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O PENSAMENTO SOCIAL DE S. AGOSTINHO

Foto do escritor: Reverendo Padre Jorge Aquino ✝Reverendo Padre Jorge Aquino ✝

Atualizado: 29 de dez. de 2022




Reverendo Prof. Jorge Aquino



INTRODUÇÃO


Agostinho (354-430) é, sem sombra de dúvida, uma das figuras mais importantes da filosofia medieval e de todo o cristianismo. Sua importância não se deve tão somente a enorme quantidade de obras que deixou, mas a grande influência que elas exerceram na formação das gerações posteriores de teólogos/filósofos.

De índole introvertida e tímida – apesar de sua “constituição robusta” (HAMMAN, 1985, p. 234) – Agostinho é alguém que desde cedo se preocupa com a busca da verdade. E é justamente nesta busca pela verdade que ele abandona a religião de sua mãe, considerada por ele como “fábulas de velhas” (ALTANER/STUIBER, 1972, p. 412), e ingressa no maniqueísmo. Aos 21 anos, ele se torna mestre de gramática e se muda para Cartago, com a finalidade de se dedicar ao ensino. Torna-se bastante conhecido e, por intermédio de Símaco – Prefeito de Roma -, obtém a cátedra oficial de mestre de retórica na cidade de Milão, em 384. Foi justamente lá, em Milão, que ouvindo as pregações de Ambrósio, ele finalmente se desvencilhou do maniqueísmo e se tornou cristão. Agostinho deixou claro que “Em várias destas pregações, Ambrósio utilizou, eventualmente, ideias Neo-platônicas; assim Agostinho pôde compreender que a filosofia Neo-platônica era capaz de vencer o Maniqueísmo, sendo compatível igualmente com o Cristianismo” (ALTANER/STUIBER, 1972, p. 413).

O Agostinho teólogo que encontramos após a sua sagração ao episcopado, é alguém completamente impregnado de categorias Platônicas. Toda a sua doutrina vai girar em torno do neo-platonismo, graças principalmente às obras de Plotino em tradução latina – apresentadas a ele provavelmente por um neo-platônico cristão chamado Mânlio Teodoro. De acordo com o pensamento de P. Sherrard, “Aqui se pode entender o significado do ‘mito’ histórico do cristianismo, a queda de Adão e sua redenção através da encarnação e ressurreição de Cristo. O homem obscureceu em si mesmo a imagem de Deus, seu conhecimento de sua própria causa divina, e sua participação consciente nas energias criadoras do espírito. Não pode recordar por si mesmo essa imagem, pois agora é ‘cativo’ das leis naturais do seu eu psicológico e não pode recobrar o que está acima de sua natureza, mediante faculdades puramente naturais. Assim esta imagem só pode ser devolvida mediante ato voluntário da divindade de fato, mediante a descida do logos a imagem do Pai, no mundo. Através de sua ‘vinda na carne’, e sua ressurreição, o logos revela ao homem, em linguagem humana e em parábolas e ações, o conhecimento que perdeu...” (SHERRAED, In FRANGIOTTI, 1992, p. 97, 98).

Além de se caracterizar como alguém indelevelmente platônico, Agostinho é também inquestionavelmente um homem da Igreja. Sua disputa contra os donatistas o fará subscrever a afirmação de Cipriano, segundo a qual fora da Igreja não há salvação. Assim, Agostinho vai escrever: “Salus extra ecclesiam non est” (AGOSTINHO In ALTANER/STUIBER, 1972, p. 440). Como se pode inferir claramente, Agostinho passa a considerar a Igreja de Roma como aquela “in qua semper apostolicae catedrae viguit principatus” (AGOSTINHO In ALTANER/STUIBER, 1972, p. 441).

A chave hermenêutica neo-platônica e o “locus” hermenêutico eclesiástico serão determinantes na formação da doutrina social de Agostinho. Neste breve trabalho, no entanto, valorizaremos mais esta determinante do que aquela. É nosso pressuposto que Agostinho, enquanto homem da Igreja, serve de fundamento para o profetismo, a denúncia e a prática de relacionamentos sociais que privilegiam a partilha e a justiça como referenciais éticos e políticos.


