top of page

AS VOZES DA CONTRA-REFORMA

  • Foto do escritor: Reverendo Padre Jorge Aquino ✝
    Reverendo Padre Jorge Aquino ✝
  • 21 de dez. de 2018
  • 20 min de leitura
consilho_trento2015

Reverendo Jorge Aquino[1]

Muito tem sido dito e escrito acerca da Reforma religiosa que sacudiu a Europa no primeiro quartel do século XVI. No entanto, certamente, ainda dispomos de pouco material, em nosso vernáculo, a respeito do movimento que modificou o cenário religioso do mundo, e que ficou conhecido como “Contra-Reforma”. Conforme escreve F.S. Piggin, “Contra-Reforma” é o “nome do reavivamento católico romano do século XVI” (PIGGIN, In ELWELL, Vol 1, 1988, p. 348). Já de acordo com o ensinamento de Kurt Schmidt, a expressão “Contra-Reforma” foi criada na época do Iluminismo pelo jurista de Göttingan Johann Stephen Pütter, que a descreveu como “a recatolização imposta à força nos territórios evangélicos” (SCHMIDT, 1982, p. 46). É claro que esta definição eminentemente luterana, não leva em consideração outros fatores que serão apontados nesse breve texto. