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DA JUSTIÇA À SEGURANÇA JURÍDICA ONDE ESTÁ O EQUILÍBRIO?

  • Foto do escritor: Reverendo Padre Jorge Aquino ✝
    Reverendo Padre Jorge Aquino ✝
  • 25 de abr. de 2020
  • 7 min de leitura

Reverendo Padre Jorge Aquino.

Via de regra a oposição entre justiça e segurança jurídica[1] praticamente inexiste nos tribunais. Isto acontece porque a maioria das decisões judiciais tomadas em nosso país costuma ser visto como a expressão da justiça. É claro, no entanto, que às vezes – principalmente quando estamos diante dos chamados hard cases – precisamos decidir se ficaremos a favor da segurança jurídica ou se sustentaremos o acreditamos ser mais justo.

Tomar esta decisão não é uma coisa fácil. Afinal, quem, em sã consciência decidiria ficar contra a justiça? No entanto, me parece que quando falamos aqui em justiça o que estamos efetivamente dizendo é Direito, ou Lei. Posicionar-se contra a Lei ou contra o Direito é bem mais fácil do que litigar contra a justiça.

Este texto tem como objetivo procura ser uma reflexão, ou pelo menos, a pontuação de certas convicções, que gravitam em torno deste dilema. Para tanto, nos serviremos de uma fundamentação na ontologia fundamental e de uma crítica à metafísica, como ferramentas conceituais para examinar o tema.

A questão que se impõe seria: é possível determinar qual seria a medida certa entre os valores inversamente proporcionais da justiça e da segurança jurídica? Na discussão deste tema nos serviremos de três momentos. O primeiro será temático, o segundo histórico e o terceiro propositivo.

I. Aspecto temático

Neste primeiro momento de debate, nos deteremos à uma discussão sobre os conceitos envolvidos, que no caso, deverão girar em torno da justiça. Se fizermos uma pesquisa sobre o termo justiça perceberemos que os gregos situavam o “justo” entre Thêmis e Dikê, ou seja, entre a balança e a espada. Isto significava que quando os reis (basileos) queriam exercitar a justiça, o que normalmente ocorria com o uso da espada, eles se cercavam de Themis para procurar as themister, ou seja, as declarações justas – o que exigia o equilíbrio da balança.

Quando nos voltamos para Aristóteles, particularmente em sua Ética, descobrimos que nele há dois sentidos para “justiça”. O primeiro dele dá conta de que o homem Justo (dikaios) era aquele cujo comportamento se encaixava no arcabouço de sua sociedade e cumpria as obrigações devidas para com os deuses e para com o próximo. Quem tem uma Dikaias zoe, desta forma, tem um “modo civilizado de vida”, diferente do bárbaro, vez que aderia às regras de uma sociedade ordeira. O “justo”, portanto, é uma ação, ou seja, o homem justo é aquele que pratica atos justos. Esta colocação afasta o estagirita de uma postura essencialista (onde a essência determina a existência) e o aproxima do existencialismo.

Em um segundo sentido, surge um desenvolvimento normal, e esperado, desta ideia que se desdobrará na noção de Dikaiosynê, ou seja, daquele “padrão que o juiz é obrigado a sustentar e restaurar sempre”. Esta é a justiça descrita por Aristóteles como Hôs hó nomos, ou seja, “de conformidade com a lei”. Conforme ela é derivada da primeira não pode ser superior àquela, ainda que aponte para ela e procure realizá-la. Segundo Aristóteles, Dikaiosynê, é uma das quatro virtudes do homem, ao lado da prudência (Phronesis), temperança (sophrosynê) e Coragem (andréiai).

Do que vimos, deduzimos que Justiça é algo prático, particular e construída socialmente, bem distinto de um elemento metafísico universal e teorético existente em algum mundo das ideias de caráter platônico. Em outras palavras, neste texto estou assumindo uma postura nitidamente nominalista, em contraposição ao realismo platônico que advoga a existência de um “mundo das Ideias” perfeitas em oposição à realidade concreta. Ao rejeitar uma justiça metafísica e estabelecer suas experiências concretas e individuais, queremos dizer que, uma vez que a realização da justiça ocorre quando se dá “a cada um o que lhe é devido”, a distribuição efetiva dos bens, riquezas e honras, em uma sociedade real, é a realização fática desta justiça. A equidade (a adequação da norma ao caso concreto) é o instrumento adequado que deve ser usado pelos juristas para que essa justiça seja efetivada.