IGREJA, LUGAR DO QUERÍGMA


A palavra “querígma” é uma transliteração aportuguesada da palavra grega Kerygma, que significa “proclamação” ou “anúncio”. A palavra Kerygma, por sua vez, vem do verbo grego Keryssô, que significa “anunciar”, “tornar conhecido”, “proclamar (em voz alta)”. O que se observa com tudo isso, é que desde cedo esta palavra vai se referir à mensagem (seu conteúdo) da Igreja diante da sociedade gentílica.

Lendo as obras de Agostinho, particularmente seus sermões, é possível encontrar várias citações que ilustram o querígma social agostiniano. Senão vejamos algumas citações sobre temas associados às questões sociais.


1. O Estado

Em sua mais célebre obra, a Cidade de Deus, Agostinho descreve com as seguintes palavras sua visão sobre o Estado: “Dois amores fundaram duas cidades: o amor de si, até o desprezo de Deus, fundou a cidade terrena; o amor de Deus, até ao desprezo de si, fundou a cidade celestial. Por isso, aquela se gloria de si mesma, ao passo que esta no Senhor. Àquela procura a glória que os homens proporcionam; pelo contrário, a maior gloria desta é Deus, testemunha de sua consciência. Àquela enaltece o chefe na sua glória; esta diz ao seu Deus: ‘Minha glória é o que me ergue a cabeça’ (Sl 3:4). Àquela é dominada pelo desejo ardente de domínio sobre os príncipes ou sobre as nações subjugadas; nesta se servem reciprocamente, no amor, sendo que os chefes governam e os súditos obedecem. Nos seus poderosos, àquela ama a própria força; esta diz ao seu Deus: ‘eu te amo Javé, minha força’ (Sl 17:2). Por isso naquela os sábios, que vivem humanamente, procuram o bem-estar do corpo ou aquele da alma, ou aquele dos dois. Se chegarem a conhecer a Deus, ‘não o honraram como Deus nem lhe renderam graças; pelo contrário, eles se perderam em vãos arrazoados e seu coração insensato ficou nas trevas. Jactando-se de possuir a sabedoria (isto é, exaltando-se a si mesmos, porque dominados pela soberba), tornaram-se tolos e trocaram a glória do Deus incorruptível por imagens do homem corruptível, de aves, quadrúpedes e répteis (e levaram o povo a adorar tais simulacros, ou pelo menos o seguiram). Eles trocaram a verdade de Deus pela mentira e adoraram e serviram à criatura em lugar do criador... (Rm 1:21-25). Ao contrário disso, na cidade de Deus, não há sabedoria humana que não seja verdadeira piedade, com a qual se adora retamente o verdadeiro Deus, isto é, aguardando com isso o prêmio na sociedade dos santos, não só homens, mas também anjos, ‘para que Deus seja tudo em todos’ (ICo 15:28)” (AGOSTINHO, In Cadernos Padres da Igreja – Autoridade e Serviço, 1990, p. 17).

Como podemos ver claramente, Agostinho desenvolveu uma clara relação dialética entre duas grandes estruturas. A primeira era a “Civitas” humana, construída completamente sobre a base do egoísmo e da soberba; a outra, a “Civitas Dei”, é estabelecida tendo por base a sabedoria, a piedade, o amor, e o altruísmo. Diante dessa tensão dialética, Agostinho apresenta uma solução. Assim como os deportados de Jerusalém (a cidade santa de Deus) tiveram que aprender a viver em Babilônia (a cidade do pecado e dos homens), precisamos aprender a viver nesta terra como cidadão dos céus. Explicando essa realidade ambígua, Janet Coleman escreve, “vivem conforme os hábitos da terra mas são peregrinos almejando um país distante. Possuem, como todos os homens em sociedade, assuntos comuns a realizar, mas não são essencialmente amantes deste mundo” (COLEMAN, 1989, p. 55).

