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O cristão e a crise da fundamentação racional da ética

  • Foto do escritor: Reverendo Padre Jorge Aquino ✝
    Reverendo Padre Jorge Aquino ✝
  • 27 de fev. de 2019
  • 5 min de leitura
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Reverendo Padre Jorge Aquino.

Quando nos deparamos com um tema como esse, que trata da crise de fundamentos para a ética hodierna, precisamos compreender que esse é apenas um dos inúmeros aspectos a que essa ausência de fundamentos nos leva. Quando digo isso, quero dizer que em nosso mundo “pós-moderno”, no qual todas as “metanarrativas” já não têm sentido e no qual “Deus está morto” – o que destrói toda a metafísica e pretensão de absolutidade, o que observamos é uma crise ampla e irrestrita dos fundamentos da certeza. Assim, tanto os fundamentos do conhecimento filosófico quanto os do conhecimento científico vivem esse colapso.

Em função disso, autores como Tugendhat, podem afirmar sem qualquer problema que “a tentativa de Kant com vistas a definir o imperativo categórico da razão e dar-lhe um fundamento absoluto racional deve ser considerada como um fracasso” (Tugendhat, 1998, p. 163). Da mesma forma, desde que Kuhn escreveu seu texto sobre as revoluções paradigmáticas na ciência, ela também abdicou do seu status de absolutidade, compreendendo que o conhecimento científico nos dá, apenas uma verdade provisória. Essa tese foi definitivamente exposta quando Popper passa a caracterizar a ciência, acima de tudo, pela sua falseabilidade.

Para escapar dessa crise ou desse colapso em uma racionalidade ética, procuramos encontrar nos “valores” aquilo que a ética já não nos proporcionava. Assim, indiscutivelmente, a busca pelos valores é um indicativo de que inexiste uma garantia universalmente válida – seja a natureza, a razão, Deus ou a história – para fundamentar nosso “dever-ser”. Agora estamos entregues ao que Pierre Legendre chama de “self-service normativo”, no qual cada indivíduo pode escolher o comportamento que deseja esboçar e onde cada um pode escolher seus próprios valores. Escrevendo sobre isso, Morin dirá que “Os valores dão à ética a fé na ética sem justificação exterior ou superior a ela mesma” (MORIN, 2005, p. 27), ou, conforme o próprio Morin dirá adiante, os valores tentam fundar uma ética sem fundamento.

Conforme sustenta Morin no texto supra citado, esta crise de fundamento na ética é simultaneamente, produzida e produtora de um aumento da deterioração no tecido social; produz em cada um de nós o enfraquecimento do imperativo comunitário e da Lei coletiva; fragmenta a responsabilização nas organizações e empresas; gera uma exteriorização e um anonimato no que tange às responsabilidades individuais; desenvolve um princípio egocêntrico que sufoca o princípio do altruísmo; desarticula o vínculo indivíduo-espécie-sociedade; implica em uma desmoralização que culmina no anonimato tão comum à sociedade de massa, no empoderamento das mídias e na supervalorização do dinheiro.

Em um ambiente assim, toda as quatro fontes de uma ética saudável e responsável passam a ser contaminadas. A fonte individual sucumbe ao egocentrismo; a fonte comunitária fraqueja frente a destruição da solidariedade; a fonte social é minada e alterada por fatores como a compartimentalização, a burocratização e a corrupção; e a fonte bio-antropológica é subjugada pela primazia do indivíduo sobre a espécie.

O que nos resta é o niilismo que nos angustia e a saudade de uma sociedade na qual os fundamentos existiam e a vida possuía um sentido. Por isso, não devemos estranhar que muitos defendam “a volta aos antigos fundamentos comunitários nacionais, étnicos e/ou religiosos que trazem segurança psíquica e religação ética” (MORIN, 2005, p. 28). Não devemos desconhecer que é esse movimento que está por trás dos movimentos nacionalistas, neo-nazistas, supremacistas e fundamentalistas.

