Da Validade do Matrimônio Anglicano
- Reverendo Padre Jorge Aquino ✝
- 30 de jul. de 2018
- 13 min de leitura

Reverendo Cônego Jorge Aquino [1].
Introdução:
Como ministro anglicano em um país de maioria romana eventualmente me vejo diante de pessoas que perguntam acerca da validade ou não dos matrimônios celebrados em nossas comunidades. Muitas destas pessoas nos procuram depois de conversar com sacerdotes romanos que, sem qualquer cerimônia, simplesmente declaram a invalidade do matrimônio anglicano (assim como do batismo) sem sequer refletir sobre as consequências e a veracidade do que está sendo dito. A impressão que tenho é que na cabeça desses sacerdotes somente os atos realizados na igreja de Roma possuem validade para com Deus. Mas será que as coisas são de fato assim? Afinal, nossas celebrações são válidas ou não? Diante desses questionamentos, resolvi fazer algumas considerações no intuito de esclarecer aqueles que, por alguma razão, possuem dúvidas acerca do matrimônio anglicano.
1.Reconhecimento de quem?
A primeira consideração que gostaria de expor é que, ao que parece, muitos daqueles que estão preocupados com a validade do matrimônio anglicano estão, na verdade, preocupados em saber se a Igreja Romana vai reconhecer esse casamento. Para estes eu perguntaria: afinal, de que reconhecimento realmente precisamos? Ou, qual o reconhecimento que efetivamente buscamos? Quem deveria efetivamente reconhecer nosso casamento? Para responder essa pergunta é possível citar pelo menos três instâncias: Deus, a sociedade e a Igreja.
Vamos usar um pouco nosso raciocínio e perguntar, em primeiro lugar, o seguinte: será que Deus reconhece como válidos os casamentos que foram realizados pela Igreja Anglicana nos últimos 1700 anos? É minha absoluta convicção que sim, e mais adiante procurarei expor minha argumentação. De fato, acho muito difícil que alguém com o mínimo de conhecimento de história da teologia possa duvidar da validade do matrimônio anglicano. É claro que estou falando de alguém que levou a sério o estudo da teologia e não de algum animador de auditório que mercadeja a Palavra de Deus procurando simplesmente agradar seus ouvintes.
Mas se Deus aceita o matrimônio anglicano como sendo válido, será que a sociedade, os noivos ou suas famílias o rejeitaria? Ainda usando da razão, me parece pouco provável que os noivos, suas famílias e, por via de conseqüência, a sociedade, rejeitaria a validade do matrimônio anglicano e, mesmo assim, procurasse a Igreja para ministrar esse sacramento. Seria uma total e absoluta contradição. Será que a sociedade inglesa, americana, canadense, australiana, neozelandesa, e todas as outras sociedades na qual a Igreja Anglicana está presente desde sempre, rejeitaria como inválidos os casamentos celebrados por essa Igreja?
Voltando os olhos para nosso país, sabemos que nossas leis estabelecem as normas necessárias para que as celebrações religiosas (de qualquer religião visto que vivemos em um Estado laico) recebam o necessário efeito civil e oportunizem o reconhecimento do Estado. A simples existência desse reconhecimento já demonstra inquestionavelmente que a sociedade brasileira reconhece o matrimônio anglicano.
Finalmente, pergunto pela Igreja romana. Será que esta Igreja reconhece o matrimônio celebrado nas Igrejas anglicanas? Se quisermos buscar uma resposta a esta pergunta, teremos que procurar em pelo menos três fontes: (1) as declarações oficiais dessa Igreja, (2) os documentos produzidos pelas comissões comuns e, (3) comparar a teologia das duas Igrejas.
2. A Igreja romana reconhece?
Acerca das declarações formais da Igreja Romana, podemos invocar, em primeiro lugar, o conhecido Guia Ecumênico que foi produzido pelo clero romano. Lá, encontramos a seguinte declaração: “Não é fácil expor a posição dos anglicanos ou episcopais, em relação ao matrimonio, por causa da comprehensiveness ou pluralismo de sua teologia. Para a corrente majoritária, o matrimônio está incluído entre os “sacramenta minora”, considerados de instituição eclesiástica, à imitação dos “sacramente maiora”, de instituição divina” (CNBB, 1984, p. 185, 186).