Disto tudo, concluímos a primeira parte deste texto dizendo que a equidade está a serviço da justiça da mesma forma que a dikaiosynê à serviço do dikaios e o legalismo à serviço da legalidade. Isto significa que O direito, desta forma, se transformaria na arte do bom e da equidade (jus est ars boni et aequi). Voltar às origens clássicas da sociedade ocidental seria o mesmo que redescobrir a questão do Ser enquanto Ser virtuoso.

II. Aspectos histórico

Com a saída do período clássico passando pela Idade Média e chegando até à modernidade, observamos que o tema da justiça também sofreu algumas modificações significativas. Sobre estas mudanças faríamos algumas considerações. A primeira delas é que a modernidade foi responsável pela transmutação do jurídico de arte em técnica. Esta, aparente, pequena mudança, no entanto, representará a distância entre uma atividade que permite a ação criativa e a que apenas exige a repetição mecânica de um gesto.

Em segundo lugar, a modernidade realizou a associação do Direito com o Estado. Foi justamente na modernidade que surge o Estado moderno soberano que substituirá a realidade medieval do sacro Império Romano-Germânico. Como o surgimento do Estado ocorre legitimado pelas teses contratualistas – das quais a mais radical (a de Hobbes) afirmava que sem o poder do Estado, que garantiria a segurança em troca da perda de alguns direitos individuais, a sociedade viveria em um estado de natureza onde o homem seria o lobo do homem – a justiça ou “o justo” seria a aplicação correta das normas estatais.

A nossa terceira afirmação advoga que, por trás desta tese e fundamentando seu raciocínio, estava o jusracionalismo moderno que apregoava como fundamento metafísico desta nova sociedade o direito natural/racional imutável e eterno. Os principais propugnadores destas teses essencialmente metafísicas foram E. Kant e G. Hegel.

Com respeito à Kant, diríamos que ele representa o apogeu do pensamento individualista burguês do século XVIII. Em sua grande fórmula jusnaturalista – que será o Imperativo Categórico – ele nos ensina que o “justo” nos é apresentado como uma lei universal cuja concretização está ao alcance do indivíduo racional. Justiça é, desta forma, um dever absoluto que consiste em tratara cada ser humano como um fim em si mesmo, nunca como meio para obtenção de algo.

Quanto à Hegel, ele, efetivamente levará adiante sua tese de que a história é guiada pelo Espírito Absoluto (Razão) por meios de regras inexoráveis que, de forma dialética, encaminha a história até o seu fim já pré-determinado. Nada mais metafísico do que isso. Neste projeto de filosofia da história, o Estado representa o momento superior da dialética histórica. O Estado, desta forma, pode ser descrito como o racional em si e para si.

Resumindo, enquanto Kant nos dá a inspiração e a estrutura individualista burguesa por meio do Direito Natural universal, Hegel fornece o método de concreção por meio do Estado burguês. Estes dois pensadores operaram dentro da tradição que se esqueceu do Ser e que se voltou para o estudo dos Entes. Ocorre, desta forma, uma escolha por privilegiar o estudo dos entes (o conhecimento do conhecimento e a determinação histórica) em detrimento do estudo do Ser-do-ente.

III. Aspectos propositivos

Quanto às proposições que faríamos para este debate enumeraríamos da seguinte forma. Em primeiro lugar, é nossa convicção de que não devemos ceder à tentação de confundir nem reduzir o fenômeno jurídico ao mero normativismo estatal. Esta é uma tendência em nosso país e, particularmente entre muitos operadores do direito que são marcados pela preguiça de estudar e de se aprofundar nos temas. Limitar-se às normas é muito mais fácil do que efetuar uma pesquisa sobre o tema que se quer estudar.

