
Reverendo Jorge Aquino.
Introdução
Principiamos, agora, um breve comentário sobre a Oração do Senhor. A importância dessa oração foi reconhecida desde muito cedo, na Igreja cristã. Não é sem sentido que Tertuliano entende ser ela um breviarium totius evangelii, ou seja, um resumo de todo o Evangelho. De fato, em cada uma de suas petições, apresenta um aspecto que entendemos ser fundamental na mensagem do Evangelho de Cristo. Não descuidemos, pois, dessa oração. O chamado Pater noster é uma oração total vez que nenhuma outra é semelhante a ela. Foster nos diz que “Ela é elevada a Deus em todo ambiente imaginável. Eleva-se dos altares das grandes catedrais e dos casebres obscuros em lugares desconhecidos. É falada tanto por crianças quanto por reis. É orada em casamentos bem como em leitos de morte. Os ricos e os pobres, os inteligentes e os analfabetos, os simples e os sábios – todos repetem essa oração. (...) É uma oração tão completa que parece alcançar todas as pessoas o tempo todo em todos os lugares” (FOSTER, 1996, p. 209).
O conteúdo da chamada “Oração do Senhor”, também conhecida como “Pai nosso” ou “Oração Dominical” (Oração do Senhor), é um dos textos mais lidos e conhecidos do cristianismo. Nós podemos encontrá-la em dois textos paralelos dos chamados Evangelho sinópticos, em Mateus 6:9-13 e em Lucas 11:2-4. O texto de Lucas é menor ao passo que o de Mateus é mais extenso. Com o propósito para o qual nos propomos, preferimos nos deter e a comentar o texto presente no livro de Mateus. Isso nos leva a fazer algumas considerações que julgamos fundamentais. Em primeiro lugar, é importante que fiquem claras as razões pelas quais preferimos trabalhar com o texto de Mateus e não com o de Lucas. Ainda que reconheçamos a importância do texto de Lucas – até porque nos voltaremos frequentemente a ele -, entendemos que o texto de Mateus deve ter a preferência (i) porque ele é obviamente mais rico em informações e nos oferece mais objetos para serem trabalhados e comentados. Lucas, por seu turno, nos oferece um texto bastante reduzido, contendo, assim, o básico que também pode ser encontrado em Mateus, no entanto, ele ainda nos parece um texto muito mais pobre para ser objeto desse comentário. Ademais (ii), uma outra razão que nos fez escolher o texto de Mateus, é sua absoluta difusão litúrgica em todas as tradições do cristianismo. Em outras palavras, é a versão apresentada por Mateus que faz parte e que está contida nas diversas liturgias das distintas igrejas Ortodoxas, Romana e Reformadas. Tecendo um breve comentário sobre a diferença das duas orações, conforme aparecem em Lucas e em Mateus, entendemos que as diferenças tem origem bem menos nas fontes que teriam sido consultados pelos dois autores para a confecção de seus textos, do que no fato de que, como era de se esperar, Jesus ensinou tantas vezes acerca do tema da oração, que muito provavelmente ele deve ter feito alterações em um ou outro momento em que ensinava. Esta informação, por si só, daria conta para explica cabalmente as duas diferentes formas registradas essa oração. Seja como for, não se pode negar que essa oração representa a ipsissima intentio de Jesus, em outras palavras, ela expõe a sua mais verdadeira intensão. Trata-se, portanto, “de um texto jesuânico, quer dizer, que veio diretamente da boca do Jesus histórico” (BOFF, 2011, p. 103).