Aparentemente, com estas palavras o Guia Ecumênico da Igreja romana, acaba impingindo uma certa dúvida acerca da validade ou não dos matrimônios anglicanos em razão da existência, dentro do anglicanismo, de correntes que colocam o matrimônio ora entre sacramentos maiores – ou seja, os instituídos por Deus, ora entre os menores, ou seja, aqueles que foram estabelecidos pela Igreja.
Apesar destas palavras dúbias o próprio Guia reconhece que “a Igreja Católica considera que o matrimônio entre batizados é verdadeiro e próprio sacramento, sempre que à sua celebração não se oponha um impedimento dirimente” (CNBB, 1984, p. 186). Devemos esclarecer que os impedimentos dirimentes são aqueles que tornam o matrimônio inválido, ou, conforme está escrito no Código de Direito Canônico (CDC), no Cânon 1073 “o impedimento dirimente torna a pessoa inábil para contrair validamente o Matrimônio”. Dentre estes impedimentos estão a impotência, a consangüinidade próxima, o rapto ou o ato contra a vontade, etc. Comentando o cânon 1073 do CDC, Jesús Hortal assim se expressa: “Impedimentos dirimentes são proibições legais, baseadas em circunstâncias pessoais de caráter objetivo, que constituem um obstáculo à celebração válida do matrimônio. Trata-se, pois, de uma lei inabilitante” (Código de Direito Canônico, p. 474).
Em outras palavras, desde que os nubentes sejam validamente batizados, aptos para gerar filhos, não sejam parentes próximos nem estejam sendo coagidos a este gesto, estamos diante de um sacramento válido. É por isso que o cônego católico-romano José Luiz Villac afirma, com respeito aos luteranos, que: “Na igreja evangélica luterana, em que o batismo é válido, o casamento entre os fiéis dessa confissão é reconhecido também como válido pela Igreja Católica, inclusive como sacramento, pois o contrato matrimonial entre cristãos batizados é sempre sacramento” (A palavra do sacerdote. Disponível em <http://www.catolicismo.com.br/materia/materia.cfm?IDmat=1CFD7480-3048-560B-1C9DE101FAB64D65&mes=Junho1998> acessado em 30 de dezembro de 2014).O mesmo raciocínio é utilizado com respeito aos anglicanos. No entanto, para que não haja mais qualquer dúvida acerca do matrimônio na igreja Anglicana, citamos o Guia Ecumênico da Igreja romana, que diz: “Diversas Igrejas batizam, sem dúvida, validamente; por esta razão, um cristão batizado numa delas não pode ser normalmente rebatizado, nem sequer sob condição. Essas Igrejas são: (…) c) Igreja Episcopal do Brasil (“Anglicanos”)” (CNBB, 1984, p. 26, 27).
Ora, se a Igreja romana reconhece o matrimônio daqueles que foram legitimamente batizados e não possuem qualquer impedimento dirimente, e se, a Igreja romana reconhece a validade do batismo das Igrejas anglicanas, deduz-se logicamente, que ela reconhece os matrimônios celebrados nessas comunidades, desde que não estejam presentes aqueles impedimentos dirimentes.
Esta posição da Igreja romana é coerente com sua teologia, afinal, para esta Igreja, “O ser sacramental do matrimônio deriva do ser cristão dos nubentes e não da concepção teológica das Igrejas” (CNBB, 1984, p. 186). Esta posição confirma o que afirmamos acima, ou seja, que a Igreja romana reconhece como sacramento os casamentos realizados entre cristãos batizados desde que os cônjuges não sejam, por exemplo, parentes ou divorciados.
Outra forma de saber sobre o pensamento da Igreja de Roma sobre o matrimônio anglicano é examinar os documentos produzidos pelas comissões bilaterais. Ora, conforme todos sabem, desde a década de 60 que o Bispo de Roma e o Arcebispo de Cantuária criaram uma comissão que discutiria o diálogo entre estas duas tradições cristãs. Esta comissão se chama ARCIC, ou seja, Anglican—Roman Catholic International Commission. Boa parte dos encontros e dos relatórios produzidos por essa comissão dizia respeito à teologia das duas Igrejas. Contudo, existe uma outra comissão que trata do Diálogo entre Anglicanos e Católicos, o ARCCM.
