
Reverendo Jorge Aquino.
Lendo as Escrituras, logo percebemos que Deus estabeleceu regras e normas para dirigir o comportamento de seu povo. Ele assim o fez e, nos dois texto em que elas aparecem (Êxodo 20:2-17 e Deuteronômio 5:6-21), vemos a materialização dessas regras na forma do que chamamos de Dez Mandamentos ou Decálogo. Registre-se que as cerca de vinte variantes existentes entre os dois textos são, como diz Briend, “de pouca monta” (BRIEND, In LACOSTE, 2004, p. 509). Desta forma, no Decálogo dado por Deus ao seu povo por meio de Moisés, encontramos dez regras que apresentam na forma de duas tábuas de pedras, uma clara disposição de produzir uma vida mais próspera e feliz para todo o povo de Israel. Este texto de lei que surge no monte Sinai, podem ser datados provisoriamente, comenta Craigie, “na primeira parte do século XIII a.C” (CRAIGIE In ELWELL, Vol 1, 1988, p. 453). Conforme o relato bíblico, os mandamentos são registrados em tábuas de pedra e entregues à Moisés, que as leva até o povo. Diante do evento do bezerro de ouro, as tábuas são quebradas e Moisés volta ao Sinai, onde recebe uma segunda cópia. Craigie nos lembra que os mandamentos “foram escritos em duas tábuas. Cada tábua continha o texto integral; uma tábua pertencia a Israel e a outra, a Deus, de modo que as duas partes da Aliança tinham um exemplar da legislação” (CRAIGIE In ELWELL, Vol 1, 1988, p. 453).
Devemos compreender, antes de mais nada, que o termo “mandamento” se origina no verbo “mandar”, que implica em estabelecer ordens e regras para a vida. Sendo assim, nosso Deus estabeleceu mandamentos que, representando a voz de comando e o preceito do Senhor e estabelece como devemos nos comportar em todos os aspectos da vida. As ciências jurídicas dizem, com muita propriedade, que não existe sociedade sem normas, o que nos leva a afirmar que os mandamentos representam o fundamento primeiro das obrigações morais de cada um dos membros daquela sociedade israelita. Assim como as Escrituras revelam os Dez Mandamentos que dizem respeito à sociedade de Israel, na antiguidade podemos também citar outros textos antigos, como, por exemplo, o Código de Hamurabi, que teve vigência na Mesopotâmia, durante o governo de Hamurabi, entre 1792 e 1750 a.C. Acerca dos Dez Mandamentos da lei de Deus, destacamos três temas fundamentais para nossa reflexão. Em primeiro lugar, a origem do termo “Decálogo”. Esta expressão chega ao português vinda do grego: deka, que significa “dez”, e de logos, que quer dizer “palavra” ou “discurso”. Assim sendo, o termo Decálogo significa originalmente, “dez palavras” ou “dez falas”, mas também implica em conceitos, princípios e declarações que revelam a vontade de Deus. Originalmente, contudo, a expressão “Dez Mandamentos” vem do hebraico “הדברים עשרת” – “asseret hadevarim”, e apontam para uma possível tradução: as dez palavras. Esta expressão aparece apenas três vezes nas Escrituras. Em Êxodo 34:28 lemos acerca de Moisés: “E, ali, esteve com o Senhor quarenta dias e quarenta noites; não comeu pão, nem bebeu água; e escreveu nas tábuas as palavras da aliança, as dez palavras”; em Deuteronômio 4:13 lemos: “Então, vos anunciou ele a sua aliança, que vos prescreveu, os dez mandamentos, e os escreveu em duas tábuas de pedras”; e em Deuteronômio 10:4, lemos: “Então, escreveu o Senhor nas tábuas, segundo a primeira escritura, os dez mandamentos que ele vos falará no dia da congregação, no monte, no meio do fogo; e o Senhor mas deu a mim”. Quando buscamos o termo hebraico para a palavra “mandamento” encontramos o termo “mitsvah” “הוצמ”, que é usado em uma clara referência aos Dez Mandamentos (Êxodo 24:12). Na versão grega do Antigo Testamento, que conhecemos como a Septuaginta, o termo grego para a palavra “mandamento” é “entolé”. Esta é a mesma palavra que é utilizada no Novo Testamento (Mateus 19:17-19) quando Jesus diz: “guarda os mandamentos” (εντολας). Este termo transpassa o tempo e é encontrado em Ptolomeu, na tradução latina de Irineu e em Clemente de Alexandria. É possível, portanto, afirmar que, a partir do século III o termo decálogo se torna corrente entre os cristãos.
Em segundo lugar, devemos registrar que existe uma divisão no decálogo. Quando lemos com um pouco mais de atenção os chamados “Dez Mandamentos”, logo percebemos que eles podem ser classificados em dois tipo, ou seja, àqueles que se referem à nossa relação vertical, ou seja, para com Deus e àqueles horizontais, que apontam para nossa relação com nosso próximo. Ora, como o maior dos mandamentos é o amor, ou seja, amar a Deus com todo o nosso ser, é interessante perceber que, no Catecismo presente no Livro de Oração Comum anglicano, publicado em 1950, já encontramos essa distinção. Lá nos deparamos com uma pergunta muito relevante acerca dos Dez Mandamentos: “Que entendes principalmente desses mandamentos? Resposta: Entendo duas coisas; o meu dever para com Deus e o meu dever para com o meu próximo” (LIVRO DE ORAÇÃO COMUM, 1950, p. 579). É necessário dizer que este é o mesmo catecismo que pode ser encontrado nos textos mais antigos do Livro de Oração Comum, tanto em português quanto em outros idiomas. Nesse sentido, o Youcat – Catecismo jovem da Igreja Católica - assim se expressa: “O que torna os Dez Mandamentos tão especiais é o fato de neles poder ser compreendida toda a vida humana. Nós, pessoas humanas, estamos orientados, com efeito, para Deus (do primeiro ao terceiro mandamento) e para os outros (do quarto ao décimo mandamento). Somos seres religiosos e sociais” (YOUCAT-Brasil, 2011, p. 193). Portanto, os Dez Mandamentos abarcam tanto nossos relacionamentos verticais quanto horizontais.
