
Padre Jorge Aquino.
O texto do Evangelho indicado para o dia de hoje diz: “Ora, havia certo homem rico que se vestia de púrpura e de linho finíssimo e que, todos os dias, se regalava esplendidamente. Havia também certo mendigo, chamado Lázaro, coberto de chagas, que jazia à porta daquele; e desejava alimentar-se das migalhas que caíam da mesa do rico; e até os cães vinham lamber-lhe as úlceras. Aconteceu morrer o mendigo e ser levado pelos anjos para o seio de Abraão; morreu também o rico e foi sepultado. No inferno, estando em tormentos, levantou os olhos e viu ao longe a Abraão e Lázaro no seu seio. Então, clamando, disse: Pai Abraão, tem misericórdia de mim! E manda a Lázaro que molhe em água a ponta do dedo e me refresque a língua, porque estou atormentado nesta chama. Disse, porém, Abraão: Filho, lembra-te de que recebeste os teus bens em tua vida, e Lázaro igualmente, os males; agora, porém, aqui, ele está consolado; tu, em tormentos. E, além de tudo, está posto um grande abismo entre nós e vós, de sorte que os que querem passar daqui para vós outros não podem, nem os de lá passar para nós. Então, replicou: Pai, eu te imploro que o mandes à minha casa paterna, porque tenho cinco irmãos; para que lhes dê testemunho, a fim de não virem também para este lugar de tormento. Respondeu Abraão: Eles têm Moisés e os Profetas; ouçam-nos. Mas ele insistiu: Não, pai Abraão; se alguém dentre os mortos for ter com eles, arrepender-se-ão. Abraão, porém, lhe respondeu: Se não ouvem a Moisés e aos Profetas, tampouco se deixarão persuadir, ainda que ressuscite alguém dentre os mortos” (Lucas 16:19-31).
Uma das mais conhecidas escritoras e pensadoras do século XX, Simone de Beauvoir, disse certa vez que “não se pode escrever nada com indiferença”. Ela dizia isso, em razão de sua paixão por escrever e por aquilo que imaginava ser o sentido de sua vida.
No texto do Evangelho de hoje, temos um texto que sempre foi objeto de debate entre vários teólogos nos últimos dois milênios. No entanto, em que pese as inúmeras possíveis interpretações desse texto, certamente existe algo que todos os intérpretes concordariam: este texto bíblico revela inúmeras facetas da indiferença e da insensibilidade. Em primeiro lugar, neste texto vemos um homem rico que era absolutamente indiferente à dor e à fome do pobre Lázaro, que ficava todas as noites esperando “alimentar-se das migalhas que caíam da mesa do rico”. O problema é que, a presença de Lázaro era uma forma de Deus falar com aquele homem. Mas ele nem queria ouvir Lázaro, nem queria ouvir a voz de Deus por meio dele. Eis que, como ocorre com todas as pessoas, o homem rico morreu da mesma forma que Lázaro. No entanto, ao que parece, sua indiferença o levou a um lugar completamente diferente do de Lázaro. Enquanto este estava no seio de Abraão, as Escrituras dizem que o rico estava no inferno (hades). Mesmo lá o rico somente pensava em si. Por isso, pede para que Abraão faça com que Lázaro “molhe em água a ponta do dedo” para refrescar a língua do rico. A resposta de Abraão é simples. A distância que o rico criou entre ele e Lázaro, durante toda a vida, em razão de sua indiferença e insensibilidade, se refletiu no distanciamento existente entre os dois depois da morte. E não há como fazer com que um lado tenha acesso ao outro.
Em segundo lugar, vislumbramos nesse texto a indiferença sendo revelada no pedido do rico a Abraão. Ele pede que Abraão envie Lázaro de volta à vida, a fim de falar com seus cinco irmãos, igualmente ricos, para que não recebam a mesma condenação. A resposta de Abraão é reveladora: “Eles têm Moisés e os Profetas; ouçam-nos”. Quando Abraão se refere à “Moisés e os Profetas”, ele estava se referindo às Escrituras judaicas. Assim, se eles atentassem para o que ensinava as Escrituras, certamente não teriam o mesmo destino de seu irmão.
Por fim, em terceiro lugar, o rico insiste dizendo: “Não, pai Abraão; se alguém dentre os mortos for ter com eles, arrepender-se-ão”. Diante do clamor desse homem, Abraão responde: “Se não ouvem a Moisés e aos Profetas, tampouco se deixarão persuadir, ainda que ressuscite alguém dentre os mortos”. A insensibilidade das pessoas diante da voz de Deus que grita por meio dos miseráveis desse mundo e que se manifesta claramente pelo ensino das Escrituras é uma demonstração clara de que o que move esses corações não é a obediência ao Senhor, mas a satisfação de seus caprichos.
Para concluir, é preciso compreender que, se os corações das pessoas estão tão insensíveis a ponto de não perceberem Deus nos mais carentes nem nas Escrituras, não será um espetáculo milagroso que mudará suas vidas. Assim, suspeitem das práticas religiosas que se fundam e apelam para os milagres. Deus não pode ser encontrado em espetáculos humanos, mas apenas nas Escrituras e no testemunho dos despossuídos.
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