Não podemos esquecer, que a vida de Agostinho está intimamente associada à história do baixo-império. Roma está se esforçando para se reestabelecer em uma situação política extremamente complicada, tanto interna quanto externamente. A saída, aparentemente, foi uma ditadura que lembra o totalitarismo moderno. Os invasores bárbaros estavam às portas; o cristianismo estava sendo acusado de “domesticar” o grandioso exército romano, enfraquecendo-o com doutrinas de “fracos”; a política era realizada de forma ilícita e corrupta. O que fazer? O que dizer? Diante de um pedido do padre Orósio, Agostinho decide responder as perguntas escrevendo sua extraordinária obra A Cidade de Deus. Aqui encontramos sua historiografia; aqui, neste livro extraordinário, encontramos a tese de que “nenhum estado terreno pode garantir a segurança contra ataques internos e externos... (pois)... o homem sem Deus será sempre uma vítima da ignorância, do medo, do egoísmo irracional e da falta de controle social e de si mesmo” (COLEMAN, 1989, p. 51). Diante do toda a crise presente no Império, duas lições estavam sempre sendo proferidas pela boca de Agostinho. A primeira é que, é o próprio Deus quem concede e quem retira o poder: “E o mesmo aconteceu com os homens: quem deu o poder a Mário, deu-o a Caio César; quem o deu a Augusto, deu-o também a Nero; quem o deu aos dois Vespasianos, pai e filho, imperadores muito moderados, deu-o também a Domiciano, crudelíssimo. E, para não passar em revista a todos, quem deu o império ao cristão Constantino, deu-o também ao apóstata Juliano. Este imperador tinha uma índole egrégia, mas foi transformado, no seu amor pelo domínio, pela sua curiosidade sacrílega e detestável, e acabou entregando-se aos vãos oráculos... Mas tudo isso quem dispõe e governa é o único e verdadeiro Deus, conforme lhe apraz; se os motivos são ocultos para nós, acaso são eles injustos?...” (AGOSTINHO, In Cadernos Padres da Igreja – Autoridade e Serviço, 1990, p. 38, 39).

Ora, ainda que alguém queira ressaltar o aspecto conservador e revolucionário deste texto, não poderá cerrar os olhos para pelo menos três fatos: (1) segundo este texto, e outros paralelos, Deus é a autoridade absoluta, que torna relativa todas as demais autoridades; (2) a autoridade do estado (do Rei) é delegada, portanto, subordinada à lei de Deus, e (3) a autoridade do estado é setorial, ou seja, somente deverá tratar de assuntos relacionados à suas atribuições. O que foi colocado acima, pode servir de base para que se questione qualquer Estado autoritário que: (1) tente absolutizar-se no poder, querendo assumir um poder que somente pode ser atribuído à Deus e relativizando todo poder fora de si, chegando ao ponto de calar os opositores; (2) tente ir de encontro à lei de Deus, estabelecendo um Estado onde a lei se identifica com o próprio “dominador” ou com o “general” de plantão (gerando a-nomia e ausência de estado de direito); ou (3) tente expandir a autoridade do estado, até procurar invadir a esfera privada, ferindo a integridade física e/ou os direitos individuais de cada pessoa.

A segunda lição que recebemos dos ensinamentos de Agostinho, é que sem que exista a justiça não se pode governar um Estado. Esta informação também pode ser encontrada na Cidade de Deus, que diz: “Na República de Cícero, Cipião define o povo como uma massa unida em sociedade no reconhecimento comum de um direito e na comunhão de interesses. O que ele entende por direito reconhecido, é o que explica no desenvolvimento da exposição; e com isso mostra que sem justiça o Estado não pode governar-se; que onde não existe a verdadeira justiça, não pode haver o direito. O que se realiza segundo o direito, certamente é justo; as ações injustas, pelo contrário, não podem ser realizadas segundo o direito. Com efeito, não podem ser realizadas segundo o direito. Com efeito, não podem chamar-se direito as disposições injustas dos homens, visto que eles próprios afirmam que é direito aquilo que promana da fonte da justiça; e que é falso o que alguns afirmam, com base nas ideias erradas: que o direito é aquilo de que tiram proveito os mais poderosos” (AGOSTINHO, In Cadernos Padres da Igreja – Autoridade e Serviço, 1990, p. 14).

