
Padre Jorge Aquino.
Sempre que pensamos em um conceito de pecado, inevitavelmente nos vem à mente declarações que pontuam ser o pecado “Qualquer ação, atitude ou disposição que fracasse em cumprir ou alcançar de modo completo os padrões da justiça de Deus. Pode ser uma transgressão real da lei de Deus ou uma falha em viver segundo suas normas” (ERICKSON, 1991, p. 125). Esta definição ou conceito de pecado, parece conter todos os elementos fundamentais para que uma ação ou omissão possa ser vista como pecado.
O grande problema que reside em todas as definições ou em todos os conceitos, é que, por natureza, todo conceito é equivocado, vez ser incapaz de traduzir exatamente o significado do que se deseja conceituar. E, por ser incapaz de abarcar toda a realidade toda a realidade que pretende, ele é, também reducuionista. Sua impotência reside justamente no fato de que todo conceito imagina ser capaz de traduzir, cabalmente, conteúdos, realidades e fatos. Alguém já disse que todo conceito é uma “caixa” que pretende dar conta de toda a realidade, quando, de fato, não pode fazê-lo. Dito isto, talvez seja mais fácil dizer o que o pecado não é. Desta forma podemos dizer que o “Pecado não é noção jurídica nem projeção neurótica de tabus inconscientes: assinala muito mais a relação do agir humano com o Absoluto, com Deus” (LEPP, Ignace, In RUF, Ambrosius Karl, 1977, p. 9).
Dito isso, acredito que existem algumas questões preliminares que não podemos olvidar acerca desse tema. A primeira e mais significante, tem a ver com a dualidade entre o pessoal e o social. Berkhof nos lembra que “A teologia moderna insiste em interpretar o pecado de uma maneira social, isto é, com referência ao próximo” (BERKHOF, 1985, p. 126). Não podemos esquecer que, conforme o relato bíblico, “A quebra de relação com Deus afeta diretamente nosso relacionamento com nosso semelhante. Adão voltou-se contra Eva e culpou-a por sua própria insensatez (Gn 3:12). Em seguida temos a história do assassinato de Abel (Gn 4:1-16). O homem inimigo de Deus é também inimigo de seu semelhante, um estranho, um inimigo, uma ameaça em lugar de um amigo” (MILNE, 1987, p. 111). O pecado trouxe conflitos e grandes divisões em toda a humanidade. Não creio que existe, necessariamente, uma contradição entre pecado pessoal e social. Na verdade os dois se retroalimentam porque um acaba por gerar o outro. É uma insensatez e uma hipocrisia condenar alguém porque se serve de bebida alcoólica em sua vida privada, ao mesmo tempo em que não emite uma palavra sequer contra os responsáveis pela existência de milhões de famílias que não conseguem três refeições para um dia de suas vidas.
Em segundo lugar, é importante questionar aspectos relacionados as ciências da suspeita. Não há dúvida de que o pecado é uma realidade primariamente vertical porque diz respeito a nossa relação para com Deus. Mas nós seríamos obtusos, ignorantes e tolos se não considerássemos que o homem que se vê como transgressor é, também, membro de uma realidade histórica na qual vive suas circunstâncias individuais que o fez observar e interpretar realidades que, outra pessoa, em outra realidade histórico/social e outras circunstâncias vivenciais, não veriam o cometimento de erro algum.
Assim dentro os pensadores da suspeita, começaremos um o que nos diz o ilustre psicanalista Sigmund Freud. Na verdade, ele, e mais fortemente, seus seguidores, investiram contra a culpa moral vendo-a apenas como uma manifestação tipicamente patológica. Desta forma, afirma Moser (1996, p. 32), “o pecado não encontra espaço em Freud, e muito menos no freudismo. A consciência do pecado deverá ser erradicada para que as pessoas possam viver ‘sadiamente’”. Como se pode ver, a ausência de uma consciência de pecado aponta exatamente para um comportamento sadio, ao passo que, a sensação de culpa reflete a presença de uma patologia que precisa ser tratada.
Outro pensador da suspeita, o conhecido psicólogo behaviorista Burrhus Frederic Skinner, afirma que o homem jamais poderá ser responsabilizado pelo mal que, eventualmente, venha a praticar. E essa é a realidade acomete a todos nós em virtude do fato de que a liberdade é apenas uma ilusão que nutrimos. Na verdade, para ele, “o ser humano é vítima de um jogo entre impulsos e rações incontroláveis. Estes impulsos, tanto biogenéticos, quanto sociais, escapam totalmente ao controle dos indivíduos” (MOSER, 1996, p. 33). Em outras palavras, para os pensadores behavioristas, não se pode falar em culpa ou dolo. Nós não temos a liberdade para escolher qual caminho seguir, mas apenas refletimos os condicionamentos que foram, desde sempre, impostos sobre nós.
