HANNAH ARENDT E O TOTALITARISMO
- Reverendo Padre Jorge Aquino ✝
- 29 de jun. de 2021
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Atualizado: 16 de jul. de 2021
Reverendo Padre Jorge Aquino.
Indiscutivelmente, estamos verificando o surgimento de movimentos totalitários ao redor de todo o mundo. Este movimento totalitário acaba se expressando na esfera política e produzindo experiências locais de totalitarismo que vêm abalando os grandes avanços da democracia em todos os continentes. Neste breve opúsculo, nos limitaremos a observar algumas características do totalitarismo, a partir de uma leitura oriunda da ilustre filósofa alemã Hannah Arendt. Quando buscamos por uma definição de “totalitarismo”, uma que nos pode ser bastante útil vem da lavra de Chris Roltmann, para quem, o totalitarismo é um “sistema político no qual as atividades da sociedade civil ficam totalmente subordinadas às leis do Estado, tal como as outras formas de autoritarismo” (ROLTMANN, 2000, p. 408). Em função de sua íntima relação com o autoritarismo, o totalitarismo desenvolve uma hierarquia rígida, poderes absolutos – associados a uma figura carismática -, e o exercício desse poder de cima para baixo por meio de um forte controle dos meios de comunicação de massa.
Pelo visto, existem quatro palavras que estão intimamente ligadas ao totalitarismo: subordinação ao Estado, líder carismático, controle ideológico e violência. Iniciemos nossa reflexão, pensando na primeira expressão. Com toda a certeza, a pensadora alemã Hannah Arendt, é uma das maiores autoridades no debate em torno deste tema. E assim o é, porque ela é uma judia que conseguiu escapar das garras do nazismo e acabou migrando para os Estados Unidos. Lá, ela dedicou sua vida a estudar este fenômeno que, muito embora esteja presente em muitas outras épocas, se agudizou no século XX, e que, muito embora tenha se espalhado desde o Camboja até o Iraque, manifestou-se de forma mais sofisticada na Alemanha nazista de Hitler, na Itália de Mussolini, e em sua versão mais à esquerda, por meio do “camarada” Stalin. Para esta conhecida pensadora, “o governo totalitário objetiva controlar todas as dimensões da vida das pessoas através do terror. Para tanto, os movimentos totalitários tentaram abolir a separação entre as esferas públicas e privadas, e eliminar a própria essência da política: a liberdade” (CARDOSO JR., 2005, p. 87). Assim, suas pesquisas sobre este tema fez com que ela publicasse Origens do Totalitarismo, em 1951. Desta forma, verificamos que, no totalitarismo, a importância dada ao Estado é tão grande que todas as demais esferas passam a se subordinar a ele de forma plena. Qualquer forma de resistência ao pleno controle do Estado é visto como uma insubordinação ou um crime que precisa ser punido.
A segunda expressão que devemos atentar tem a ver com a importância de um líder carismático. Conforme assevera o pensador Roger Dadoun, “No auge do aparato totalitário reina o Líder, personalidade dita carismática por fascinar a sociedade, as massas, e às vezes os adversários complacentes. O Líder é violência: pela sua ‘estrutura de caráter1, no sentido reichniano do termo, até onde é possível distinguí-la” (DANDOUM, 1998, p. 84). Desta forma um sistema totalitário é absolutamente dependente de um líder carismático que, por meio de seu carisma, domina violentamente - e de forma hipnótica - as massas, tornando-as absolutamente passivas e reféns de sua vontade.
No dia 11 de maio de 1960, agentes de Israel capturaram Adolf Eichmann - tenente coronel das tropas SS -, na Argentina, e o levaram até Jerusalém, para ser julgados por crimes de guerra cometidos durante a II Guerra Mundial. O mundo inteiro se voltou para esse julgamento e a própria Hannah Arendt se interessou em assistir o julgamento. Em seu texto Eichmann em Jerusalém, ela descreveu a aparente “cotidianidade” daquele homem que foi um dos responsáveis pelo Holocausto. A figura que estava diante dela, sentado no banco dos réus, “não parecia o tipo de monstro que poderíamos imaginar. De fato, ele não daria a impressão de estar fora de lugar, se visto num café ou na rua” (VÁRIOS, 2011, p. 272). De fato, olhando para aquele homem sendo julgado, ninguém imaginaria que aquele marido e pai de família exemplar, aquele trabalhador honesto e bom visinho, seria um dos monstros responsáveis pela “solução final” que aniquilou mais de seis milhões de judeus.