No texto da ARCCM que trata acerca do matrimônio misto, aprovado em 1975, fica-se entendido que, quando se trata de casamento envolvendo uma situação padrão – noivos adultos, exercendo sua liberdade, sem grau de parentesco e solteiros ou viúvos, “No casamento, a Comissão não encontra nenhuma diferença fundamental de doutrina entre as duas Igrejas, no que diz respeito ao casamento de sua natureza ou aos fins que é ordenado servir.”. O texto deste documento é revelador. No número 21, assim se expressa o documento: “A linguagem do Vaticano II na Gaudium et Spes (47-52), fundamentando o casamento na ordem natural, no pacto mútuo ou pacto (pactum, foedus) dos cônjuges, é totalmente uno com a interpretação da aliança do casamento escrita no Liturgias anglicanas. A natureza sacramental do casamento é também afirmada, em parte no sentido moral da obrigação duradoura (sacramentum) expressa no voto matrimonial, parcialmente no sentido de signo (signum): um sinal para o mundo do que o casamento na ordem natural da parte de Deus ordenança é e deveria ser; um sinal para o mundo e para a Igreja da aliança irrevogável de Cristo com a Igreja e do amor mútuo que encontra expressão entre Ele e a Igreja, e que deve existir entre os membros da Igreja; e um sinal para as pessoas casadas, para o mundo e para a Igreja, de que a continuidade dentro da aliança depende da graça perdoadora e renovadora de Deus; e finalmente em ser feito por Cristo em um sinal efetivo de graça quando é celebrado entre os batizados. É de tudo isto, com a continuação da vida sacramental da Igreja, que o casamento cristão assume o seu carácter específico e alcança a sua plenitude. O casamento natural teve, no começo, todo o potencial de ser feito sacramental na ordem da redenção. o significado sacramental foi declarado como parte do “mistério” (sacramentum) dispensado e revelado na plenitude dos tempos por Deus através de seu Filho e reconhecido como tal pelo apóstolo; Assim, a linguagem de Efésios 5, interpretando o amor conjugal em termos do amor de Cristo pela Igreja e vice-versa, exprime adequadamente nossa teologia comum do casamento, e é tão apropriadamente entrincheirada em nossas liturgias matrimoniais respectivas. Essa convergência substancial na doutrina, apesar das diferenças a linguagem usada para expressá-lo, é um fato bem-vindo de nosso tempo, precioso demais para nos permitir repousar nas polaridades sugeridas pelas formulações condicionadas pelo tempo da Reforma e da Contra-Reforma” (Disponível em <https://iarccum.org/archive/ARCCM/ARCCM-33B.pdf> acessada em 30 de dezembro de 2014).
Um conhecido teólogo católico também cita este documento registrando o que se segue: “A doutrina anglicana, formalmente expressa em sua liturgia, concebe o matrimônio como uma ordenação de Deus na ordem da criação, assumido por Cristo e pela Igreja na ordem sacramental como representação da união de aliança entre Cristo e a Igreja, e significando efetivamente a santificação do matrimônio e seus membros dentro da comunhão de Cristo e da Igreja” (ARCIC 1975 apud FLÓREZ, p. 267, 268, n. 39).
Ainda uma outra informação interessante pode ser encontrada no documento da Anglican—Roman Catholic International Commission intitulado “Vida em Cristo: moral, comunhão e a Igreja”, escrito em 1993. Lá, à altura do número 61, as duas igrejas afirmam ser o matrimônio, na ordem da criação,sinal e realidade do amor fiel de Deus, e, assim, tem uma dimensão naturalmente sacramental. Desde que ele também aponta para o amor salvador de Deus, imbuído no amor de Cristo pela Igreja (cf. Ef 5,25), ele se abre para uma sacramentalidade ainda mais profunda dentro da vida e da comunhão do próprio Corpo de Cristo (ARCIC apud Paulinas, 2001, p.42).