Outro ilustre pensador da suspeita é Karl Marx. Segundo esse pensador, a realidade na qual vivemos, é dividida em duas realidades. De um lado existe uma infraestrutura constituída pelo viés econômico, de outro, uma superestrutura com caráter especificamente ideológico. Desta forma, para Marx, a religião faria parte da superestrutura ideológica de uma sociedade e que serviria para manter a realidade de dominação dos mais fortes sobre os pobres. Assim, este aparato religioso, fortalecido e amparado por todo um aparato normativo e legal, “tende a manter as camadas dominadas na passividade e a esperarem a libertação no além. Daí suas críticas contra a religião, e mais especificamente contra a moral cristã” (MOSER, 1996, p. 35). Marx postula um humanismo ético que deveria substituir a moral burguesa – apoiada pela religião -, que perpetuava e legitimava a alienação do ser humano. Portanto, percebemos que a religião, ao lado do aparato legal, das escolas e da política, são instrumentos à serviço da moral burguesa que, identifica como pecado, qualquer gesto que procure modificar esta realidade.
Em terceiro lugar, acreditamos ser, sim, importante e necessário reformular nossa noção de pecado. De acordo com Ambrosius Ruf, (1977, p.9) todo pecado possui quatro elementos comuns. Em 1º lugar, o pecado é uma ação. Muito embora ações meramente subjetivas e interiores possam ser qualificados como pecados, em geral, entendemos que o pecado é associado a algo que pode ser visto e descrito.
Em 2º lugar, o pecado é uma ação má. De uma perspectiva ética, entendemos por pecado qualquer espécie de ação que contraria a ordem determinada que expressa o que “deve ser”. Desta forma, quando o “ser” age de forma contrária ao que “deve ser”, ele peca, ele erra o alvo.
Em 3º lugar, o pecado se dirige contra Deus. Toda ação pecaminosa é, antes de mais nada, uma ofensa contra Deus ou contra sua vontade. Mesmo quando nossa ação pecaminosa atinge a vida das pessoas, ela é uma ação contra Deus porque sua vontade é que amemos ao próximo como a nós mesmo.
Em 4º lugar, o pecado é uma ação que procede da decisão livre do homem. Na base dessa afirmação existe o pressuposto de que todos somos livres e responsáveis pelo que fazemos. Nesse sentido, existe uma valorização da liberdade e da capacidade humana em escolher os caminhos que deseja seguir. Assim fazendo, a humanidade age e assume as responsabilidades por seu ato.
No entanto, eu acrescentaria um 5º elemento a este conjunto, qual seja, sua universalidade. O pecado é uma realidade comum a todas as pessoas. Seja ele interpretado como for, esta é uma experiência que está presente na vida de todos nós. Portanto, todos nós devemos buscar, em Cristo, a solução para nossos pecados.
Dentre os filósofos e teólogos mais modernos que trataram do tema, encontramos, por exemplo em Kierkegaard, alguém que afirmava ser o pecado “o resultado do uso da liberdade do homem para encontrar segurança em alguma coisa humana, finita, ao invés de repousar totalmente em Deus” (KIERKEGAARD, In RAMM, 1975, p. 106). Assim, ele interpreta o pecado como uma espécie de fuga da presença de Deus para reafirmar sua plena liberdade.
Quando lemos sobre o pensamento de Brunner, compreendemos que, para ele, as características do pecado estão inerentemente associadas à rebelião. Em suas palavras: “O pecado não é o fenômeno primeiro, não é o princípio, mas o distanciamento do princípio, o abandono da origem, o rompimento com aquilo que Deus deu e estabeleceu”. (...) “O pecado é emancipação de Deus, abandonando a atitude de dependência , para tratar de ganhar absoluta independência, que faz o homem igual a Deus” (BRUNNER, In RAMM, 1975, p. 106). Neste mesmo caminho segue Reinhold Niebuhr quando escreveu em seu texto The Nature and Destiny of Man, nos diz que “O pecado é, então, a não vontade do homem de reconhecer que é dependente e que é criatura de Deus e seu esforço de fazer sua própria vida independentemente e segura” (NIEBUHR, In RAMM, 1975, p. 106), e coloca o pecado relacionado ao orgulho do homem e em sua superestimação.