Eis o grande paradoxo do totalitarismo. O líder carismático é capaz de, por meio de sua propaganda ideológica e da atomização do indivíduo, influir tão fortemente nas mentes que as pessoas não conseguem emitir julgamentos morais independentes. Assim, Arendt concluiu que “o mal não provém da malevolência ou do desejo de fazer o mal” (VÁRIOS, 2011, p. 272), mas de uma falha em seu julgamento e em seu pensamento, que as impedia de compreender que eram instrumentos de um sistema maior que elas. Assim, “Sistemas políticos opressivos são capazes de tirar vantagem da nossa tendência para tais falhas, possibilitando que pareçam normais certos atos que possivelmente consideraríamos ‘impensáveis’” (VÁRIOS, 2011, p. 272). Desta forma, todos nós devemos estar atentos para as falhas existentes nos regimes políticos, bem assim, as eventuais falhas em nosso pensamento.
Este é o ambiente ideal para o surgimento de regimes totalitários: Estados convivendo com uma crise em seu regime político e pessoas ávidas a encontrarem quem lhes diga o que é certo ou errado, qual o caminho a seguir e que lhes faça esquecer a angústia de ter que assumir autonomamente as rédeas de sua vida. Um país entregue à corrupção e habitado por gente ignorante é o ambiente ideal para o surgimento de um regime totalitário.
Conforme já vimos, o regime totalitário está associado, em terceiro lugar, a um sólido controle ideológico. Este controle ideológico retroalimenta e legitima a existência e a manutenção de um Estado que atomiza as pessoas por meio de um líder carismático absoluto que tem a possibilidade de agir violentamente sem qualquer freio. Conforme assevera Celso Lafer, Hannah Arendt “mostra como o totalitarismo, valendo-se da transformação das classes em massas, erigiu uma nova forma de dominação baseada no emprego do terror e da ideologia, na qual o racismo – no caso do nazismo – serviu como uma maneira de assegurar a coesão das massas” (LAFER, p. 26, 27). Para esta autora, para que as massas pudessem ser adequadamente administradas, era necessária a criação de uma burocracia que realizasse tal papel. Dentre os elementos que caracterizariam essa instância estariam dois, que seriam fundamentais: a propaganda, que orquestraria a verdade oficial na forma de uma ideologia, e a atomização do indivíduo, que igualaria a todos frente ao terror. Segundo afirma Lechte, para Arendt o Estado totalitário usa a “polícia secreta em suas operações normais; não é fundamentado em nada senão no mito que ele produz a respeito de si mesmo. O estado totalitário é essencialmente baseado na propaganda e é bastante impermeável à realidade material. Por meio da propaganda, perseguidor e perseguido, realidade e fantasia é apagada” (LECHTE, 2002, p. 206). Na verdade, a propaganda – repetida várias vezes -, acaba por incapacitar o indivíduo de distinguir entre o que é fantasia e o que é realidade. Em uma situação assim, a manipulação das massas se torna algo real e, dessa forma, o líder carismático assume aspectos absolutos e inquestionáveis. Todos os que se levantam contra ele devem ser calados.
Eis que chegamos, agora, a quarta palavra que está no fundamento e na base do totalitarismo, mas que também é uma de suas mais claras conseqüência, a violência. Esta relação íntima (e dialógica) entre a violência (o terror) e a propaganda, é destacada por André Duarte quando ele diz: “Os dois pilares de sustentação dos regimes totalitários são o terror e a ideologia, os quais se articulam de maneira complementar: ao mesmo tempo em que a ideologia justifica e demonstra previamente a necessidade e inevitabilidade do emprego da violência terrorista e aniquiladora, é também por meio do terror que se criam e se reproduzem condições sociais e políticas que, em concordância com a ideologia totalitária, transformam os supostos inimigos do regime em seres humanos degradados e perigosos que precisam ser aniquilados” (DUARTE, In PECORARO, 2009, p. 150). Assim, a ideologia e a propaganda tanto alimentam, quanto são alimentadas pela violência e pelo terror.
