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O ABORTO E A BÍBLIA – CUIDADO COM A INTERPRETAÇÃO

Foto do escritor: Reverendo Padre Jorge Aquino ✝Reverendo Padre Jorge Aquino ✝

Padre Jorge Aquino.

Recentemente foi descoberto o vazamento de um rascunho de documento da Suprema Corte americana acerca da possibilidade de se revogar o direito ao aborto, algo que já havia sido julgado desde 1973 por 7 votos a 2, no famoso caso “Roe v. Wade”. Eis que, como a formação atual dos membros da Suprema Corte possui hoje, uma maioria conservadora, a agenda da mudança de leitura sobre esse tema voltou à tona e, com ela, uma série de manifestações – contra e à favor – em todos os rincões dos Estados Unidos.

O que é interessante nisso tudo, é ver como as pessoas usam a religião para legitimar seu apoio ou sua rejeição ao aborto. Em geral a Bíblia é utilizada à exaustão para tentar fundamentar ambas as posições, contra ou à favor. No entanto, James Burtchaell é bastante claro quando afirma: “A Escritura nada diz do aborto nem tampouco do infanticídio. Trata deles indiretamente na proibição bíblica do sacrifício de crianças (Lv 18:21; 2Rs 21:6) e na multa imposta aos que causam um aborto numa briga (Ex 21:22)” (BURTCHAELL In LACOSTE, 2004, p. 50).

O surpreendente é que, quando lemos as Escrituras, encontramos lá uma espécie de “passo a passo” de como fazer um aborto, ou, pelo menos de como descobrir se a mulher está mentindo ou não. Refiro-me a um outro texto, desta feita, oriunda do livro de Números 5:19-22. Vejamos o que diz o texto na versão Almeida Atualizada: “O sacerdote a conjurará e lhe dirá: Se ninguém contigo se deitou, e se não te desviaste para a imundícia, estando sob o domínio de teu marido, destas águas amargas, amaldiçoantes, serás livre. Mas, se te desviaste, quando sob o domínio de teu marido, e te contaminaste, e algum homem, que não é o teu marido, se deitou contigo (então, o sacerdote fará que a mulher tome o juramento de maldição e lhe dirá), o Senhor te ponha por maldição e por praga no meio do teu povo, fazendo-te o Senhor descair a coxa e inchar o ventre; e esta água amaldiçoante penetre nas tuas entranhas, para te fazer inchar o ventre e te fazer descair a coxa. Então, a mulher dirá: Amém! Amém!”.

Confesso que já li esse texto dezenas de vezes, no entanto, jamais atentei para o fato de que ele fazia referência às instruções acerca do que fazer se alguém, eventualmente, estiver grávida de um homem que não é seu marido. Em outras palavras, apesar da linguagem machista e misógina, o texto bíblico está explicando sobre como fazer um aborto em caso de culpa.

Ao que tudo indica, quando lemos o contexto desse texto, verificamos que a grande questão é a seguinte: se houver suspeita de que uma mulher cometeu adultério e engravidou, o sacerdote a fará pronunciar um juramento que continha uma maldição que viria sobre ela e beber uma porção de “águas amargas”; caso fosse verdadeira a acusação ela sofreria, porque seus órgãos sexuais secariam e a sua barriga ficaria inchada, até cair. Na versão Atualizada está escrito: “fazer inchar o ventre e te fazer descair a coxa”, ao passo que a New International Version diz: e “seu ventre abortar e seu abdômen inchar”.

Um bom intérprete, contudo, há de atentar para a presença de uma palavra nesse texto que precisa ser estudada melhor. Quando verificamos o texto original em hebraico, vemos que o texto se serve da palavra (naphal – לנפ), que é traduzida para o português pelo termo “cair”, “prostrar-se”, “morrer”, “apodrecer”, etc. Neste texto, é visível que a palavra é utilizado como nascimento prematuro ou aborto, quando fala da queda do feto do ventre.

Nesse sentido Jó, que é descrito como um homem “íntegro e reto que temia a Deus e que se desviava do mal” (Jó 1:1), disse que desejava ou preferia ter nascido morto a viver com os problemas que estava passando naquele momento de sua vida. Desta forma, no texto de Jó 3: 16, lemos o seguinte: “como aborto oculto, eu não existiria, como crianças que nunca viram a luz”. Notemos que a palavra hebraica usada aqui e traduzida por “aborto” é a mesma que é usada em Números: (naphal – לנפ). E aqui, Jó revela preferir ser a não-existência de um aborto do que uma pessoa que sofria aquelas dores pelas quais estava passando.

Em outro texto, um dos autores do livro dos Salmos nos diz que ele desejava que os ímpios (incrédulos ou infiéis) fossem destruídos como uma criança abortada (Sl 58:8[9]). O texto diz: “Sejam como a lesma, que passa diluindo-se; como o aborto de mulher, não vejam nunca o sol”. Quando verificamos o texto em hebraico, percebemos que a palavra usada aqui também é a mesma que é usada em Jó e Números, qual seja: (naphal – לנפ). Esse era o sentimento do salmista acerca dos que não adoravam ao Deus Eterno. Eles deveriam ser mortos.