No caso de Paul Tillich, em sua Teologia Sistemática, influenciado pela visão hegeliana de alienação - que nada mais seria do que o pertencimento a quem lhe é estranho -, Tillich compreende ser essa alienação uma expressão do pertencimento ao aspecto terreno de seu ser. Assim, uma vez estado em pecado, o homem não está em comunhão com Deus. Desta forma, escreve Ramm (1975, p. 108) “esta alienação é a essência do pecado”. Concordando com essa leitura, D.G. Bloesch entende que “Paul Tillich entendia que o pecado consistia na alienação do seu eu verdadeiro e do fundamento da sua existência pessoal” (BLOESCH, In ERWELL, Vol III, 1990, p. 113).
Segundo nos lembra Bloesch, para os defensores da Teologia da Libertação, o pecado é redefinido em três termos bem específicos. De um lado ele é visto como a “opressão social, exploração e aquiescência à injustiça”, em segundo lugar, como “a ganância por ganhos financeiros às custas dos pobres” e, em terceiro lugar, como a prática da desumanização e opressão das pessoas. Por outro lado, “a salvação é aquilo que as humaniza, aquilo que as liberta para vidas relevantes e criativas” (In ERWELL, Vol III, 1990, p. 113).
Acredito que é possível compreender o pecado como uma espécie de disfunção da vida. Ora, se 1º, no Novo Testamento a palavra grega utilizada para descrever o pecado é amartia, ou seja, “errar o alvo” ou “não atingir um propósito”; se 2º nosso alvo de vida é sermos “perfeitos como é perfeito (teleioi) nosso Pai” (Mateus 5:48), então 3º evitar o pecado é viver na busca da realização de nosso alvo. Assim como uma caneta “perfeita” não pode ser usada como chave de fenda, ou um livro “perfeito” não pode ser usado para lustrar móveis, pessoas “perfeitas” não são necessariamente aquelas que não cometem erros morais ou éticos, mas as que realizam a sua razão de ser. A grande pergunta que se põe frente à todos é: qual o sentido do nosso ser? Para tanto, é preciso tomar a decisão e termos coragem para ser. Esta leitura do pecado associa a visão funcionalista ou pragmatista com a existencialista, e evita reduzir o pecado a apenas uma questão meramente moral, ou seja, a algo que pode mudar no tempo e no espaço.
Para concluir, seria necessário pontuar que, frente a tantos desafios de readequar a noção de pecado a uma realidade pós-metafísica, parece-nos desnecessário investir tempo em discutir a crença na distinção entre pecados mortais e pecados veniais. No passado compreendia-se ser “a distinção entre pecados mortais e pecados veniais no sentido de que o pecado mortal é extinto pela penitência pública da Igreja, e os pecados leves pela penitência privada” (RUF, 1977, p. 57). No entanto, além de não existir qualquer fundamentação bíblica ou racional que nos leve a assumir essa posição este debate nos parece infrutífero e sem sentido. Creio que o mesmo pode ser dito ao que comumente se chama de “sete pecados capitais”. O que precisamos resgatar hoje é a nossa realidade pecaminosa e a necessidade de nos voltarmos para o Caminho de Jesus, que é o caminho do amor. Assim, com base nas palavras de Paulo em Romanos 13:8 que diz: “aquele que ama seu próximo tem cumprido a lei”, Santo Agostinho chega a afirmar, “ama e faz o que quiseres”. Por fim, lembremos da linda letra da música composta por Denisse de Kalafe que diz: “Amor cuando hay amor, No hay pecado”.
Referência bibliográfica:
BERKHOF, L. Manual de doutrina cristã. Campinas/Patrocínio: Luz Para o Caminho/CEIBEL, 1985
ERWELL, Walter A. Enciclopédia histórico-teológica da igreja cristã. Vol III. Vida Nova: São Paulo, 1990
ERICKSON, Millard J. Conciso dicionário de teologia cristã. JUERP: Rio de Janeiro, 1991
MILNE, Bruce. Conheça a verdade. ABU: São Paulo, 1987
MOSER, Frei Antônio. O pecado. Vozes: Petrópolis, 1996
RAMM, Bernard. Diccionario de teologia contemporanea. Casa Bautista de Publicaciones: Montevideo, 1975
RUF, Ambrosius Karl. Pecado: o que é?. Vozes: Petrópolis, 1977
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