Para Hannah Arendt há duas grandes lições que todos nós precisamos aprender com o totalitarismo. A primeira delas é que “o totalitarismo é a negação mais radical da liberdade” (ARENDT, 2008, p. 347), assim, aquele que não se mobiliza quando sua liberdade está em risco, pode, quando menos esperar, se ver aprisionado pelos tentáculos totalitários. Em segundo lugar, a existência de movimentos totalitários em nosso mundo não-totalitário, é a prova de que o totalitarismo exerce um fascínio sobre pessoas que são a prova viva “da falência de toda a estrutura da moralidade, de todo o corpo de mandamentos e proibições que tradicionalmente traduziam e encarnavam as idéias fundamentais de liberdade e justiça em termos de relações sociais e instituições políticas” (ARENDT, 2008, p. 347). Não nos surpreendamos se alguém que conhecemos, em que pese sua vida pacata e seu comportamento aparentemente irretorquível, começar a defender e a realizar atos que firam frontalmente a justiça, a moral e a vida, cerceando a liberdade dos que pensam diferente. Não nos surpreendamos quando, de repente, aqueles que julgávamos pessoas tão racionais e sensíveis, forem capazes de cometer as maiores atrocidades em nome de uma ideologia que legitima um regime e uma pessoa que os lidera. Eis que a violência acaba por se impor, em realidades assim. É nesse sentido que Dandoum entende ser o sistema totalitário “estruturado pela e para a violência, presente em toda parte e de todas as formas. Isto supõe uma organização adequada, origina, dos meios, agentes, instituições e outros fatores constitutivos do sistema” (DANDOUM, 1998, p. 84). Desta forma, o Estado totalitário, instrumentalizando toda a sua estrutura de poder, dominando os meios de comunicação para difundir sua ideologia com a finalidade de subordinar todos ao líder carismático-messiânico, tem toda a liberdade de agir violentamente para concretizar seus interesses e eliminar qualquer forma de pensamento contrário. Assim, arremata Dandoum, “O totalitarismo instaura o reino do terror: o Partido e as numerosas organizações que controla e mantêm a sociedade inteira como sua dependente, arregimentando jovens, mulheres, crianças, idosos, profissionais de todo tipo, artistas, intelectuais, sábios – aos quais são ditas palavras de ordem em comportamentos, e impostos sentimentos, crenças e emoções. A própria noção de ‘vida privada’ perde todo sentido e passa a ser vista como crime” (DANDOUM, 1998, p. 86). Esta ligação entre o totalitarismo e o terror é de extrema importância. O Estado totalitário acaba existindo como uma espécie de – segundo Arendt -, uma sociedade secreta que subsiste à luz do dia.
Para encerrar, devemos compreender quer, por mais odioso e detestável que seja o totalitarismo, ele ainda é uma realidade suportável para uma população que esteja amedrontada pela simples razão de que ele apresenta um certo grau de gratificação. Esta gratificação consiste na sensação de pertencimento de grupo, ou seja, um sentimento comunitário difuso no qual o indivíduo se fortalece pelo reforço dos demais e pela eliminação dos “inimigos” internos, ou seja, do “outro” ou do “diferente”.
Referências bibliográficas:
ARENDT, Hannah. Compreender: formação, exílio e totalitarismo. São Paulo: Companhia das letras; Belo Horizonte: UFMG, 2008
CARDOSO JR., Nerione. Hannah Arendt e o declínio da esfera pública. Brasília: Senado Federal, 2005
DANDOUM, Roger. A violência: ensaios acerca do “homo violens”. Rio de Janeiro: DIFEL, 1998
LAFER, Celso. Hannah Arendt: pensamento, persuasão e poder. São Paulo: Paz e Terra, 2003
LECHTE, John. 50 pensadores contemporâneos essenciais. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002
PECORARO, Rossano. Os filósofos clássicos da filosofia. Vol III. Petrópolis, RJ: Vozes; Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2009
ROLTMANN, Chris. O livro das idéias. Rio de Janeiro: Campus, 2000
VÁRIOS. O LIVRO DA FILOSOFIA. São Paulo: Globo, 2011

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