Em outras palavras, do que foi exposto acima, com base nos textos escritos pela Igreja Romana e pelas comissões bilaterais, não temos porque duvidar da validade dos casamentos realizados pela Igreja Anglicana. Mas continuemos nossa reflexão.
Uma última forma de demonstrar que o matrimônio das duas Igrejas são igualmente válidos é apresentar sua teologia comum. No que tange à teologia da Igreja anglicana, nós encontramos sua maior expressão em sua liturgia presente no Livro de Oração Comum. Ora, um exame deste texto revelará – conforme afirmou a ARCIC – que nada existe que ponha em dúvida a validade do matrimônio anglicano.
Quando nos debruçamos sobre a liturgia anglicana vemos que ela preserva os quatro elementos fundamentais para que um matrimônio seja válido, quais sejam: (1) matéria válida, (2) fórmula correta, (3) intenção – ao menos virtual – do ministro em realizar o que a Igreja deseja com o rito, e (4) intenção por parte do sujeitos em fazer livremente o que estão a fazer. Isto posto, considerando que os ministros anglicanos usam o Livro de Oração Comum como texto das celebrações matrimoniais e, considerando que esta liturgia exige os quatro elementos indispensáveis para sua validade, então, não há dúvida de que os matrimônios anglicanos são válidos.
É bem verdade que, em função de dogmas bastante peculiares – que particularmente acho compreensível embora não convincentes – a Igreja Romana não aceita os casamentos que envolvam nubentes divorciados. Estes casamentos, para os romanos, seriam inválidos vez que postulam a unidade e a indissolubilidade do casamento. Nem mesmo um casamento realizado dentro da Igreja Romana, por um padre romano conferiria validade a este sacramento.[2] Entre os Anglicanos a realidade é um tanto variável. Cada Província (igreja) anglicana possui suas próprias regras e interpretações. Se, de um lado, a Igreja da Inglaterra (Church of England) permite a separação a thoro et mensa (de cama e mesa) com uma caução contra o novo matrimônio, enquanto viver o outro cônjuge, outras Províncias entendem de forma diversa. Conforme registra Flórez,
“A maioria das igrejas rejeita a celebração religiosa do novo matrimônio dos divorciados, mas os aceita como marido e mulher na plena comunhão da Igreja (às vezes, depois de uma abstenção voluntária da comunhão) quando seu matrimônio consta no regime civil. Algumas igrejas (Canadá, Estados Unidos, Nova Zelândia, Austrália) abandonam o princípio estrito da indissolubilidade e dão normas, através dos sínodos provinciais, para a admissão controlada de pessoas divorciadas que contraem novo matrimônio” (FLÓREZ, 2008, p. 270, n. 46).
Esta postura mais dilatada que caracteriza, além das igrejas canadenses, americana, australiana, etc., também as Igrejas Anglicanas do Brasil, em geral, buscam seu apoio em uma teologia que aponta a capacidade da graça para libertar, perdoar e recriar a realidade. Para estas igrejas a indissolubilidade não é uma marca da essência do matrimônio, mas um desejo ou um alvo de Deus e da Igreja para todos os matrimônios.[3]
3. Um pouco de história da teologia
Uma outra linha de pensamento diz respeito à posição anti-pelagiana historicamente aceita pelos anglicanos. Ora para os anglicanos (e romanos) a validade dos sacramentos ou atos sacramentais, independe tanto da dignidade do sacerdote quanto da consciência ou não de estarmos diante de um ato sacramental. Ora, no início deste texto citei o Guia Ecumênico da Igreja Romana afirmando existir uma diferença entre grupos anglicanos acerca da forma como a sacramentalidade do matrimônio é encarada. Para muitos essa dês-crença implicaria na invalidade do sacramento anglicano. Pergunto: a ausência da crença de que o matrimônio é um sacramento maior retira seu caráter sacramental? Claro que não.
