COLEGIALIDADE EPISCOPAL
- Reverendo Padre Jorge Aquino ✝
- 23 de out. de 2018
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Reverendo padre Jorge Aquino.
Este, seguramente, é um dos temas mais prementes dos grandes concílios de Igrejas de governo episcopal do século XX. Na realidade, tanto as Conferências de Lambeth, quanto o Concílio do Vaticano II, passando por inúmeros conclaves envolvendo Igrejas Anglicanas Continuantes, discutiram esse tema a exaustão. Infelizmente, nem sempre o resultado foi o crescimento da colegialidade, mas a reafirmação de posturas independentes.
Observando o tema de uma perspectiva histórica, podemos dizer que, durante os primeiros séculos da era cristã, ainda não existia uma colegialidade episcopal formalizada ou institucionalizada. No entanto, algumas práticas comuns da Igreja revelavam que a relação entre os bispos tendia a ser bastante cordiais. Segundo pontua José Comblin, “As cartas de Inácio de Antioquia, Clemente de Roma ou Cipriano demonstram uma grande preocupação com a solidariedade entre as Igrejas e com a amizade e a união entre os bispos” (COBLIN, In ANJOS, 2000, p. 66). Revela-se, assim, claramente a existência de um sentimento de comunhão entre todas as igrejas locais ou particulares.
É interessante notar que nos primeiros séculos do Cristianismo o múnus do ensino, ou a tarefa de ensinar era uma prerrogativa dos sucessores dos Apóstolos, ou seja, os bispos. Por isso eles foram os primeiros a receberem o título de “Pai”. E eles eram chamados de “Pais”, segundo Jean-Yves Leloup, por pelo menos quatro razões: (i) primeiro, porque, como chefe ou “cabeça” de uma comunidade particular (Diocese) eles se assemelharam aos antigos Patriarcas das doze tribos de Israel; (ii) em segundo lugar, porque os bispos eram os presidentes da Eucaristia, ou seja, do memorial das maravilhas do que Deus fez por nós. Desta forma eles assumiam a mesma posição dos pais de família que presidiam a refeição pascal entre os judeus; (iii) em terceiro lugar, os bispos também são chamados de “pai” porque têm a responsabilidade de transmitir aquilo que receberam dos apóstolos, fazendo com que os fiéis cresçam até a “estatura plena” do Filho; (iv) finalmente, os bispos são “pais” porque são modelos tanto da verdade quanto da misericórdia. Eles receberam de Cristo a responsabilidade de manter a unidade dos filhos de Deus na verdade – sendo eles próprios o sinal dessa unidade -, quanto receberam a responsabilidade de, como o Bom Pastor, cuidar das ovelhas e dar sua vida por elas. Afinal, segundo São Clemente de Alexandria, escrevendo em suas Stromata, “As palavras são a progenitura da alma. Assim, damos o nome de ‘pai’ àqueles que nos instruíram e todo homem que recebe instrução é filho de seu mestre” (CLEMENTE In, LELOUP, 2003, p. 29). A colegialidade dos “Pais” era significativa para tomar decisões que fossem relevantes para a Igreja em todos os lugares.
Esta tendência de respeito e consideração que existia entre os bispos da Igreja de Deus – vistos como “pais em Deus” -, se manifestava particularmente, na esfera litúrgica. É cediço e notória a participação de bispos de outros lugares e regiões para a imposição das mãos na ordenação de um novo bispo. Este era mais um sinal de comunhão e respeito que existia entre os bispos dos primeiros séculos do cristianismo, pelo menos, a partir da publicação da Tradição de Hipólito.
Devemos registrar o comentário de Comblin, para quem, “No começo supunha-se que a unidade entre os bispos era obra de Cristo e do Espírito Santo” (COBLIN, In ANJOS, 2000, p. 67). No entanto, depois que a Igreja foi institucionalizada como oficial, pelo Império Romano, a manutenção da unidade entre os bispos passou a ser vista pelos Imperadores como uma necessidade política, que implicaria na unidade do Império.
