
Reverendo Pe. Jorge Aquino.
Antes de iniciar nossa apreciação do tema, é interessante lembrar que essa expressão surge da tradução do Novo Testamento feita por Lutero para o alemão. Assim, ele traduziu Romanos 3:28 incluindo a palavra “somente”, fazendo com que o texto afirma que somos “justificados somente pela fé, independentemente das obras da lei”. Segundo Linden, “Lutero aponta duas razões para sua tradução. A primeira se refere à clareza que o texto deveria ter na língua alemã, para a qual estava sendo traduzido: ‘é verdade, estas quatro letas sola não constam ali (...) mas elas contém o sentido do texto, e quando se quer traduzir com clareza e contundência, é preciso incluí-las, pois eu quis falar alemão...’ (...). A segunda razão refere-se ao ‘texto e a intensão de S. Paulo’. Naquele texto, argumenta Lutero, o apóstolo estava tratando da salvação do pecador (...) mostrando a total incapacidade das obras de tornarem alguém justo” (LUTERO Apud LINDEN In FILHO, 2008, p. 939).
Esse terceiro princípio da Reforma do século XVI, significa que somos salvos pela “fé somente”. Por óbvio, ele está interligado com o princípio anterior da Sola Gratia muito embora possa ser indicado como o princípio fundamental dentre os reformadores. E onde é que a Sola Fide e a Sola Gratia se encontram? Em um aspecto bastante simples. Uma vez que nossa salvação não é obtida por meio de nossos méritos ou nossas boas obras, já que não somos aptos para agradar plenamente a Deus em nada que fazemos, nem podemos barganhar com Deus acerca de nossa salvação, de que forma, afinal, podemos ser salvos? Para responder a essa questão nos dirigimos, em primeiro lugar, para o que ensina a Bíblia. Ora, quando lemos uma vez mais o texto da carta de Paulo aos Efésios citado anteriormente, encontraremos a resposta. Lá está escrito: “pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus. Não vem das obras, para que ninguém se glorie (Efésios 2:8,9). Assim, se nossa salvação não vem das obras, elas nos é dada pela fé – que não vem de nós, mas é dom de Deus. Atente para o fato de que até mesmo a fé que temos, é descrita por Paulo como um “dom” ou um “presente” de Deus para nós. Eis a razão pela qual o autor da carta aos Hebreus falam de Deus como sendo o “autor e consumador da fé” (Hebreus 12, 2). Quando dizemos que uma pessoa é justificada perante Deus, estamos dizendo que ela é um ato jurídico de Deus, por meio da qual Ele declara justo o pecador tendo como base, apenas a obra de Cristo. Não estamos, portanto, de fazer alguém ser justo, mas de declarar alguém justo diante de Deus. Para que essa declaração judicial ocorra, é necessário que exista a fé. A fé, portanto é o instrumento ou a causa instrumental da justificação. Nesse sentido urge compreender que há uma diferença entre a postura romana e a reformada. Segundo Berkhof, “A Igreja Católica Romana ensina que o pecador é justificado na base de sua própria retidão inerente, que é introduzida no seu coração na regeneração”, ao passo que para o pensamento reformado – que retorna ao pensamento bíblico -, “A base real da justificação pode ser encontrada somente na retidão perfeita de Jesus Cristo, que é imputada ao pecador na justificação” (BERKHOF, 1985, p. 236). Assim somente a fé que nos é imputada, no que foi realizado na cruz, pode nos legar a salvação.
Em segundo lugar, quando nos voltamos para a teologia apresentada pela Reforma e encontrada, no nosso caso, nos 39 Artigos de Religião da Igreja Anglicana, vislumbramos a seguinte afirmação em seu Artigo XIII: “As obras feitas antes da graça de Cristo, e da inspiração do seu espírito, não são agradáveis a Deus, porquanto não procedem da fé em Jesus Cristo; nem fazem os homens dignos de receber a graça, nem (como dizem os autores escolásticos) merecem a graça de côngruo; muito pelo contrário visto que elas não são feitas como Deus quis e ordenou que fossem feitas, não duvidamos terem elas a natureza do pecado”. Este texto afirma, mui claramente que o dístico reformado “Somente pela Fé” impõe sobre nossas obras – por melhores que elas sejam -, a marca da imperfeição e, por óbvio, a incapacidade de nos tornar merecedores da salvação. Esta posição da teologia reformada inglesa também pode ser claramente verificada no sermão escrito por Cranmer e publicado como sua “Homilia sobre a salvação” (1547). Aqui, seu compromisso com a Sola Fide pode ser claramente reconhecida. Nele, afirma o Arcebispo de Cantuária, “nossa justificação se dá gratuitamente por pura misericórdia de Deus” e não por meio de nossas obras particulares, senão pela “fé verdadeira e viva, que por sua vez é dom de Deus” (CRANMER, In OLSON, 2001, p. 449).