Ora, conforme sabemos, somente em torno do século IV é que surgem as primeiras liturgias cristãs do matrimônio e que este só seria reconhecido universalmente como um sacramento[4] ao lado dos outros seis, em torno do século XI. Fiorenza, por exemplo, ao tratar desse assunto nos informa que, “A incorporação do matrimônio na ordem dos sacramentos ocorreu durante o período medieval entre o século XI e o XII. (…) De fato, as primeiras afirmações oficiais explícitas do matrimônio como sacramento ocorrem em declarações condenando os cátaros. Em 1184 o concílio de Verona, sob o papa Lúcio III, anatematizou os cátaros por suas opiniões sobre o matrimônio. Em 1208, o papa Inocêncio III exigiu como condição para o retorno ao catolicismo que os valdenses subscrevessem uma profissão de fé que aceitava todos os sacramentos da igreja, incluindo o matrimônio” (FIORENZA, In FIORENZA; GALVIN, 1997, p. 407, 408).
Outro dado interessante é saber que, conquanto os teólogos escolástico-primitivos houvessem incluído o matrimônio entre os sete sacramentos da igreja, diferindo de todos os demais, eles não lhe atribuíram nenhum efeito de graça. Franz-Josef Nocke vai claramente afirmar que “somente no século XIII, com a valorização da sexualidade, se abriu caminho para admitir um efeito de graça” (NOCKE in SCHNEIDER, 2001, p. 331) sobre o sacramento do matrimônio. E isso se deu em função da influência aristotélica de que o “natural é bom”. Dessa forma os atos conjugais passam a ser definidos como bons e meritosos, ou seja, que efetivamente confere alguma graça.
Isto significa que durante mais de 1000 anos os padres cristãos romanos, que celebravam casamentos não acreditavam estar celebrando, em essência, um sacramento com o mesmo status que o batismo e a eucaristia. Se a ausência da crença nessa sacramentalidade do matrimônio invalida o casamento, então, além dos sacerdotes anglicanos de tradição reformada, todos os padres romanos até o século XII, casaram pessoas invalidamente. Honestamente, não creio que a Igreja de Roma tenha coragem ou esteja disposta a afirmar algo assim.
Até aqui apresentamos uma demonstração simples e despretensiosa da validade do matrimônio anglicano. A prova mais cabal e recente de que a Igreja de Roma reconhece os matrimônios realizados na Igreja Anglicana, no entanto, pode ser encontrada no convite feito pelo Papa Bento XVI em outubro de 2009 aos padres anglicanos casados que desejassem migrar para a Igreja Romana. No documento que expressa esta posição da Igreja de Roma, está claro que, quando não há qualquer impedimento, os padres anglicanos casados são recebidos sem a exigência de um re-casamento.
Que há algumas diferenças entre a forma romana e a anglicana de ver a sacramentalidade do matrimônio, não há dúvidas. No entanto, há inquestionavelmente mais pontos em comum do que discordâncias. Estas diferenças, no entanto, estão dentro daquilo que poderíamos descrever como elementos secundários[5] da interpretação teológica. Nesta linha de pensamento, cito um dos parágrafos mais significativos presente no Decreto “Unitatis Redintegratio”, que versa sobre o ecumenismo: “Resguardando a unidade nas coisas necessárias, todos na Igreja segundo o múnus dado a cada um, conservem a devida liberdade, tanto nas várias formas de vida espiritual e de disciplina, quanto na diversidade de ritos litúrgicos, e até mesmo na elaboração teológica da verdade revelada. Mas em tudo cultivem a caridade. Agindo assim, manifestarão, sempre mais plenamente, a verdadeira catolicidade e apostolicidade da Igreja” (nº 4, 1984).
A Carta Encíclica “Ut Unum Sint”, parece seguir na mesma linha quando ressalta, à altura do número 65 que “as ‘discrepâncias’ acima acenadas, ainda que importantes, não excluem, portanto, influencias e complementariedades recíprocas” (Ut Unum Sint, nº 65, 1995).