Em segundo lugar, é preciso discutir as questões que envolvem a autoria e a datação do texto. Muito embora desde cedo este livro seja associado à figura de Mateus, na verdade não existe qualquer referência a esse tema partindo do testemunho interno do próprio texto. No entanto, muito provavelmente, o autor deste livro deve ter sido um judeu convertido à fé cristã que vivia “dentro de uma comunidade judaico-cristã que se esforça em romper os laços que a amarravam ao judaísmo, conservando, todavia, a continuidade com o Antigo Testamento” (CULLMANN, 1984, p. 27). Desta forma, Cullmann deixa claro que, para ele, em razão de seu vocabulário, o autor é obviamente um judeu que conhece bem os costumes e a cultura judaica, e que fala para judeus procurando tecer ligações entre o judaísmo e o cristianismo. Ainda sobre a autoria, somos lembrados por Hendriksen que somente ao redor do ano 125 é que o livro foi definitivamente associado ao apóstolo Mateus. No entanto, quando observamos o testemunho externo, encontramos várias referências à autoria de Mateus. Eusébio, no século quarto, escreve que Mateus teceu este Evangelho, originalmente em hebraico, e muitos escritores seguiram essa tese, muito embora, “A evidência de que nosso presente Mateus não é tradução de algum original semítico, mas uma composição em grego, é suficientemente forte para ser convincente” (HARRISON, 1987, p. 163). Pouco tempo antes dele, Orígenes dá o seu testemunho (século III) de que Mateus seria o autor deste Evangelho. Antes dele, encontramos a figura de Irineu (século II) que afirma o mesmo. Por fim, encontramos em Papias (entre 125 e 140) a referência mais antiga de que o autor desse texto seria o apóstolo Mateus. As referências ao texto desse Evangelho aparecem, muito claramente, desde o Didaquê até a carta de Clemente aos Coríntios, passando por Barnabé e Inácio. As referências ao texto de Mateus revela que ele era um texto aceito universalmente. Assim, muito embora não exista testemunho interno, o testemunho externo nos faz acreditar que “Seria difícil explicar como dentro de um período de talvez sessenta anos, desde que o Evangelho fora escrito, se pudesse perder o nome de seu verdadeiro autor” (HENDRIKSEN, 1986, p. 107).
Em terceiro lugar, é importante comentar acerca do contexto deste texto e, dessa forma, cheguemos as informações que julgamos relevante. Ao observar o contexto, verificamos que este texto é parte do chamado “Sermão do Monte”, que principia no capítulo 5 de Mateus. Neste “Sermão”, Jesus faz uma série de observações sobre como deveria ser o comportamento do cristão no mundo. Assim, ele trata das bem-aventuranças, do nosso papel de sal e terra no mundo, do papel da lei em nossas vidas, a questão do adultério, do homicídio e tantos outros assuntos fundamentais para seus seguidores. Na perícope que tem início no capítulo 6:5, Jesus trata da questão da oração, principiando com algumas observações. Desta forma, ele nos orienta a, quando formos orar, (i) não devemos reproduzir o comportamento dos hipócritas, que gostam de orar apenas para serem vistos pelas pessoas. Devemos registrar que a questão não era orar de pé na sinagoga – essa era a forma correta de orar -, mas o que é criticado por Cristo aqui é a intensão de quem ora. Oramos para apresentar nossa verve bem desenvolvida ou para expressar nossa dependência de Deus? Buscar as esquinas para orar era buscar a pura exibição. Essas pessoas “já receberam a recompensa” que mereciam, advinda, não de Deus, mas das pessoas que aplaudiam ou ovacionavam. (ii) Uma outra grande orientação que nos é dada por Jesus sobre esse tema, nos diz que nossa oração deve ser feita em nosso quarto, “em secreto”, porque o Pai, “que vê em secreto”, nos recompensará (Mateus 6:6). Ora, por óbvio nosso Senhor não está condenando orações públicas – ele mesmo as fez (Lc 10:21,22; Jo 11:41,42) -, o que é claramente condenado nesse contexto é a exibição vaidosa. Afinal, como nos ensina Kent Jr, “A oração particular é o melhor treinamento para a oração pública” (KENT JR, In HARRISON, 1980, p. 14). (iii) Uma última orientação que Jesus nos dá é que, diferentemente dos gentios, não devemos usar de “vãs repetições”. Assim, se Cristo critica os hipócritas por buscar a ostentação, critica os pagãos pelas palavras vazias. A crítica, aqui, se dirige à tagarelice dos que acham que repetir dezenas de vezes uma oração fará com que Deus os ouça, ou, nas palavras do Senhor: “pensam que pelo seu muito falar serão