Em resumo, quando o sacerdote dava aquela poção de “águas amargas” para que a mulher bebesse, ele estava provocando o aborto – acreditava-se – nas mulheres que haviam cometido o adultério.

Perceba que, ao que parece, o aborto não é visto no texto bíblico com a mesma ambiguidade com que se vê nos dias de hoje. Não encontramos um grande debate acerca da legitimidade de sua prática ou não. Digo isso porque os Sacerdotes – homens santos e escolhidos para servirem no Templo -, tinham como uma de suas funções, provocar o aborto nas mulheres adúlteras.

Ademais, Jó, por seu turno, muito embora envolto pelas dores que sentia, desejava ter sido abortado por sua mãe e jamais ter nascido, para ter que passar pelo que estava passando naquele momento de sua vida. E esse desejo não o fez odiado por Deus.

E um dos chamados “Salmos imprecatórios” revela que o desejo do salmista era a morte dos hereges, ou seja, que eles fossem como crianças abortadas – que jamais chegaram a ver a luz do dia. Essas palavras saem das mesmas mãos que escrevem: “Na verdade, há recompensa para o justo; há um Deus, com efeito, que julga na terra” (Sl 58:11).

O que dizer hoje sobre esse tema? O grande problema é que tanto os Ateístas quanto os fundamentalistas tendem a ler a Bíblia da mesma maneira, ou seja, de forma inflexível e excessivamente literal. A diferença é que os ateus rejeitam o que leem, enquanto os fundamentalistas acreditam piamente nela. Há muita verdade no que estou dizendo, ou pelo menos o bastante para irritar os membros de ambos os grupos. No entanto, lamentavelmente, também existem cristãos que escolhem quais partes da Bíblia eles interpretam literalmente ou não. Ou seja, muita gente “seleciona” os textos bíblicos que eles preferem obedecer e quais os que devem ser vistos como ultrapassados. Essa forma de ler as Escrituras é desonesta. Por isso, é imprescindível conhecer um pouco mais sobre hermenêutica bíblica, ou seja, as normas por meio das quais interpretamos as Escrituras. Como introdução diria basicamente o seguinte. Em primeiro lugar, quando observamos a hermenêutica, compreendemos que a Bíblia deve ser lida dentro de seu contexto histórico, político e cultural. Não podemos, simplesmente, ler o texto e impô-lo de forma automática sobre pessoas que vivem em uma outra realidade sócio-político-cultural. Ler as Escrituras implica em utilizar os recursos que a ciência e a própria lógica dispõe. Não temos o direito de “pinçar” um versículo escrito na Palestina 1000 anos antes de Jesus e exigir que hoje, esse mesmo versículo seja adotado de forma acrítica.

Em segundo lugar, quando vamos interpretar as Escrituras, entendemos ser necessário – sempre que possível -, ler o texto em sua língua original. Dizemos isso porque, como dizem os italianos em seu famoso trocadilho: traduttore / traditore, ou seja, todo tradutor é um traidor. Na verdade, acredito que esse trocadilho é excessivamente forte. Talvez melhor seria dizer traduttore / interpretatore. Mas faz sentido, sim, buscar chegar o mais próximo possível do original para que tenhamos a certeza de que não estamos diante de um texto que é o resultado de uma tradução/interpretação. Por isso, ao invés de buscar o texto latino – que já é uma tradução feita por Jerônimo -, vamos direto aos originais hebraico, aramaico e grego.

Em terceiro lugar, outro detalhe que precisamos ter a humildade de compreender é que, quando lemos, nós também estamos lendo à partir de nossa própria realidade o que faz com que reconheçamos que toda interpretação é, também, uma imposição de sentido sobre o texto. É preciso ser muito ingênuo acreditar que na interpretação nós simplesmente “retiramos” o “sentido” original do texto. Na verdade, quando interpretamos, nós também estamos “impondo” um sentido oriundo de nosso contexto vital, sobre o texto. Assim, ao interpretar estamos “dando” um sentido ao texto, e não simplesmente, “retirando” o sentido que ele quis dizer.

Por isso, quando tratamos do tema do aborto – ou qualquer outro tema polêmico -, não podemos ser irresponsáveis a ponto de, simplesmente, fazer uma leitura literal das Escrituras. Urge que utilizemos a razão e observemos os contextos sócio-político-cultural para que tenhamos uma interpretação mais adequada. Urge que sejamos sábios o bastante para buscar o texto original e procurar a interpretação que a igreja deu, durante os séculos, ao texto em pauta. Urge que saibamos que mesmo essas interpretações foram feitas dentro de um contexto cultural próprio – como é o caso do platonismo presente na Patrística ou o aristotelismo na Escolástica. Por fim, urge que, sob a ação do Espírito Santo, busquemos textos paralelos para comparar a Escritura com a Escritura, e ver como tal tema é visto em todos os livros da Bíblia. Assim, com humildade e usando o tripé da Escritura, razão e tradição, poderemos tratar do aborto, bem assim, como de qualquer outro tema controvertido.

Referências bibliográficas:

LACOSTE, Jean-Yves (Edit.). Dicionário crítico de teologia. São Paulo: Paulinas e Loyola, 2004

 
 
 

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