Diante de tudo o que foi exposto, particularmente espero (espera-se) que os padres Romanos sejam mais dedicados ao estudo de sua própria teologia e evitem emitir juízos sem um conhecimento mais aprofundado acerca da credenda e da agenda das demais igrejas, particularmente, dos Anglicanos. Na mesma linha de raciocínio, se algum casal tem dúvidas sinceras acerca da validade dos matrimônios anglicanos, o melhor a fazer é buscar sua igreja de origem e conformar-se com sua doutrina. Quanto ao mais, satisfaço-me em acreditar no que a minha razão, a história e a teologia me mostram. Estas três instâncias me tranqüilizam e me fazer acreditar completamente na absoluta validade dos matrimônios anglicanos.
Referências bibliográficas:
ARCIC, Vida em Cristo: Moral, Comunhão e a Igreja. Paulinas: São Paulo, 2001.
CNBB, Código de Direito Canônico. Loyola: São Paulo, 1983
CNBB, Guia Ecumênico. Paulinas: São Paulo, 1984
CNBB, Ut Unum Sint. Paulinas: São Paulo, 1995
FIORENZA, Francis; GALVIN, John (orgs.). Teologia Sistemática: perspectivas católico-romanas Vol. 2. Paulinas: São Paulo,1997
FLÓREZ, Gonzalo. Matrimônio e família. Paulinas: São Paulo, 2008
SCHNEIDER, Theodor (org.) Manual de Dogmática Vol. II.Vozes: Petrópolis, 2001
UnitatisRedintegratio, In Compêndio do Vaticano II. Vozes: Petrópolis, 1984
http://www.prounione.urbe.it/dia-int/arcic/doc/e_arcic_classific.html acessado em 18 de janeiro de 2011
http://www.catolicismo.com.br/materia/materia.cfm?IDmat=1CFD7480-3048-560B-1C9DE101FAB64D65&mes=Junho1998 acessado em 18 de janeiro de 2011
NOTAS
[1] O Rev. Cônego Jorge Aquino é presbítero anglicano ligado à Paróquia Anglicana de São Jorge. Atua especialmente na área de aconselhamento e realização de matrimônios em Natal-RN. Graduado, especialista e mestre em teologia, licenciado e mestre em filosofia, é também especialista em direito. Autor de vários livros nas áreas teológicas e jurídicas. Ensinou Filosofia do Direito, Hermenêuticas Jurídica, Sociologia Jurídica e outras cadeiras propedêuticas do currículo jurídico em várias faculdades em Natal.
[2] Para fins de ilustração, deve-se ressaltar que o direito canônico romano entende que o matrimônio é nulo quando ocorre uma das seguintes causas: a) impedimento dirimente, b) falta de consentimento, e c) falta de forma.
[3] Um debate bastante promissor acerca deste tema teria que considerar os aspectos exegéticos e teológicos do texto de Mt 19,6. Para uma discussão introdutória desse tema sugerimos a leitura de um texto de nossa lavra intitulado Reflexões sobre o divórcio, publicado na Revista Inclusividade, vol2 em 2002.
[4] É bem verdade que Jerônimo traduziu a palavra mysterium de Ef 5,32 como sacramentum. No entanto esta tradução não deve ser vista como uma definição de que o matrimônio era um sacramento no sentido que terá na Idade Média. Efetivamente, seria mais conveniente entender esse sacramento num sentido mais lato, como ocorre, por exemplo, com Santo Agostinho. Para ele, afirma Fiorenza (In FIORENZA; GALVIN, 1997, p. 405),“há em todos os matrimônios, e não apenas nos matrimônios cristãos, um sacramento”. Conforme sabemos, Agostinho utilizou o termo sacramento em dois sentidos, geral e estrito. Em seu sentido geral, sacramento refere-se a “palavras, coisas e ações visíveis que são símbolos do que é invisível e transcendente. Em sentido mais estrito, sacramento refere-se especificamente aos sacramentos da igreja católica, entre os quais o batismo e a eucaristia possuem um papel predominante. Agostinho compreende o sacramento do matrimônio no sentido amplo e não no estrito, como é evidente em seu tratado sobre os benefícios do matrimônio” (FIORENZA, In FIORENZA; GALVIN, 1997, p. 405).
[5] Lembramos, aqui, da brilhante frase seguidas vezes atribuída a Agostinho e que diz: “No essencial, unidade; no secundário, liberdade; em tudo, amor”.
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