ouvidos” (Mateus 6:7). Novamente é preciso compreender que, o que se está sendo criticado aqui não é a prática – muito comum aliás também entre os judeus – de repetir suas orações. A crítica feita por Jesus se dirigia ao fato das orações serem vãs e não repetidas. Assim, Tasker nos diz que a palavra grega battalogesete (battalogesete) que é usada aqui por Mateus, é traduzida por Tyndale por “tagarelar demais” e a velha Versão Siríaca traduz por “não digais coisas ociosas”. Assim, diz ele, “parece provável que a palavra indica mais o falar sem sentido do que o falar repetitivo” (TASKER, 1985, p. 59). Indubitavelmente, as igrejas cristãs de tradição litúrgica, se servem da Oração do Senhor em quase todas as suas celebrações. Comentando esse texto, Wesley escreveu: “O ensino aqui não é simplesmente contra o tamanho de nossas orações, seja longo, seja curto. Jesus ensina contra orações sem sentido. Combate o uso de repetição vazia. Não faz objeção a todo tipo de repetição, pois ele mesmo orou três vezes, repetindo as mesmas palavras. A repetição vazia que os pagãos empregavam era a recitação dos nomes de seus deuses, várias e várias vezes. Alguns cristãos fazem o mesmo. Oram um terço, sem nem refletir sobre o que estão falando” (WESLEY, 2017, p. 147). Muito embora a tradição primitiva da igreja revele que esta oração era feita três vezes ao dia pelos cristãos, e veja isso como natural e desejável – até porque quem ora internaliza o que se reza -, com a Reforma aprendemos que a Oração do Senhor nos revela que essa oração é mais do que algo a ser repetido, ela é um modelo que deve orientar e estar presentes em todas as nossas orações. Estas duas posturas não são, por óbvio, contraditórias mas complementares. E é sobre isso que trataremos daqui para frente.
Para concluir, contudo, é necessário reconhecer que, como podemos ver claramente, com essas observações feitas por Jesus – o que ele faz em todo o Sermão da Montanha -, descobrimos que ele desmascara e traz luz sobre a verdadeira intensão de muita gente envolvida com a religião. Jesus nos fez perceber que, ao invés de buscarem a glória de Deus e servir ao próximo, eles buscam apenas a sua glória própria tendo como base, a mera exibição. As críticas feitas por Jesus foram e continuam sendo extremamente contundentes para as pessoas que lidam com o sagrado. Sendo a oração, um aspecto especial do que é sagrado, devemos ouvir seus ensinos e obedecer suas orientações. Ele, agora, passa a nos ensinar a orar, algo que sempre devemos estar dispostos a aprender. Nesta oração, encontramos uma invocação, oito petições e uma doxologia conclusiva. Na verdade, a grande questão não gira em torno de quantas petições encontramos no Pai Nosso, “e sim observar a sequencia em que essas petições foram apresentadas. As três primeiras — ‘santificado seja o teu nome; venha o teu reino; faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu’ — dizem respeito a Deus e à Sua glória. E as demais petições referem-se a nós mesmos. Pode-se notar que essas três primeiras petições giram em torno das palavras ‘teu’ ou ‘tua’ e todas se referem a Deus. Somente da quarta petição em diante temos as palavras ‘nós’ ou ‘nos’” (LLOYD-JONES, 1984, p. 344). Para concluir, devemos sempre trazer no coração as palavras do bispo S. Cipriano de Cartago (200-258) que afirmou: “Oremos, portanto, caríssimos irmãos, como Deus, o nosso Mestre, nos ensinou! É uma oração familiar e íntima quando oramos a Deus com aquilo que é Seu, quando fazemos elevar aos Seus ouvidos a oração de Cristo. Possa o Pai reconhecer as palavras do Seu Filho quando dissermos a oração!... Reconheçamos que estamos diante do Seu olhar!”.
Referência bibliográfica:
BOFF, Leonardo. Cristianismo: o mínimo do mínimo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011
CULLMANN, Oscar. A formação do novo testamento. São Leopoldo, RS: Sinodal, 1984
HARRISON, Everett F. (Edt.). Comentário bíblico moody. Vol 4. São Paulo: Imprensa Batista Regular, 1980
HARRISON, Everett. Introducción al nuevo testamento. Grand Rapids, MI: Subcomisión Literatura Cristiana, 1987
HENDRIKSEN, Guillermo. El evangelio segun san mateo: comentario del nuevo testamento. Grand Rapids, MI: Subcomisión Literatura Cristiana, 1986
LLOYD-JONES, D. Martyn. Estudos no sermão do monte. São José dos Campos, SP: FIEL, 1984
TASKER, R.V.G. Mateus introdução e comentário. São Paulo: Mundo Cristão/Vida Nova, 1985
WESLEY, John. O sermão do monte. São Paulo: Vida, 2017
Comentarios