Hoje temos ciência de que os concílios ecumênicos eram convocados pelos Imperadores. Eram eles quem definiam o local, a data, a pauta e quem financiava a viagem cos conciliares e a própria reunião em si. Também sabemos que muitas vezes eles interviam nos debates por meio de seus representantes e que sua opinião era, muitas vezes, a predominante. Ademais, eram eles os encarregados em fazer cumprir os decretos emanados de cada concílio. Em que pese a clara interferência do Estado nas decisões da Igreja, a colegialidade episcopal ainda era – muito embora de forma imperfeita e incompleta – vivenciada.
Essa colegialidade se expressava, particularmente em Cipriano de Cartago, por meio da solidariedade entre os bispos, criando uma espécie de co-responsabilidade. De acordo com o pensamento de Jean-Marie Roger Tillard, Cipriano “empresta do direito associativo romano o termo collegium para designar o grupo de bispos dispersos no mundo, no espaço da oikoumene. Existe apenas um único episkopé, numa multiplicidade de bispos unidos entre si e formando assim um único colégio (Epist., 55, 1.1-2; 55, 21, 1-2)” (TILLARD, In ANJOS, 2000, p. 79). É conhecidíssima a máxima de Cipriano em sua De Unitate nº 5, onde ele diz: “O episcopado é uno, cada bispo detém uma parte na indivisão”. Encerro fazendo menção da tese de Cipriano, para quem, “o episcopado não é maior em cem bispos do que em um único bispo, mas este não será bispo se não estiver em comunhão com os outros cem. Para ele, ao afirmar que “o bispo está na igreja e a igreja está no bispo” (Epístola 66.8.3), ele está reforçando a tese segundo a qual, reforça Tillard, “a unidade dos bispos em um só collegium e a unidade das igrejas locais num só corpo eclesial requerem-se mutuamente. Enquanto o Ocidente procura dar a Pedro um status especial dentro da unidade do collegium, o Oriente prefere sublinhar que todo bispo é Pedro quanto à exousia apostólica, atribuída e usufruída solidariamente e apenas solidariamente exercida” (TILLARD, In ANJOS, 2000, p. 79).
Diante do exposto, parece ficar claro que, para os cristãos primitivos duas verdades opostas eram colocadas. A primeira dizia que a unidade da Igreja de Deus poderia tanto ser o resultado da ação do Espírito Santo no chamamento de pessoas que tivessem o múnus de serem eles “sinais de unidade”, quanto poderia ser o resultado de uma determinação do Estado ou da criação de uma instituição mundial ou internacional. Entre as duas, parece-me que qualquer cristão minimamente maduro entenderia que há um só Deus, um só Senhor uma só fé e uma só Igreja. E essa única Igreja existe como corpo de Cristo, seu único cabeça. Assim sendo, entre essas duas opções dadas, o cristão optaria pelo episcopado como ação do Espírito. Nessa toada, afirma o ilustre pensador Edward Schillebeeckx: “O fundamento, quer da vida normativa da comunidade de fé, quer do poder ministerial da comunidade de Deus é o senhorio de Jesus Cristo na Igreja através do seu Pneuma ou do seu Espírito e o Espírito do Pai. (…) Por isso, o funcionamento do poder ministerial deve ser organizado de tal forma que a autoridade continuamente presente e libertadora do Senhor Jesus possa sempre voltar a fazer-se valer na vida da comunidade cristã” (SCHILLEBEECKX, 1994, p. 275).