A saída para essa realidade está primeiro na aceitação de que a ética depende, de fato, de todas as condições sociais e históricas que a fazer surgir. Em outras palavras, não podemos mudar os fatos que nos colocam nessa realidade histórica e temporal. Em segundo lugar, precisamos reafirmar sempre que é no indivíduo que reside a decisão final de escolha de seus valores. Em terceiro lugar, precisamos renunciar a uma leitura linear que nos faz refletir no sentido de causa e efeito, e assumir uma visão recursiva na qual deve existir tanto uma adaptação do século à ética, bem como da ética ao século. Por fim, é preciso que voltemos a nutrir a ética em suas fontes expostas acima, e isso, porque, afirma Morin, “o ato moral é um ato de religação: com o outro, com uma comunidade, com uma sociedade e, no limite, religação com a espécie humana” (MORIN, 2005, p. 29). Se, por um lado, o princípio dia-bólico produziu essa realidade cindida, na qual as pessoas estão separadas umas das outras e dentro de si próprias, somente na reconstrução de um homem universal ou pluriversal, poderemos reconstruir a humanidade com uma nova ética.

A crise ética na qual vivemos, é a crise da religação indivíduo/sociedade/espécie. Urge, dessa forma, refundar a ética regenerando o circuito recursivo de religação entre esses três elementos fulcrais. Para Morin (2005, p. 29), essa regeneração tanto pode partir do despertamento interior da consciência moral, quanto do surgimento de uma fé ou de uma esperança, de uma crise, de um sofrimento, de um amor ou ainda, da consciência do vazio ético e da consciência de suas consequências. Como Morin sempre deixa claro, o caminho não está de todo traçado. No entanto, citando o poeta Antônio Machado, “el caminho se hace al andar”. E para andarmos em busca e por esse caminho, precisamos de uma fé que nos ajude a traçar os caminhos que levem à regeneração da responsabilidade e da solidariedade. A proposta de Morin não é de uma fé especificamente religiosa, mas de uma fé pascaliana. Ele explica: Pascal “havia compreendido muito bem que todas as certezas baseadas em provas da existência de Deus não proporcionavam a certeza absoluta. Daí sua resposta. Penso que estamos em uma época pascaliana no que se refere ao progresso humano. Não temos nenhuma certeza, nenhuma prova irrefutável de que haverá progresso, não temos nenhuma promessa, mas temos, apesar de tudo, finalidades e valores. Nós devemos apostar neles. E nutrir uma esperança. Uma esperança do improvável. […] Esperar o improvável, apostar e trabalhar na direção de nossas finalidades e de nossos valores é mais reconfortante do que se curvar diante do fato consumado ou apenas ‘sobreviver’” (PENA-VEGA, ALMEIDA, PETRAGLIA, 2001, p. 37).

Muito embora vivamos em uma sociedade sem fundamento racional para a ciência ou a ética – propostas ou promessas feitas pela modernidade -, isso não significa que o cristão esteja ou deve viver sem fundamento algum para sua vida e comportamento. Nossos valores e os fundamentos para nossa vida devem ser encontrados nas Sagradas Escrituras por meio de uma hermenêutica responsável e crítica. Esta hermenêutica não apenas utilizará os elementos históricos e gramaticais da interpretação, mas estará aberta para uma leitura diatópica (Boaventura de Sousa Santos) que respeite os horizontes hermenêuticos (Gadamer) de cada sujeito. Somente assim, satisfaremos às exigências de relevância para a sociedade hodierna. Ademais, cabe à Igreja – bem como à teologia – renunciar a pretensão de ser a possuidora da verdade última e admitir que o que temos é apenas uma verdade penúltima para as grandes questões da humanidade. Desta forma, diz Palácio, a teologia e a Igreja somente serão levadas a sério “quando deixar bem claro que a fé é, certamente, uma proposta particular, mas uma proposta sensata, para o único mundo que existe” (PALACIO, 2001, p. 136).

Referências bibliográficas:

MORIN, Edgar. O método 6: a ética. Porto Alegre: Sulina, 2005

PALACIO, Carlos. Deslocamentos da teologia, mutações do cristianismo. São Paulo: Loyola, 2001

PENA-VEGA, Alfredo; ALMEIDA, Cleide R.S.; PETRAGLIA, Izabel (Orgs.). Edgar Morin: ética, cultura e educação. São Paulo: Cortez, 2001

TUGENDHAT, Ernest. Conférences sur l’éthique. Paris: PUF, 1998

 
 
 

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