Em terceiro lugar, é forçoso reconhecer que muitos dos que se dizem cristãos, parecem desconhecer completamente esta doutrina e agem como se pudessem merecer, senão exigir a salvação de Deus. Este posicionamento é consequência do legalismo que impera em nossas comunidades e que nos aproxima do comportamento dos fariseus da época de Jesus. Assim, muitos dos que se dizem “cristãos” se julgam melhores que os outros porque cumprem à risca os mandamentos estabelecidos por sua denominação. Em resumo, eles acreditam que podem agradar a Deus obedecendo normas humanas e satisfazendo expectativas criadas pelas igrejas. Ora, por óbvio, os cristãos devem marcar e ornar suas vidas com boas obras. Afinal, São Tiago já afirmava que “a fé sem as obras é morta”. Mas perceba, não agimos bem para sermos salvos, mas porque já fomos transformados pelo poder de Deus em novas criaturas. Mas lembre-se, esse tema é tão importante para nós que o próprio Martinho Lutero dizia que a doutrina da justificação somente pela fé é o artigo do qual dependem toda a prosperidade ou toda a ruína da igreja.
Mas não pensemos que essa realidade é algo que atinge apenas o cristianismo contemporâneo. Era essa a realidade do cristianismo medieval, e foi justamente contra essa mentalidade que o jovem Lutero se revoltou. Depois de seu doutorado em teologia, ele se dedicou ao ensino das Escrituras na Universidade de Wittenberg em 1512. Ele se recolhia na torre da Universidade e lá preparava suas aulas sobre Salmos e sobre a Carta aos Romanos. E foi ali, na torre, que ao preparar suas aulas sobre Romanos que Lutero teve suas grandes experiências espirituais. Ali ele percebeu que a graça da qual precisava, não poderia vir de seu imenso esforço e sacrifício pessoal, mas era algo que recebíamos gratuitamente. Ao preparar suas aulas sobre a Carta aos Romanos ele se deparou com o texto de Romanos 1: 17: “O justo viverá pela fé”. E nesse texto ele descobriu que somente poderíamos ser vivificados por intermédio de uma fé que é dom de Deus, e não por nosso esforço pessoal. Ao final de sua vida, Lutero confessou que se sentiu renascido quando finalmente compreendeu, em sua mente e coração, o que Paulo queria dizer com essa afirmação. No prefácio aos seus escritos latinos completos, Lutero escreveu: “Finalmente, pela misericórdia de Deus, meditando dia e noite, dei ouvidos ao contexto das palavras: ‘A justiça de Deus se revela no Evangelho, de fé em fé, como está escrito: ‘o justo viverá por fé’”. Então, comecei a compreender que a justiça de Deus é aquela mediante a qual o justo vivi por uma dádiva de Deus, ou seja, pela fé. E é esse o significado: a justiça de Deus é revelada pelo evangelho, a saber, a justiça passiva com a qual o Deus misericordioso nos justifica pela fé, segundo está escrito: ‘O justo viverá por fé’. Aqui, senti como se renasce totalmente e entrasse no paraíso pelos portões abertos. Ali, uma faceta totalmente nova da Bíblia revelou-se para mim” (LUTERO In OLSON, 2001, p. 387). Por isso, ainda hoje, precisamos olhar para Deus como quem não tem mérito algum e que, somente nEle, pode encontrar a salvação que nos é dada gratuitamente e por fé.
É nesse sentido, e apenas nele, que o cristão pode ler os ensinamentos de Paulo. Assim, escreve Geoffrey, “Diferentemente da justiça legal pela qual o homem procura, em vão, atingir uma posição correta diante Deus através da obediência pessoal à lei (Rom 10:3; Il 3:9), a justiça divina é aquela posição que Deus confere aos crentes sem obediência pessoal, porque Ele atribui ou imputa a eles a obediência de Cristo” (WILSON, 1981, p. 12). Assim, ao afirmar que o “justo viverá pela fé”, Paulo tem como pano de fundo o texto de Habacuque 2:4, no qual o profeta ensina que o homem justo viverá, ou seja, será salvo, pela sua fé nas promessas de libertação feitas por Deus, que se opõe frontalmente ao espírito orgulhoso que julga poder galgar, por seus próprios meios, a salvação.
Referências bibliográficas:
BERKHOF, L. Manual de doutrina cristã. Campinas/SP, Patrocínio/MG: Luz Para o Caminho/CEIBEL, 1985
FILHO, Fernando Bortolleto (Edt). Dicionário brasileiro de teologia. São Paulo: ASTE, 2008
OLSON, Roger. História da teologia cristã: 2000 anos de tradição e reformas. São Paulo: Vida, 2001
WILSON, Geoffrey B. Romanos: um resumo do pensamento reformado. São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1981
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