Finalmente, em terceiro lugar, o preâmbulo do decálogo encontrado no texto de Êxodo 20:1,2 diz: “Então, falou Deus todas estas palavras: Eu sou o Senhor , teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão”. Este texto deixa claro dois elementos fundamentais: primeiro, que o texto de Êxodo 20:1-17 “está inserido em um vasto conjunto literário, a teofania do Sinai” (BRIEND, In LACOSTE, 2004, p. 509). Uma teofania (do grego θεοφάνεια: theos, que significa “Deus” e fania que significa “manifestação”) é uma revelação ou uma “manifestação de Deus”. Assim, no texto dos Dez Mandamentos, Deus se mostra na proporção em que revela seu caráter e sua vontade. A própria forma na qual o relato no qual Deus entrega os mandamentos é revelador e envolvente; assim, tudo ocorre quando o monte Sinai está envolto em uma nuvem e Deus está falando diretamente com Moisés, ao tempo em que escreve nas tábuas de pedra. Tudo isso nos mostra uma forma pessoal de se revelar. Um outro elemento claro no texto é que os mandamentos aparecem em um contexto de formação de uma aliança entre Deus e seu povo. Na verdade, no capítulo 19:5 Deus deixa muito claro que, “se diligentemente ouvirdes a minha voz e guardardes o meu concerto, então sereis a minha propriedade peculiar dentre todos os povos”. Por óbvio estamos diante de uma promessa condicional feita para Israel e da criação de um pacto ou aliança, em hebraico, “berit” ou “תברי”. Em uma aliança, existem sempre obrigações que envolvem amigos, casais, grupos de pessoas, ou, nesse caso, Deus e Israel. Desta forma, o Decálogo fazia parte de forma essencial, ocupando o lugar de elemento central do pacto do Sinai, apontando as obrigações que Israel teria que cumprir. Assim, fica claro que o cumprimento dos Dez Mandamentos faz parte das cláusulas desse pacto ou aliança. Quando pensamos em um pacto, nos lembramos que no Antigo testamento, “De modo uniforme, a palavra hebraica usada para expressar o conceito de aliança é berit. O significado original dessa palavra provavelmente era ‘grilhão’ ou ‘obrigação’, derivado da raiz barra, ‘atar’. (...) Desta forma, uma berit originalmente significa um relacionamento entre duas partes, em que cada uma delas se obrigava a cumprir certos serviços ou dever em prol da outra” (ARCHE JR. In ELWELL, Vol 1, 1988, p. 44). O detalhe significativo sobre o pacto, surge logo nos versículos 1 e 2 do capítulo 20 de Êxodo. Lá lemos o seguinte: “Então falou Deus todas estas palavras, dizendo: Eu sou o Senhor, teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão”. Nestes versículos, encontramos os elementos que geralmente estão presentes em um pacto ou aliança. Aqui encontramos, de chifre, o autor do pacto. O que é particularmente significativo, segundo Roy Honeycutt Jr., é que, aqui, “só o Senhor é mencionado. O pacto foi feito somente pelo Senhor e não era um acordo entre Israel e o Senhor, como entre partes iguais. O pacto originou-se do senhorio de Yaahweh sobre a vida do homem. (...) Nos tratados de suserania do Oriente Próximo antigo, grande atenção era dada aos atos beneficentes do rei para com o vassalo” (HONEYCUTT JR, In CLIFTON, Vol 1, 1986, p. 486). Segundo pensa Honeycutt Jr., portanto, estamos diante de um pacto ou aliança que já expressa a graça de Deus ao se apresentar como tendo uma única parte apta a cumprir as exigências da aliança. Assim, Deus sabia que o homem mortal não tem condição de cumprir – com sua própria força – as exigências da lei. Outro detalhe a ser destacada é a razão pela qual o texto bíblico diz: “Eu sou o Senhor, teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão”. Neste prólogo histórico, vemos claramente revelada a atividade redentora do Senhor na sua ação em retirar o povo de Israel da condição de escravos, no Egito. Portanto, revela as benesses do suserano sobre o povo, o que o qualifica para estabelecer o pacto.
Estes três elementos já nos preparam para enfrentar cada um dos Dez Mandamentos, ou das Dez Palavras de Deus para seu povo. Cada um deles é essencial para nosso relacionamento com Deus, visto que os Dez Mandamentos – apesar de serem dez – devem ser vistos como uma unidade da vontade de Deus. Esta lei, que está escrita no coração de todo homem, “nos ensina o temor e a reverência que devemos à sua [de Deus] divina majestade, e nos ensina em que consiste esta reverência. Logo, ao promulgar a regra de sua justiça (...) nos convence de nossa impotência e da injustiça que existe em nós” (CALVINO, 1981, III.viii.1).
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