Uma outra realidade que me parece clara é que, mesmo a Igreja Romana precisou rever a posição de Pedro em relação aos demais apóstolos. Dessa forma, no Vaticano II fica claro que, segundo ensina Giuseppe Colombo: “É evidente que no quadro da eclesiologia do Vaticano II, caracterizada pelo senso da ‘colegialidade estruturada’, a ‘colegialidade’ deve ser um princípio diretivo fundamental no pensamento/aggiornamento do exercício do ministério petrino” (…) Concluindo, a colegialidade deve determinar ‘a (nova) forma normal de vida ordenada da Igreja’” (COLOMBO, Apud ACERBI, In ANJOS, 2000, p. 158). Esta visão que olha para a Igreja como sendo a comunhão de várias comunidades locais, muito mais do que como uma instituição ou organização uma de dimensões mundiais, foi o resultado prático dos documentos conciliares. Segundo tal perspectiva, assevera Giuseppe Alberico, “a estrutura da Igreja não pode mais ser esquematizada como uma pirâmide, na qual a vida se desenrola num eixo vertical com ritmo descendente. Ao contrário, torna-se indispensável recorrer a uma imagem essencialmente horizontal (não ‘ascendente’!), colocando toda as Igrejas e seus bispos num plano de igualdade (‘Igrejas irmãs’)” (ALBERICO, In ANJOS, 2000, p. 129).
Neste novo esquema de Igreja, ainda que se reconheça o primado do bispo de Roma – como já foi feito pela Comissão teológica bilateral oficial entre Anglicanos e Católico-Romanos – há que se pensar em uma nova forma de exercício da função de primus inter parens, bem como em uma nova forma de relacionamento entre as igrejas particulares, produzindo mais companheirismo e mais vida. Nesse sentido, afirma o documento ARCIC: “Nenhuma Igreja local que participa da Tradição viva pode se considerar autossuficiente. São necessárias, então, formas de sinodalidade para manifestar a comunhão das Igrejas locais e para sustentar cada uma delas na fidelidade ao Evangelho. (…) Cada bispo é, ao mesmo tempo, uma voz para a Igreja local e um meio de a Igreja local aprender com outras Igrejas” (ARCIC, 1999, nº 37, 38). Deve-se destacar que, se por um lado os Anglicanos estavam dispostos a reconhecer o primado do bispo de Roma no Ocidente, deveria haver também, um intercâmbio na presidência do Colégio.
Por seu turno, o Vaticano II afirmou muito claramente sua inclinação para o princípio da colegialidade, “justificando-o com o argumento da antiguidade da tradição e o argumento da natureza colegial da ordem episcopal” (ALMEIDA, 2001, p. 75). O texto conciliar da Lumem Gentium diz: “A natureza colegial da ordem episcopal, claramente comprovada pelos Concílios ecuménicos celebrados no decurso dos séculos, manifesta-se já na disciplina. primitiva, segundo a qual os Bispos de todo o orbe comunicavam entre si e com o Bispo de Roma no vínculo da unidade, da caridade e da paz; e também na reunião de Concílios, nos quais se decidiram em comum coisas importantes, depois de ponderada a decisão pelo parecer de muitos (…) o mesmo é claramente demonstrado pelos Concílios Ecuménicos, celebrados no decurso dos séculos. E o uso já muito antigo de chamar vários Bispos a participarem na elevação do novo eleito ao ministério do sumo sacerdócio insinua-a já também. É, pois, em virtude da sagração episcopal e pela comunhão hierárquica com a cabeça e os membros do colégio que alguém é constituído membro do corpo episcopal. (…) E cada um dos Bispos é princípio e fundamento visível da unidade nas suas respectivas igrejas, formadas à imagem da Igreja universal, das quais e pelas quais existe a Igreja católica, una e única. Pelo que, cada um dos Bispos representa a sua igreja e, todos em união com o Papa, no vínculo da paz, do amor e da unidade, a Igreja inteira. Cada um dos Bispos que estão à frente de igrejas particulares, desempenha a acção pastoral sobre o porção do Povo de Deus a ele confiada, não sobre as outras igrejas nem sobre a Igreja universal. Porém, enquanto membros do colégio episcopal e legítimos sucessores dos Apóstolos, estão obrigados, por instituição e preceito de Cristo, à solicitude sobre toda a Igreja (…). Pelo que, cada um dos Bispos, quanto o desempenho do seu próprio ministério o permitir, está obrigado a colaborar com os demais Bispos é com o sucessor de Pedro, a quem, dum modo especial, foi confiado o nobre encargo de propagar o cristianismo. (…) Finalmente, os Bispos, em universal comunhão de caridade, prestem de boa vontade ajuda fraterna às outras igrejas, em especial às mais vizinhas e necessitadas, segundo o venerando exemplo dos antepassados. Por divina Providência sucedeu que várias igrejas, instituídas em diversos lugares pelos Apóstolos e seus sucessores, se juntam, no decorrer do tempo, em vários grupos organicamente unidos, os quais, salva a unidade da fé e a única constituição divina da Igreja universal, têm leis próprias, rito litúrgico próprio, e património teológico e espiritual próprio. (…) Esta variedade de igrejas locais a convergir para a unidade, manifesta mais claramente a catolicidade da indivisa Igreja. De modo semelhante, as Conferências episcopais podem hoje aportar uma contribuição múltipla e fecunda para que o sentimento colegial leve a aplicações concretas” (Lumen Gentium, disponível em <http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19641121_lumen-gentium_po.html>, acessado em 23 de outubro de 2018).
