
Reverendo Jorge Aquino.
Quando procuramos saber o que se diz sobre o Anglicanismo nem sempre vemos que as informações apresentadas nos textos ou livros são, de fato, verídicas. Uma das visões que em geral as pessoas têm é que o Anglicanismo foi “criado” pelo Rei Henrique VIII. Estes autores, normalmente, são pessoas sem muito lastro acadêmico. No entanto quando nos acercamos de textos mais embasados, acadêmicos e oriundos de uma pesquisa mais acurada o cenário muda completamente.
A conhecida e respeitada Biblioteca de Autores Cristianos (BAC), por exemplo, editou um livro em 1972, escrito pelo conhecido professor de Dogmática, Padre José M. Gomez-Heras, da respeitadíssima Universidade de Salamanca, com o tema “Teologia protestante: sistema e história”. Lendo sua excepcional exposição acerca do Anglicanismo, encontramos algumas relevantes informações que gostaria de destacar.
A primeira constatação feita pelo professor de Salamanca diz que “A tradição teológica anglicana é inseparável do pano de fundo histórico político-cultural que condiciona sua origem e evolução e determina suas características” (1972, p. 209). O mesmo ocorre com toda e qualquer estrutura social, inclusive a própria Igreja Romana. É o contexto histórico, político e social que vai determina a formação e o desenvolvimento da identidade das instituições religiosas. Em outras palavras, todas as religiões são fruto destes elementos sociais, políticos e culturais. Esta informação, aplicada ao Anglicanismo, é fundamental.
Uma segunda afirmação feita pelo professor José Maria Gomez-Heras diz que estas influências características que foram citadas acima acabaram por criar uma igreja que, de um lado, “aparece como uma das maiores forças espirituais que configuram a historia e cultura inglesa” e por outro, “sua tradição teológica, tem sido, desde sempre, muito sensível à soma de fatores ‘não especificamente teológicos’ que tem condicionado, talvez por excesso, a interpretação anglicana do Evangelho como forma de existência” (1972, p. 209). Dentre os fatores não teológicos citados pelo eminente teólogo estão a política e os interesses monárquicos, o sentimento nacionalista, os elementos culturais associados ao estilo de vida e de pensamento britânicos. Deve-se registrar, contudo, que essa afirmação é mais adequada à Igreja na Inglaterra e não leva em conta que o Anglicanismo é a segunda igreja cristã mais difundida pelo planeta. Com isso, quero dizer que o Padre José Maria Gomez-Heras, neste tópico, apesar de ser preciso e correto, fala apenas da Igreja da Inglaterra, sem atentar para o fato de que o Anglicanismo se espalhou por todos os cinco continentes e que, em cada um deles, se comportou de forma específica.
Em terceiro lugar, é interessante notar que, conforme a leitura feita por esse eminente teólogo Católico Romano, “o cristianismo anglicano, ou, com outro nome, a Igreja nacional inglesa separada de Roma, não é um cristianismo propriamente protestante. A ruptura entre Roma e Cantuária não estava motivada por diferenças dogmáticas, como no caso das comunidades acatólicas centro-europeias, mas por um complicado caso jurídico-matrimonial” […] “Ou seja, se trata de uma Igreja nacional nascida não de uma doutrina herética, mas de uma atitude cismática” (1972, p. 210). De fato as diferenças doutrinárias entre o Anglicanismo e o Romanismo não foram o estopim que fizeram com que as duas igrejas se separassem, mas elas existiram, com toda certeza. A questão de fundo, no entanto, foi de ordem jurídica e política. Os Reformadores ingleses entraram em um movimento que já estava ocorrendo e acrescentaram um elemento a mais, qual seja, a teologia.
Em quarto lugar, o Padre José M. Gomez-Heras entende que há um outro fator muito importante que faz parte da identidade Anglicana, seu diálogo com o humanismo. De fato, para ele o Anglicanismo é o resultado da união de três ingredientes espirituais: o Catolicismo, o Protestantismo e o humanismo. Esta convergência experienciada no Cristianismo inglês acabou por fazer com que o Anglicanismo fosse uma “Igreja ‘ponte’ não só entre Roma y Wittenberg, mas também entre religião e cultura moderna” (1972, p. 211). Este diálogo existente entre os três fatores citados, acabaram por fazer crescer no Anglicanismo três orientações teológicas: o anglo-catolicismo (ou igreja alta), o evangelicalismo (ou igreja baixa) e a corrente racionalista-liberal (igreja larga). Desta forma o anglicanismo “aspira um cristianismo eclético, situado na famosa via média […] em um equilíbrio dogmático-litúrgico-institucional entre o catolicismo latino, o protestantismo centro-europeu e os princípios da cultura moderna” (1972, p. 211). Este equilíbrio fará com que tanto os 39 Artigos de religião, quanto o Livro de Oração Comum tragam consigo o compromisso de conviver entre estas tradições.
Para concluir, devo registrar e louvar a seriedade da leitura feita por este ilustre sacerdote Romano e professor de uma das mais antigas e famosas Universidades europeias. Ele consegue, sem ser parcial ou desonesto, apresentar estes quatro elementos identitários de uma forma clara e sistemática. Sem dúvida, a criação e o trabalho feito pela Comissão Internacional Anglicana Católica-Romana, deve ter contribuído bastante para que este texto revelasse um respeito e uma deferência que são notórias. Somente pessoas sem conhecimento, ignorantes ou alimentadas por alguma má vontade, apostariam na discórdia entre estas duas Igrejas irmãs seculares e venerandas.
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