Em segundo lugar, afirmo que, ao invés, precisamos começar a abandonar este fetiche jurídico centrado na letra da lei e nos voltar para a dimensão hermenêutica da Compreensão (vestehen) enquanto dimensão mesma do ser-no-mundo (in-der-welt-sein). Esta substituição de uma epistemologia da interpretação pela ontologia da compreensão, se ocorrer, estará fundamentando a manifestação do Direito a partir da concretude dos fatos e das relações sociais.

Em terceiro lugar, afirmo que, muito mais importante que perder-se no debate estéril acerca da metafísica – que operou um esquecimento do ser – urge repensar o fenômeno jurídico (a justiça) à luz da ontologia fundamental, o que significa “vislumbrar a hipótese de o fenômeno jurídico existir na esfera autêntica” (MAMAN, p. 71). Este caminho de resgate da ontologia fundamental é (1) mais geral porque dá um sentido mais amplo do que a investigação das ciências positivas; e (2) mais concreto porque decide do Ser do ente que a põe. Ao decidir acerca do Ser-do-ente, vislumbramos a autenticidade do “ser-si-mesmo”[2]. Por tudo isso, este é um caminho superior.

Em quarto lugar, afirmo ser necessário fugir do mero aprisionamento metafísico que procura perseguir um ideal de “justiça” que não existe. Fugir às amarras da metafísica não implica em submeter-se à proposta pragmática que prefere tolher o debate sobre a justiça de certos atos do Judiciário fundamentando-se em razões bem fundadas na ideologia dominante que defende a “segurança jurídica” como quem está diante de um mecanismo de defesa do Estado[3].

Em quinto lugar, quero registrar que defendo uma postura intermediária que acredita na justiça, mas em uma justiça que é construída pela sociedade. Proponho uma teoria consensual que procure definir o que entendemos socialmente por “justiça” e que a efetive com a legitimidade das ruas. Fundamento-me em Hume, para quem a justiça era uma virtude artificial fundada numa convenção social preexistente. Para nós, a justiça seria uma construção mundana (espaço) e fática (tempo) do Ser-do-Ente que pratica a justiça. Desta forma, a única possibilidade do dasein autenticar-se é assumindo-se dikaiós-Dasein.

Afirmar posicionamentos fortes acerca da justiça ou da segurança jurídica inevitavelmente nos levará ou bem para o legalismo fetichista, ou bem para o voluntarismo personalista. A única via de escape para estas possibilidades está, nestes dias pós-metafísicos, na adoção de um pensamento débil que permita a com-corrência (correr ao lado de) e a convivência destes dois conceitos, ainda que formando um paradoxo. Reafirmar a possibilidade da convivência do paradoxo é dizer que a justiça é o fim, o direito é o meio e que os dois aos necessários. Este jusnaturalismo mitigado, ou nominalismo jurídico, pode ser claramente visto na proposta de Kantoriwicz, juiz alemão que propunha um Direito Livre.

Notas:

[1] Referimo-nos, particularmente à noção de coisa julgada, ato jurídico perfeito e direito adquirido.

[2] Esta frase “ser-si-mesmo” nos faz lembrar que este tema já estava presente no Fausto de Goethe (1749-1832) que diz: “torna-te a ti mesmo”; que também está no Totem e Tabu de Freud (1855-1939) ao dizer “Sê o que tu és”; que aparece também no Ecce Homo de Nietzsche (1844-1900) quando diz: “como tornar-se o que se é”; e, finalmente no Ser e Tempo de Heidegger na forma: “como se chega a ser o que se é”. Ser-si-mesmo, é ser autêntico, ou ser, é ser autônomo, e não heterônomo, permitindo que alguém decida por nós acerca do que faremos de nossa vida.

[3] Este mecanismo de defesa do Estado, único ente que tem o direito legítimo do exercício da força, quer nos fazer crer que somente quando o poder é exercido a paz social é possível. A paz, contudo, não é construída pelo exercício do poder (dominação) mas da justiça.



 
 
 

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