
Reverendo Jorge Aquino.
O texto completo do 2º Mandamento diz: “Não farás para ti imagem de escultura, nem semelhança alguma do que há em cima nos céus, nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. Não as adorarás, nem lhes darás culto; porque eu sou o SENHOR, teu Deus, Deus zeloso, que visito a iniquidade dos pais nos filhos até à terceira e quarta geração daqueles que me aborrecem e faço misericórdia até mil gerações daqueles que me amam e guardam os meus mandamentos” (Êxodo 20:4-6).
Agora estamos diante do segundo dos Dez Mandamentos entregues por Deus a seu povo, por meio de Moisés. No primeiro, encontramos a proibição de adorar a qualquer outro ente que não seja o Senhor. Agora, somos proibidos de construir qualquer imagem de Deus, pois isso seria o mesmo que “reduzir o Criador à algo menor que Sua criação, e adorar tal imagem seria uma coisa errada” (CRAIGIE In ELWELL, Vol 1, 1988, p. 454). Criar e adorar imagens dos deuses era algo muito comum em todas as religiões do antigo Oriente Próximo. No entanto, afirma Craige (In ELWELL, Vol 1, 1988, p. 454), o Deus de Israel era um Ser transcendente e infinito, que não poderia ser reduzido às limitações de uma imagem ou forma dentro da criação. Lembremos que esta proibição inclui qualquer tentativa de definir ou determinar o Ser de Deus em uma elaboração lógica, expressa e definitiva. Deus está acima das definições. Assim, o grande pecado que este mandamento procura evitar está justamente na nossa tentativa de objetivar Deus de tal maneira que, ao fazermos isso, criamos um “ídolo”. Pensando nisso, levantamos três temas significativos acerca dos mandamentos. Em primeiro lugar, cremos ser preciso destacar aquilo que devemos fazer. E, para que caminhemos bem nessa direção, acredito que Calvino é um dos comentadores que melhor discorre sobre esse mandamento. Para este ilustre reformador francês, “o fim deste mandamento é que Deus não deseja que o seu devido culto legítimo seja profanado com ritos supersticiosos. E por isso, podemos resumir dizendo que ele quer nos afastar totalmente de todas as classes de serviços carnais, que nosso entendimento adoecido inventa depois de imaginar Deus conforme sua rudeza; e, por consequência, nos mantém dentro do culto legítimo que devemos a Ele, a saber, um culto espiritual, que pertence somente a Ele” (CALVINO, 1981, II.viii,17). O resumo que nos é apresentado por Calvino claramente aponta para o centro desse mandamento, qual seja, adorar espiritualmente a Deus. Quando falamos “espiritualmente”, estamos dizendo que o verdadeiro culto desejado por Deus – que é espírito -, não pode se realizar ou se revestir de elementos que procuram objetivar a divindade em algo construído pelas mãos humans ou produzidas por sua mente ou imaginação.
Em segundo lugar, é preciso destacar àquilo que nos é claramente proibido pelo mandamento. E neste aspecto, precisamos nos deter ao texto em si, que diz literalmente: “Não farás para ti imagem de escultura, nem semelhança alguma do que há em cima nos céus, nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra” (Êxodo 20:4). O texto nos fala de “imagem de escultura”, no hebraico “péssel”, que é utilizada para se referir os ídolos esculpidos em pedra, metal ou madeira. Na versão dos Setenta, o termo “péssel” é trocado por “eidon”, (eidon)que significa ídolo. Um ídolo é a representação de algo que adoramos e a que atribuímos poderes mágicos ou sobrenaturais. Como nos diz Honeycutt Jr., “Os homens sempre procuram uma manifestação concreta, um ídolo, que possa ser controlado e manipulado como veículo de revelação. Mas isso não pode acontecer. A revelação do Senhor se deu através da palavra: viva e ativa, misteriosa e susceptível de certa fluidez” (HONEYCUTT JR. In CLIFTON, Vol. 1, 1988, p. 487). Quando lemos o mandamento nos damos conta que seu autor compreende o universo como sendo uma realidade com três andares: o céu, acima de tudo, a terra e o mundo inferior. A tentação consiste em encontrar um habitante de um desses três andares e representa-lo como se fosse deus. Esse é o grande perigo que é denunciado aqui, reduzir a divindade a algo menor. Esta proibição também se estende a outro versículo, que diz: “Não as adorarás, nem lhes darás culto” (Êxodo 20:5). “Não as adorarás” (לא־תשת) representa, para comentaristas como R. Alan Cole, “o centro do mandamento parece ter sido ‘não as adorarás’. Isto significa que os mandamentos eram frases breves e pungentes” (COLE, 1986, p. 148, 149). Eis aqui, de forma expressa, o pecado da idolatria. Esta é uma palavra composta por duas outras: “ídolo”, do grego “eidon” (eidoon), e “latria”, do grego “latreia” que fala da adoração ou do serviço a deuses. Normalmente, as sociedades da época faziam seus ídolos à semelhança (do hebraico temunah – התמונ), aparência ou representação dos seres que habitavam nesses três estratos do universo. Quando nós, que somos o ápice da criação de Deus, nos submetemos a adorar como um deus, algo que está aquém de nós mesmos, além de cometer o pecado da idolatria, estamos nos tornando menores do que a criação. Devemos lembrar que, em momento algum, este mandamento proíbe a elaboração e criação artística. Na verdade, escrevendo sobre isso, acentua Honeycutt Jr., “A proibição nunca teve o objetivo de incluir a arte genérica, mas era uma polêmica contra a maneira como os ídolos eram interpretados como revelações da