Em resumo, a perspectiva do Vaticano II defendia que aquela perspectiva piramidal/institucional/una de Igreja precisaria ceder, pelo reconhecimento da presença do Espírito Santo – e do senhorio de Cristo – em outras comunidades locais e em outros ministérios episcopais. Quanto aos aspectos canônicos acerca da legitimidade das ordenações episcopais, essa é uma questão flagrantemente secundária – ainda que importante – em relação ao aspecto e à questão de fundo teológico que trata – inequivocamente – da unidade da Igreja e do ministério episcopal.
A muito que o Conselho Mundial de Igrejas produziu um documento chamado BEM (Batismo, Eucaristia e Ministério) e temos ciência de que, em muitos locais do mundo, esse documento produziu bons frutos nessas três esferas. Resta saber se nós, Anglicanos, que sempre afirmamos ser “uma parte limitada e transitória da Igreja de Deus”, estamos realmente dispostos a dar passos concretos na busca da colegialidade dos bispos – que comungam do mesmo episcopado – e do reconhecimento das várias Igrejas particulares como parte da Igreja Uma de Cristo. Estas questões tanto se dirigem às autoridades Romanas, quanto às Anglicanas e às Anglicanas Continuantes. Aos Romanos resta vencer as oposições que se apoiam na Bula Apostolicae Curae, feita por Leão XIII em 1896, que declaram ser as ordens Anglicanas “nulas e inválidas”, bem como de dizer que somente ela é Igreja enquanto as demais seriam apenas “comunidades eclesiais”.
Aos membros da Comunhão Anglicana resta vencer a arrogância de achar que somente eles são os verdadeiros Anglicanos que existem sobre a terra. E, nesse aspecto, a própria colegialidade dentro da Comunhão Anglicana precisa ser repensada e renegociada depois das rupturas ocorridas desde a sagração de Gane Robinson em 2004 e os ultimatos colocados na última reunião da GAFCON em 2018.
E aos Anglicanos Continuantes, resta vencer o sentimento de inferioridade e retaliação por não se sentirem reconhecido como legítimos Anglicanos, muito embora mantenham fidelidade à liturgia expressa no LOC, aos 39 Artigos de Religião e ao Quadrilátero de Lambeth. Minha esperança é que a história e a natureza da ordem episcopal nos convença da necessidade e da importância da colegialidade e da seriedade da cordialidade entre aqueles que são nossos legítimos “Pais em Deus”.
Referências bibliográficas:
ALMEIDA, Antônio José de. Igrejas locais e colegialidade episcopal. São Paulo: Paulus, 2001
ANJOS, Márcio Fabri dos (Org.) Bispos para a esperança do mundo: uma leitura crítica sobre caminhos da igreja. São Paulo: Paulinas, 2000.
ARCIC (Comissão Internacional Anglicana-Católica Romana). O dom da autoridade. São Paulo: Paulinas, 1999
LELOUP, Jean-Yves. Introdução aos verdadeiros filósofos. Petrópolis: Vozes, 2003
SCHILLEBEECKX, Edward. História humana: revelação de Deus. São Paulo: Paulus, 1994
Lumen Gentium, disponível em <http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19641121_lumen-gentium_po.html>, acessado em 23 de outubro de 2018
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