Segundo pontua Agostinho, onde não existe a justiça, não pode existir uma massa unida e associada pelo comum reconhecimento do direito. Se assim for, este aglomerado de pessoas poderá ser qualquer coisa, menos “um povo”. Ora, onde não há povo também não há coisa pública, mas apenas uma espécie de “massa amorfa indigna do nome de povo” (AGOSTINHO, In Cadernos Padres da Igreja – Autoridade e Serviço, 1990, p. 14). O raciocínio deste insigne teólogo é claro e extremamente lógico: se o Estado é coisa pública e se não existe povo onde não existe o verdadeiro reconhecimento do direito (e não há direito onde não há justiça), a conclusão que se nos apresenta é que “onde não existe justiça, não há Estado” (AGOSTINHO, In Cadernos Padres da Igreja – Autoridade e Serviço, 1990, p. 14). No raciocínio do bispo de Hypona, uma vez que eliminamos a justiça, os reinos não passam a ser nada, senão grandes grupos de bandoleiros (AGOSTINHO, In Cadernos Padres da Igreja – Autoridade e Serviço, 1990, p. 16).

Há pois, em Agostinho, um claro critério para se julgar a existência ou não de um Estado legítimo: a prática diuturna da justiça exercida por meio do direito.


2. A Propriedade Privada

Ainda estava bem fresca na memória dos cristãos contemporâneos de Agostinho, os inúmeros sofrimentos e privações sofridos durante o período das inúmeras perseguições pelas quais muitos haviam passado. O tempo passou, a Igreja , para seu completo infortúnio, constantinizou-se e aliou-se ao Estado e, por via de consequência, passou a gozar de todos os grandes privilégios que a corte podia conceder. Isso implicava em terra, dinheiro, prestígio, etc. Acontece que, se por um lado, os tempos já não eram mais tão propícios à distribuição de riquezas, por outro, a única “Igreja” que lucrou com esse processo de constantinização foi o alto clero, ou seja, os bispos. O povo cristão continuaria tão pobre como sempre foi.

Ocorre que, com o eminente perigo das invasões bárbaras, Roma vai desenvolver tensões econômicas tão fortes, que haverá um grande aumento da população de miseráveis, durante o 4º e o 5º século depois de Cristo.

Paralelamente a tudo isso, havia dentro da Igreja um grande problema histórico/teológico a ser enfrentado. O cristianismo é fundado na esperança da iminente vinda de Jesus (a parousia); esta segunda vinda seria – na interpretação teológica popular – precedida de dores, perseguições e sinais. O problema é que, a partir do processo de constantinização, a Igreja passa da condição de perseguida à condição de perseguidora, de oprimida à opressora, o que faz com que a tão esperada “parousia” seja “adiada”, ou “empurrada” para a frente. É neste momento que surge o movimento monástico, como uma tentativa de “ir” até o Jesus que deveria “vir”; na tentativa de mortificar a carne – como durante as grandes perseguições. A onda de ascetismo oriunda no final do 4º século, produziria entre os cristãos um imenso abandono da propriedade privada.

É, pois, exatamente neste momento de crise social, que a Igreja passa a apregoar sobre a necessidade de se abrir mão das coisas materiais, com a finalidade de socorrer aos que nada possuem. Neste sentido, escreve Agostinho em seu comentário ao Salmo 131: “Muitos dão lugar ao Senhor em suas vidas. Procuram e amam seu poder. Quem quiser dar lugar ao Senhor em suas vidas, deve se alegrar não com a posse individual de bens materiais, mas em compartilhar bens comuns. Os primeiros cristãos transformaram em bens comuns seus bens individuais. Por acaso perderam o que consideravam seus bens? Não. Se seus bens continuassem como propriedades exclusivas, cada um teria apenas o que era seu. Mas, quando transformaram em bens comuns seus bens individuais, cada um passou a ter como seus bens o que era dos demais. Irmãos, qual a razão para os litígios, inimizades, discórdias, guerras e tumultos entre os homens, escândalos, pecados, iniquidades, homicídios? Tudo isso é causado pelos bens que possuímos individualmente. Por acaso brigamos pelos bens que são comuns a todos? O ar que respiramos e o Sol que nos ilumina, estão ai, para serem compartilhados por todos nós. Por isso, bem-aventurados os que dão lugar ao Senhor em suas vidas, não se alegrando na posse de bens materiais individuais” (AGOSTINHO, In Cadernos Padres da Igreja – Pobreza e Riqueza, 1989, p. 12).