divindade” (HONEYCUTT JR. In CLIFTON, Vol. 1, 1988, p. 487). Seguindo este mesmo diapasão, Cole nos diz que “se a fabricação dos querubins fora permitida, então a proibição de imagens se refere apenas à fabricação direta de objetos de culto, não à representação de um objeto ou ser vivo qualquer, conforme se entendeu mais tarde” (COLE, 1986, p.149). Em outras palavras, desde a época da Reforma havia este entendimento. Assim, para os reformadores, Deus não associa idolatria à arte. Observando alguns documentos oriundos desse período, vemos, por exemplo na pergunta de número 97 do Catecismo de Heidelberg o seguinte questionamento: “Então, não podemos fazer nenhum tipo de imagem?” A resposta que o Catecismo nos oferece é absolutamente lúcida ao dizer: “Deus não pode nem deve ser visivelmente representado de nenhuma maneira. As criaturas podem ser representadas, mas Deus nos proíbe fazer ou ter imagens delas para adorá-las ou para servir a Deus por meio delas” HEIDELBERG, 2023, questão 97. Caminhando um pouco mais no texto do segundo mandamento, encontramos a razão pela qual Deus proíbe a construção de ídolos. Diz o texto: “porque eu sou o SENHOR, teu Deus, Deus zeloso” (Êxodo 20:5) Quando pensamos em zelo, imediatamente pensamos em alguém que é cuidadoso. Não é bem isso que o termo hebraico “qana’” (אקנ)quer dizer. Este adjetivo, que somente é usado para Deus, nos diz que Ele é ardorosamente ciumento em sua relação conosco. Mais uma vez verificamos uma linguagem que aponta para a existência de uma aliança entre Deus e seu povo. Em muitos lugares no Antigo Testamento, Israel é vista como a noiva do Senhor e, há versículos que falam de Deus sendo traído por Israel. E, encerrando nossa exposição sobre o texto, vemos no fim do segundo mandamento, uma citação muito significativa. O texto diz: “que visito a iniquidade dos pais nos filhos até à terceira e quarta geração daqueles que me aborrecem e faço misericórdia até mil gerações daqueles que me amam e guardam os meus mandamentos” (Êxodo 20:5b,6). Aqui, claramente verificamos que o contraste entre o castigo e o favor se destaca. Por isso, Deus fala em castigo para a “terceira e quarta” geração, mas também se refere à graça sobre até “mil gerações daqueles que me amam e guardam os meus mandamentos”.
Por fim, em terceiro lugar, diante deste segundo mandamento, precisamos destacar aquilo que se devemos ensinar aos outros. Nossa responsabilidade não se resume ou se estriba a apenas não praticar a idolatria, mas também a denunciar esse erro. É preciso que apontemos os erros que incorrem todos os praticantes da prática da idolatria, em todas as suas multiplas formas possíveis. E quando falamos em suas formas, destacamos que a idolatria, de forma mais material, se realiza na manufatura ou construção de ídolos utilizados para serem adorados e servidos. Mas a idolatria é muito mais do que isso. Ela significa e aponta para a elevação de algo, alguém, uma instituição, organização ou um ideal, à condição de absolutidade, ou seja, até uma condição que não permite ou aceita qualquer forma de contradição. Geralmente os grandes déspotas da história eram pessoas que eliminavam todos os que questionavam suas ideias e suas teses. Elevar alguém ou alguma instituição (religião, igreja, partido, associação, etc.) a essa condição é o mesmo que construir um ídolo. Por mais veneranda que seja a instituição, ela não é divina nem goza dos atributos de Deus. Mas a idolatria se extende ainda mais profundamente à esfera da definição e da semântica. Qualquer tentativa de reduzir a pessoa de Deus à uma definição ou de aprisioná-lo dentro de uma estrutura eclesial também é uma forma de engessamento – ou pior -, de encarceramento e adestramento da divindade. É nesse contexto que teólogos como Karl Barth chegam a dizer que toda religião é idolatria. É preciso lembrar que o Deus que se revela à Israel e se auto-revela como o “eterno”, era um Ser absolutamente transcendente e infinito, que jamais poderia ser reduzido às limitações de uma mera imagem ou mesmo a uma definição. De Deus não podemos falar; dele somente podemos calar, pois toda predicação é limitação e, Deus não pode ser limitado a uma predicação ou a uma expressão, simbólica, pictórica ou plástica. Lembro até hoje quando, então com cerca de 15 anos, acabara de ler meu primeiro livro de Teologia Sistemática, no qual encontrara uma definição perfeita de Deus. Que loucura e infantilidade a minha ao imaginar que poderia definir Deus com apenas 10 palavras! Como o finito poderia abarcar e a-preender o infinito? Diante do numinoso, do tremendum e do Deus absconditus não temos como, com nosso esforço e cognição, chegar até Ele sem que, antes, seja ele o Deus revelatus, ou seja, que se revela. Impossível não citando o texto de Reifler quando diz: “Este mandamento fala de nossa perspectiva de Deus. Qual a dimensão de nosso Deus? Podemos fazer projeções e formar imagens de Deus ou de Jesus Cristo? Como Deus Se revela? A Bíblia ensina que o homem não deve fazer ou ter imagens de Deus. Mas não as possuímos de uma ou de outra maneira, ou, pelo menos, não concebemos representações ideológicas ou projeções religiosas de Deus?” (REIFLER, 2009, p. 73). Não! Deus não pode ser representado ou definido, simplesmente porque ele é Deus! Qualquer tentativa de imitá-lo ou representa-lo por matéria ou palavra, é idolatria.
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