
Reverendo Jorge Aquino.
Muito embora esse tema tenha se expandido a ponto de envolver outras duas expressões, também significativas (solo Christos e soli Deo gloria), as principais teses defendidas pela Reforma do século XVI, diziam respeito a três verdades que eram fundamentais e que se tornariam base e a razão para que a Reforma ocorresse.
Quando os grandes líderes da Reforma Protestante levantaram a tese do Sola Scriptura (Somente a Escritura), eles estavam querendo dizer que era a Escritura, e não a tradição, o Magistério eclesiástico, os Concílios Gerais, ou a orientação de algum padre, bispo ou papa, que deveriam ser encaradas como tendo autoridade máxima última, suprema e absoluta em questões que digam respeito à fé e prática. Nem mesmo a Igreja teria essa qualidade de ser indefectível ou infalível. A relação da Reforma com as Escrituras é bastante íntima e ficaria muito clara porque “Os Reformadores libertaram a Bíblia por meio da tradução vernacular (especialmente a Bíblia de Lutero em alemão), da pregação expositiva (recomeçada por Zuínglio) e da exegese histórico-gramatical direta (mais bem exemplificada nos comentários de Calvino)” (WRIGHT, In ELWELL, 1990, p. 250). Desta forma, a tese da Sola Scriptura apontava que o “princípio material para fundamentação da fé e vida cristã dos evangélicos era somente as Escrituras” (SEIBERT, In FILHO, 2008, p. 944). Entre os Anglicanos, esta tese também é claramente presente, particularmente quando lemos o Artigo VI dos 39 Artigos de Religião que afirma: “A Escritura Sagrada contém todas as coisas necessárias para a salvação; de modo que tudo o que nela não se lê, nem por ela se pode provar, não deve ser exigido de pessoa alguma seja crido como artigo de Fé ou julgado como requerido ou necessário para a salvação”. Diante dessa elaboração doutrinária feita pelos reformadores ingleses, fica claro que, se desejamos buscar a verdade acerca de algo que possa ser necessário para nossa salvação, devemos nos dirigir à Escritura, vez que são elas que contém “todas as coisas necessárias para a salvação”. Ademais, fica claro para os Anglicanos que, nada pode ser exigido de nós - para que façamos ou creiamos - que, como tal, não possa ser claramente demonstrado nas Escrituras.
Entre os Anglicanos não existem pessoas ou instituições que sejam infalíveis naquilo que ensinam, quer seja sobre a fé quer seja sobre a vida. Para os Anglicanos, quando se buscam as verdades que são necessárias para nossa fé ou para nossa vida prática, devemos nos aproximar das Escrituras, mas, ao nos aproximarmos delas, devemos nos servir da razão e da tradição para que possamos interpretá-las da melhor forma possível. Assim, por meio desse “tripé” (Escritura, Razão e Tradição) podemos discutir quaisquer questões que eventualmente surjam diante de nós, a qualquer tempo. Um outro detalhe importante é que, conforme confessamos, cremos que o Espírito Santo – que inspirou os textos sagrados -, nos orienta e nos guia no caminho mais adequado para que conheçamos qual seja a boa, perfeita e agradável vontade de Deus para os cristãos em cada geração.
Assim, devemos sempre ter em mente as palavras de Lutero quando escreveu ao papa Leão X, em setembro de 1520 – em resposta à sua bula de excomunhão – , ao afirmar, tudo indica pela primeira vez, que apesar de reconhecer a autoridade do papa, ele convida Leão X a se submeter “somente às Escrituras”. Em outro momento importante, na Dieta de Worms (1521), Lutero afirma claramente que “A não ser que seja convencido pelo testemunho da Escritura ou por argumentos evidentes (pois não acredito nem no papa nem nos concílios exclusivamente, visto que está claro que os mesmos erraram muitas vezes e contradisseram a si mesmos) – a minha convicção vem das Escrituras a que me reporto, e minha consciência está presa à palavra de Deus […] não me retratarei”. Em outras palavras, somente as Escrituras podem ser, para o cristão, a autoridade última e final em assuntos de fé e prática. Ademais, nossa consciência somente pode se submeter ao que aos ensinos das Escrituras. Eis o que Lutero afirma nos Artigos de Esmalcalde (1537), II,ii,15: “a norma é: a palavra de Deus, e mais ninguém, nem mesmo um anjo, estabelecerá artigos de fé” (LUTERO Apud SEIBERT, In FILHO, 2008, p. 944).. Portanto, é cediço a influência de Lutero sobre o Arcebispo Thomas Cranmer e, portanto, sobre a fé das Igrejas da Inglaterra. Afinal, cantava Lutero em seu famoso hino Castelo Forte: “Sim, a palavra ficará”.
Por fim, resta destacar que, uma vez que a Reforma Protestante ocorreu dentro de um movimento bem mais amplo, conhecido como Renascimento, sendo seu rebatimento na esfera religiosa e, considerando que o lema do Renascimento era Ad Fontes, ou seja, às fontes, não devemos estranhar que os reformadores tenham se voltado com tanta ênfase para as Escrituras Sagradas. Desta forma, afirma Jesse Hurlbut, “Os católicos romanos haviam substituído a autoridade da Bíblia pela autoridade da igreja. Ensinavam que a igreja era infalível e que a autoridade da Bíblia procedia da autoridade da igreja. Proibiam a leitura das Escrituras aos leigos e opunham obstáculos à sua tradução na língua usada pelo povo” (HURLBUT, 1979, p. 149). Para os Reformadores, voltar às fontes significava ressaltar que, era a Bíblia – e não a Igreja -, que detinha toda a autoridade em questões de fé e de prática, e que ela deveria ser traduzida para a língua do povo, a fim de que todos tivessem acesso a seus ensinamentos, sem que a igreja pudesse impor a sua interpretação como sendo a única e a verdadeira.
Referência bibliográfica:
ELWELL, Walter A. (Edit.). Enciclopédia histórico-teológica da igreja cristã. São Paulo: Vida Nova, 1990
FILHO, Fernando Bortolleto (org.). Dicionário brasileiro de teologia. São Paulo: ASTE, 2008
HURLBUT, Jesse L. História da igreja cristã. Miami: Vida, 1979
Comments