Como podemos claramente perceber, Agostinho estava fazendo uma referência ao que é descrito no livro dos Atos dos Apóstolos. Ele claramente entendia que a causa e a razão de todas as grandes mazelas da humanidade consistia no amor à propriedade privada. Agostinho afirmava claramente que, somente quando tudo pertencesse a todos – como o ar e o sol pertence a todos – haveria lugar no coração do homem para o Senhor! E o único tesouro que o homem deveria guardar em seu coração era a presença de Cristo. E isto não era utopia para Agostinho. Ele mesmo já falara de inúmeros “...pais de família, camponeses, comerciantes, militares, políticos, senadores, homens e mulheres que, deixando estes bens fúteis e temporários, os quais certamente usavam – sem contudo serem escravos deles -, sofreram a morte por causa de sua fé e religião, e demonstraram aos infiéis que possuíam todos esses bens mas não eram possuídos por eles” (AGOSTINHO, In BRAVO, 1967, p. 756).


3. Igreja, Lugar Que Vence o Mal

Para que possamos discorrer sobre esse terceiro tema, é importante que tenhamos em mente duas palavras – temas – de importância fulcrais, quais sejam, o mal e a graça.


i. O Mal

A doutrina do mal em Agostinho é o produto de um longo trabalho realizado em uma trilha intelectual extremamente vasta. Por causa de sua origem intelectual maniquéia, Agostinho acaba criando um princípio “Mal” co-eterno a um princípio do bem. Além disso, será com o neo-platonismo, que ele vai conseguir superar esta ideia. Plotino havia dito, nas Enéadas, que o mal não só seria a ausência e a falta do bem, mas que o identificaria com a matéria. Agostinho aceitará a primeira parte das ideias de Plotino, mas recusará aceitar a segunda. Assim, ele não identificará o mal com o que é material, até porque foi o próprio Deus o responsável pela criação que fez existir ex nihilo.

Examinando as coisas que os homens geralmente chamam de más, o bispo de Hypona comclui que o mal não pode estar só, mas que ele deve existir em uma substância que, em si mesma é boa. O mal seria, pois, uma privação de uma perfeição que a substância deveria ter. Define-se o mal, portanto, como “privatio boni”. Ora, se Deus é o criador de tudo, e se quando cria, cria tudo com tudo o que é preciso para serem o que são, como seria ele o criador do mal, se o mal é privação de algum bem? Segue-se, portanto, logicamente, que a causa do mal seja a criatura e não o criador. Assim, quando a criatura se afasta do bem imutável e se volta para o bem inferior, particular, comete pecado e, nisso consiste o mal: num voltar às costas (aversio) ao bem supremo e imutável. Para Agostinho, portanto, este mal é cometido graças ao livre arbítrio: male facimus ex libero voluntatis arbítrio.

Como se pode perceber, para Agostinho, o mal é a-versão ao outro (ou seja, à Deus). Por isso, “se o meu projeto fundamental não converge para o outro (Deus), é considerado, julgado como mau” (REGINA, 1992, p. 51). Esta visão é uma interpretação ontológica muito comum entre os pensadores que foram influenciados por Enrique Dussel.

Partindo para uma interpretação antropológica, é possível encontrar, na hermenêutica agostiniana – à luz do que pensa Dussel – do fratricídio de Abel, a instauração do totalitarismo solipcista através da aniquilação total da alteridade. Assim, “o outro é o âmbito, a partir do qual a eticidade do ontológico ficou constituído, como boa ou má, em Caim e Abel” (REGINA, 1992, p. 53).

Ora, se na doutrina agostiniana do mal, este é uma aversão ao outro, segue-se que o bem seria, para ele, justamente o inverso, ou seja, uma conversão à Deus.

A grande limitação da doutrina agostiniana do mal, é – conforme Ddussel -, que ele privilegia o momento teológico e desconsidera o momento antropológico. Assim, o mal também poderia ser visto como uma aversão ao outro enquanto igual, ou seja, ao outro humano.


ii. A Graça

Para Agostinho, a doutrina da graça está intimamente ligada à doutrina do livre arbítrio. Para nosso pensador, Deus cria o homem bom e reto, dotado de livre arbítrio, de imortalidade e da capacidade de não pecar. No entanto, com a queda, cujo caráter essencial era o orgulho, o homem perde o bem e se separa de Deus. Entregue plenamente à luxúria, Adão cai em um estado de ruína, cujo destino é a morte eterna. Este pecado e suas consequências atingiram toda a raça humana. Todos, portanto, passaram a merecer a ira de Deus e estão irremediavelmente perdidos, formando uma massa danata.

