
Reverendo Jorge Aquino.
Chegamos, agora, à última petição feita na Oração do Senhor. Ela diz: “Mas, livra-nos do mal”. No texto original, que foi escrito em grego, lemos: “αλλα ρυσαι ημας απο του πονηρου” (Mateus 6:13). Na verdade, Gioia (1981, p. 127) chega a afirmar que essa deve ser, “constantemente a nossa oração”, vez que estamos, a todo momento, cercados de toda forma de tentação que nos convida ao erro e à queda. Desta forma, por meio desta afirmação, ou melhor, desse pedido, podemos destacar alguns tópicos sobre os quais devemos nos ater com um pouco mais de zelo. Em primeiro lugar, não há como discordar que esta sétima petição está intimamente relacionada à sexta, que diz: “não nos deixes cair em tentação”. Esta ligação é clara, já que a tentação acerca da qual oramos ao Senhor, afim de que não nos permita cair, é produto da ação do mal, ou do maligno. O pastor luterano Martin Volkmann, ressalta o fato de que “as duas ultimas preces se destacam das demais pelo seguinte aspecto: apenas a Sexta Petição está em forma imperativo negativo, enquanto que a Sétima está ligada por uma conjunção adversativa àquela. Ela de certa forma é uma antítese para a anterior; enquanto que na Sexta Petição se pede algo de forma negativa, a Sétima o expressa positivamente. (...) a tentação e o mal estão relacionados entre si assim como os olhos e a visão” (VOLKMANN, In KILPP, 1982, p. 183). Esta é razão pela qual Champlin chega a dizer que alguns exegetas “consideram essa expressão como extensão da anterior; e para esses existiriam somente seis petições. Embora a gramática grega possa sustentar essa ideia, aqui a expressão pode ser reputada como outra petição” (CHAMPLIN, 1985, p. 324). Em que pese a existência dessas duas correntes, o que precisamos destacar com mais força ainda, é que esta oração, apesar de poder ser subdividida em sete partes – ou talvez em seis -, reflete claramente uma unidade e, dessa forma, deve fazer parte e envolver todos os momentos de nossa vida. Por isso as primeiras petições são verticais e as ultimas horizontais.
Em segundo lugar, esta sétima petição, pede a Deus que nos livre. A palavra “livra-nos” é a tradução do grego “ρυσαι” (rusai). Este termo aponta para a ação de resgatar, livrar ou libertar. Aqui o termo aponta claramente para a ação de Deus, livrando seu povo. É preciso ressaltar e compreender que o agente da ação de “livrar” é o próprio Deus. É ele, nosso Pai que está no céu, que se digna estender sua graça e nos amparar com suas mãos, não apenas para que não caiamos em tentação, mas também para nos livrar de toda as forma de mal. Na Bíblia, é sempre Deus que livra seu povo de todos os seus perseguidores, como foi o caso de faraó que, quando perseguia o povo de Deus, foi detido pela potente mão do Senhor. Contudo, especificamente no Novo Testamento, esse termo somente aparece 15 vezes, apontando sempre para libertação ou livramento. Na maioria das vezes em que ele aparece, ele está relacionado com algum evento escatológico. Portanto, não seria errado dizer que nesta oração, os cristãos estão pedindo a Deus “pela libertação definitiva do poder do mal, poder que... procura lançar o homem na perdição eterna e diante do qual ele não consegue se impor. E com esta prece se mostra... que Deus não é apenas Criador, mantenedor e salvador... mas simultaneamente o Senhor eterno que põe o mal ao seu serviço” (KASCH, Apud VOLKMANN, In KILPP, 1982, p. 185, 186). Este pedido, feito no aqui e agora, se estende para o nosso futuro, para o eskaton. Que Deus, dessa forma, nos liberte sempre, inclusive no momento de nossa morte.
