
Padre Jorge Aquino.
Pode parecer estranho para muita gente, mas muita gente ainda hoje tem sérias dificuldades em comer carne vermelha durante a Sexta-Feira Santa. Essa situação é absolutamente compreensível porque, afinal de contas, vivemos em um país em que algumas das tradições religiosas oriundas do medievo, ainda permanecem vivas. O triste nisso tudo é que, quando não existem alternativas, algumas pessoas ou bem ficam sem ingerir proteína alguma, ou se sentem culpadas caso tenham que comer carne vermelha. Diante disso, gostaríamos de fazer algumas considerações.
Em primeiro lugar, é importantíssimo conhecer a origem dessa tradição que nos proíbe de comer carne na sexta-feira Santa. Antes de mais nada, é louvável que se fortaleça o aspecto espiritual de nossa vida por meio da ascese e do domínio dos desejos e dos instintos. Nesse sentido, a prática do jejum ocupa um papel fundamental. Desde o início do cristianismo que se ouve falar em jejum, particularmente, às sextas. No entanto, foi na Idade Média que aparece, não apenas o reforço da prática do jejum, mas a troca obrigatória da carne pelo peixe. Primeiro, devemos citar o papa Nicolau I (Sec. IX) que transformou em lei uma tradição que já era bastante antiga; a partir daí a situação foi ficando mais séria, já que o papa Inocêncio III (Sec. XIII) decretou que, aquele que questionasse esta abstinência estava cometendo um pecado grave; em seguida, o papa Alexandre VII (Sec. XVII) decretou que quem discordasse desse ensino fosse anátema, ou seja, maldito. De sorte que, até hoje, essa é uma obrigação de todo cristão católico, de acordo com o Código de Direito Canônico de 1983, em seu cânon 1251. Segundo afirma esse documento, é obrigatório fazer “abstinência de carne ou de outro alimento [...] todas as sextas-feiras do ano, a não ser que coincidam com algum dia enumerado entre as solenidades”. Muito bem, entendemos a questão do jejum entre os católicos-romanos. Mas por que a carne é trocada pelo peixe na sexta-feira Santa? Lamentavelmente, muitos desconhecem o fato de que, as pessoas mais pobres se alimentavam maiormente de peixe e que eram proibidos de caçar nas terras dos mandatários do lugar. Assim, enquanto os nobres se alimentavam da caça, os mais pobres comiam peixe. Ao abster-se da carne e voltar-se para o peixe, os cristãos católicos estavam se identificando com as pessoas mais pobres e mostrando sua humildade, sua recusa do prazer que a carne vermelha poderia trazer e seu amor por Cristo. Em resumo, essa tradição surgiu para que as pessoas de posse pudessem mostrar humildade e se identificar com os mais pobres, comendo peixe. Ocorre que, hodiernamente, com os elevados preços da carne de peixe, durante a Páscoa, se alguém quiser se identificar com os mais pobres deveria comer proteína oriunda do frango, ou mesmo dos ovos.
Em segundo lugar, é importante compreender que, conforme o ensinamento de Jesus, “o que contamina o homem não é o que entra na boca, mas o que sai dela” (Mateus 15:11). Ao dizer isso Jesus estava ensinando de que nossa condição de pureza ou impureza diante de Deus nada tem a ver com aquilo que comemos, e sim com o uso que fazemos de nossa língua. Em verdade, é por meio de nossa boca que amaldiçoamos, agredimos, mentimos e maldizemos. Muitos “se dizem” cristãos, mas vivem como se Deus não existisse. O profeta Isaías ensina: “esse povo se aproxima de mim, e com a sua boca e com seus lábios me honra, mas tem afastado para longe de mim o seu coração” (Isaías 29:13). Em outro texto extremamente importante ao tratar desse tema, Jesus ensinou: “O homem bom tira coisas boas do bom tesouro que está em seu coração, e o homem mau tira coisas más do mal tesouro que está em seu coração, porque a sua boca fala do que está cheio o seu coração” (Lucas 6:45). Em resumo, se pudéssemos jejuar de mentir, de maldizer de amaldiçoar e de agredir, certamente teríamos um mundo muito melhor, ainda que com mais calorias.
Finalmente, em terceiro lugar, devemos lembrar do exemplo de Pedro, que tinha uma origem judaica e que teve um sonho bastante revelador, enquanto estava em êxtase. Segundo as Escrituras, Pedro “Viu o céu aberto e algo semelhante a um grande lençol que descia à terra, preso pelas quatro pontas, contendo toda espécie de quadrúpedes, bem como de répteis da terra e aves do céu. Então uma voz lhe disse: ‘Levante-se, Pedro; mate e coma’. Mas Pedro respondeu: ‘De modo nenhum, Senhor! Jamais comi algo impuro ou imundo!’ A voz lhe falou segunda vez: ‘Não chame impuro ao que Deus purificou’” (Atos 10:11-15). Assim que Pedro acordou, viu àqueles que haviam sido enviados por Cornélio. Ao segui-los e encontrar com Cornélio, este centurião romano do regimento italiano, ou seja, um pagão de nascimento, ouviria a mensagem do Evangelho e ao final, se converteria ao cristianismo e receberia o Espírito Santo. Mas a metáfora que subjaz nessa mensagem se impõe: “não torne impuro o que Deus purificou”. Não importa qual alimento você tem sobre sua mesa. Dê graças e coma. Lembre-se de quantas pessoas não tem alimento algum! Nosso dever é promover a vida, logo, a possibilidade da existência de pão sobre todas as mesas.
Por isso, na sexta-feira santa, se você somente tem carne para comer, meu querido irmão, dê graças a Deus pelo alimento que Deus te deu e coma. Se tiver como compartilhar, compartilhe com quem nada tem. Se quiser jejuar, faça-o para a glória de Deus, mas não por obrigação e sim de bom grado e com o coração aberto.
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