A salvação desta massa de perdição somente pode ocorrer por meio da graça de Deus. Assim, o salário que é pago, porque é devido, não é graça. Se a graça não é gratuita, deixa de ser graça. Pois bem, Deus por meio de sua graça, resolve retirar desta massa de perdição, algumas poucas pessoas que ele chama de eleitos. Esta é a doutrina da predestinação. Assim, “no período imediatamente posterior à sua conversão, Agostinho afirmara que o homem tem o poder de, ou aceitar ou rejeitar a graça, mas mesmo antes da controvérsia pelagiana, chegou à conclusão de que a graça éirresistível” (WALKER, Vol 1, 1967, p. 238).

Segundo Agostinho, quando o homem é atingido pela graça de Deus, sua vontade escravizada se liberta e se torna capaz de escolher o que é agradável a Deus. Trata-se de uma transformação gradual da natureza humana. Transformação chamada de santificação.

A graça representa em Agostinho, uma espécie de resposta divina para o problema do mal. Há inúmeras consequências práticas da doutrina da graça. Senão vejamos: (a) pela graça somos capazes de sair da posição de a-versão e migrar para um lugar de conversão diante do outro; (b) pela graça temos a nossa natureza transformada, o que nos capacita a vivenciar uma ética mais elevada do que a que se vivenciava no pecado; (c) a graça nos lembra sempre que, apesar do nosso pecado, a disposição de Deus em perdoar é muito maior. Isto resolve inúmeros problemas de auto-estima. Além do mais, se Deus em sua santidade nos aceita e acolhe como somos, porque nós não nos aceitaríamos? Porque não aceitaríamos o outro? Seria ele pior do que eu?

Ora, como se vê claramente, a doutrina da graça cria uma espécie de comunidade dos agraciados, onde todos podem vivenciar seus problemas e pecados e serem alcançados pelo perdão. Isto se dá, para Agostinho, a partir do batismo – que também é meio de graça.


Conclusão


De tudo o que foi exposto acima, é possível concluir que existem duas vias pelas quais podemos chegar ao pensamento social de Agostinho. A primeira é a via positiva, examinando os inúmeros textos sociais que saíram de sua pena. A segunda é a via derivativa, ou seja, uma releitura de suas doutrinas principais oriundas de outros comentadores.

Cremos ter conseguido demonstrar, em que pese a superficialidade do texto, que Agostinho pode, com toda a segurança, fundamentar a tese de que o cristianismo possui uma base sólida para o discurso profético e para a prática social libertária. Fica registrado, no entanto, uma certa decepção de minha parte ao vislumbrar ser tão desconsiderado quem tanta contribuição deixou para a posteridade.


Natal, 7 de dezembro de 1993

Dia de Santo Ambrósio



Referências bibliográficas:

ALTANER, B./STUIBER, A. Patrologia. São Paulo: Paulinas, 1972

AGOSTINHO, et al. Cadernos Padres da Igreja – A Concórdia e a paz. São Paulo: Editora Nova Cidade, 1988

AGOSTINHO, et al. Cadernos Padres da Igreja – Pobreza e riqueza. São Paulo: Editora Nova Cidade, 1989

AGOSTINHO, et al. Cadernos Padres da Igreja – Autoridade e Serviço. São Paulo: Editora Nova Cidade, 1990

BRAVO, S. Doctrina social y economica de los padres de la iglesia. Madri: Compi, 1967

COLEMAN, Janet. O pensamento político de Platão à OTAN. Rio de Janeiro: IMAGO, 1989

HAMMAN, A. Os padres da igreja. São Paulo: Paulinas, 1985

FRANGIOTTI, Roque. História da teologia: período patrístico. São Paulo: Paulinas, 1992

REGINA, Jesus E.M. Filosofia latino-americana e filosofia da libertação. Campo Grande: CEFIL, 1992

WALKER, W. História da igreja cristã. Vol 1. São Paulo: ASTE, 1967

 
 
 

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