Por fim, em terceiro lugar, esta sétima petição, pede a Deus que nos livre do mal. No entanto, quando lemos o texto no original “πονηρου”, traduzido por “do mal”. No texto original, a palavra ponêrou aponta para algo prejudicial ou que é essencialmente ruim. Observando o termo, percebemos que, estando no genitivo, ele pode ser originalmente neutro ou masculino, ou seja, pode se referir a uma coisa ou a uma pessoa. Por isso, esta expressão tanto pode se referir ao mal de forma mais genérica ou geral, como no caso de tentações, más condições de vida ou um grande sofrimento, como também pode estar se referindo ao próprio diabo. Segundo interpreta Wesley, essas duas possibilidades simplesmente não existem. Desta forma, esse conhecido evangelista anglicano afirma peremptoriamente que “A tradução deve inquestionavelmente ser ‘do Maligno’. O Maligno é Satanás, enfaticamente chamado príncipe e deus desse mundo, que age com força e poder naqueles que são desobedientes a Deus. Todos os que são filhos de Deus pela fé são libertados de suas mãos” (WESLEY, 2017, p. 157). Quem concorda com Wesley é o conhecido pregador e conferencista anglicano John Stott que, refletindo sobre esse texto assim escreve: “o ‘mal’ deveria ser traduzido por ‘o maligno’ (como em 13:19). Em outras palavras, é o diabo que está sendo considerado, que tenta o povo de Deus a pecar, e do qual precisamos ser ‘livrados’ (rusai)” (STOTT, 1985, p. 154, 155). No entanto, boa parte dos intérpretes permitem as duas possibilidades. É assim, por exemplo, no caso de Martin Lloyd-Jones que assim escreve: “Alguns eruditos pensam que se deveria entender aqui, ‘mas livra-nos do Maligno’. Porém, penso que isso limita o sentido da passagem, porque, neste caso, o ‘mal’ inclui não somente a pessoa de Satanás, mas também todas as formas e variedades do mal. Certamente Satanás está incluído na palavra ‘mal’, porquanto precisamos ser defendidos dele e de suas artimanhas” (LLOYD-JONES, 1984, p. 362). Para Calvino, no entanto, tanto faz se estamos pedindo que Deus nos livre do mal ou do Diabo. Afinal, “o Diabo é o inimigo que maquina nossa ruína e perdição; e o pecado, as armas que emprega para destruir-nos” (CALVINO, 1981, III, xx, 46). Nosso pedido seria, portanto, para que “não sejamos vencidos e envolvido por nenhuma tentação, mas que, com a virtude e o poder de Deus, permaneçamos fortes contra todo o poder inimigo que nos combate” (CALVINO, 1981, III, xx, 46). É nesse sentido mais ampliado que o Pequeno Catecismo Católico: Eu creio, apresentado pela Associação Ajuda a Igreja que Sofre, afirma: “Quando suplicamos ‘Livra-nos do Mal’, apresentamos toda a miséria do mundo ao Pai celeste. Pensamos nas catástrofes que nos ameaçam, mas também no Mal em que nos vemos implicados, muitas vezes sem querer, ou no qual implicamos ou outros. Pensamos nas leis e nas práticas egoístas e injustas por culpa das quais as guerras não acabam, os poderosos se tornam cada vez mais poderosos, os ricos cada vez mais ricos, os pobres cada vez mais pobres e os assistidos cada vez mais dependentes” (EU CREIO, 2005, p. 189). Neste aspecto, falar das misérias e dos sofrimentos pelas quais tantas pessoas passam, nos faz parar para clamar pela intervenção de Deus. Mas o mal pode envolver questões bem mais associados a aspectos pessoais, como também a questões conjunturais. De uma perspectiva pessoal, o mal, mais do que uma mera força maligna difusa, assume concretude em toda “atividade humana, que coloca o bem individual acima do bem coletivo, pratica o engodo e difunde mentiras para assegurar vantagens. (...) Ela é capaz da tortura, de mil crueldades, até do assassinato” (BOFF, 2011, p. 124). Quando pensamos no mal de uma perspectiva conjuntural ou sistêmica, verificamos que a maldade, segundo comenta Boff (2011, p. 125) “vira sistema cultural, econômico e político, conquista até as religiões, internaliza-se nas vidas das pessoas e as mantém reféns de seus antivalores e maus hábitos”. Neste momento, comenta o ex-frade franciscano, quando o mal já não é mais visto como mal e se torna algo normal e até natural, então ele assume seu paroxismo e seu ápice.
Um sábio e piedoso resumo do que significa fazer essa sétima petição nos é apresentada pelo ilustre reformador alemão Martinho Lutero ao dizer, “Suplicamos, em resumo, nessa petição que o Pai celeste nos livre de todos os males que afetam o corpo e a alma, os bens e a honra, e, finalmente, quando vier a nossa hora derradeira, nos conceda um fim bem-aventurado e nos leve, por graça, desse vale de lágrimas para junto de si, no céu” (LUTERO, 1983, p. 375). Da mesma forma, em uma de suas orações ao Pai, nosso Senhor assim se expressou, segundo João, “Não peço que os tires do mundo, e sim que os guardes do mal”. (João 17:15). Eis o desejo de Jesus e, por conseguinte, eis a nossa prece! Que nesse vale de lágrimas sejamos livres dos males que nos afetam o corpo e a alma, e que por fim, em sua graça, Deus nos leve até sua paternal presença e nos acolha em seus braços amorosos.
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