradições que eles tinham, fator que foi e é um problema perene dentro da igreja” (STAGG, In COMENTÁRIO BÍBLICO BROADMAN. Vol 8. 1986, p. 218). Perceba o leitor que este intérprete se serve de Pedro como um “tipo ou figura” da igreja primitiva, e acrescentaríamos, também da igreja atual. Quando Pedro, com seu ímpeto tão peculiar, se põe de pé e responde ao questionamento do Senhor – e vós quem dizeis que eu sou? – afirmando ser ele o Cristo, o Filho do Deus vivo, todos nós, cristãos, estávamos com ele, fazendo a mesma confissão. É nesse aspecto, e somente nesse, que Pedro (assim como todos os crentes) serve de pedra sobre a qual a igreja é estabelecida.

Recorro, para fortalecer esta posição ao ilustre pensador Oscar Culmann que acentua que “A posição especial de Pedro não significa autoridade sobre os outros discípulos durante a vida de Jesus. Mas depois da morte de Jesus, cabe-lhe, por algum tempo, a direção da comunidade nascente” (CULMANN, 1965, p. 302). De fato, além de ter sido o primeiro discípulo a testemunhar a ressurreição, coube-lhe o célebre sermão do dia de pentecostes e a anunciação do Reino para os gentios, os judeus e os samaritanos. Apesar disso, sua autoridade não era monárquica e nem sequer única, vez que coube a Tiago, o irmão do Senhor, a presidência do primeiro Concílio da Igreja (Atos 15). Estes fatos apontam para uma autoridade dispersa e compartilhada, inclusive, com o apóstolo abortivo, Paulo.

Nesse sentido, me uno ao pensamento de Küng quando afirma que o verdadeiro fundamento da igreja “não é, em primeiro lugar, um culto próprio, uma constituição e organização próprias, com cargos e serviços específicos, mas tão-só e exclusivamente a profissão de fé nesse Jesus como o Cristo” (KÜNG, 1979, p. 47) como o fez Pedro, antecipando-se aos discípulos e unido a todos os crentes. A tese principal desse autor está em apresentar o episcopado romano – como de resto todos os outros -, como um sinal de serviço e diakonia, não de dominação e de exercício de poder.

Ressalte-se que a interpretação que aponta para Pedro como primeiro papa e líder basilar da igreja mundial, somente surgiria muitos séculos mais tarde. Para Küng, por exemplo, foi somente “em meados do século III, um bispo de Roma chamado Estevão se refere à promessa feita a Pedro, em uma disputa com outras igrejas sobre quem teria a melhor tradição. (...) Mas deveria pertencer somente para após a mudança feita por Constantino, somente a partir da segunda metade do quarto século em diante, que Mateus 16.18s seria usado (...) para apoiar uma descendência romana com liderança e autoridade” (KÜNG, 1995, p. 309).

Conforme ensina Küng, para teólogos como Agostinho, Cristo e a fé nele, e não Pedro como pessoa (muito menos seus sucessores) é o fundamento da igreja. Essas afirmações de Küng são avassaladoras para as pretensões do clero romano, porque destrói completamente a tese de que a primazia petrina era uma realidade desde sempre conhecida pelos cristãos. O que é mais surpreendente é que ele invoca, inclusive, o testemunho do papa Bento XVI. Vejamos suas palavras: “Isso também é confirmado pelo jovem Joseph Ratzinger em sua dissertação sobre a eclesiologia de Agostinho: ‘Portanto, se a igreja é fundada em Pedro, não é baseada em sua pessoa, mas em sua fé ... O fundamento da igreja é Cristo. ‘Non enim dictum est illi: tu es petra, sed: tu es Petrus. Petra autem erat Christus’ (Para ele não foi dito 'Você é a rocha', mas 'Você é Pedro' e a rocha era Cristo), esta frase mostra que o Cristo (petra) aceito na fé (Petrus) é a verdadeira pedra fundamental da igreja” (RATZINGER, In KÜNG, 1995, p. 314). A conclusão a que Ratzinger chega em sua tese doutoral é a de que, para Agostinho, a suprema autoridade da Igreja não era o papa, mas o concílio ecumênico, e nenhum dos dois possuía autoridade infalível.

Para concluir, amarrando as duas questões levantadas, em uma só, Hans Küng nos ensina que além de não haver “qualquer evidência de um sucessor de Pedro (também em Roma) no Novo Testamento. De qualquer forma, a lógica da frase sobre a pedra tende antes a jogar contra isso: a fé de Pedro em Cristo (e não a fé em qualquer sucessor) deveria ser e permanecer a base constante da igreja” (KÜNG, 2002, p. 36). Neste diapasão, discordando frontalmente da igreja de Roma – que afirma ser Pedro o primeiro (e supremo) bispo ou papa de Roma, estabelecendo uma linha sucessória. O próprio Pedro escreveu: “Pedro, apóstolo de Jesus Cristo... Rogo, pois, aos presbíteros que há entre vós, eu, presbítero como eles, e testemunha dos sofrimentos de Cristo, e ainda co-participante da glória que há de ser revelada: Pastoreai o rebanho de Deus que há entre vós, não por constrangimento, mas espontaneamente, como Deus quer; nem por sórdida ganância, mas de boa vontade; nem como dominadores dos que vos foram confiados, antes tornando-vos modelos do rebanho” (I Pedro 1:1; 5: 1-3).

Pedro não se apresenta aqui como um bispo monárquico que exerce autoridade infalível e inquestionável. Mas como um presbítero – igual aos demais -, que preconiza o exercício de um ministério de serviço e de humildade, à semelhança do de Cristo. Eis o modelo para todos aqueles que entendem que a verdadeira sucessão apostólica é aquela que aponta para a verdade acerca d Cristo.

Referência bibliográfica:

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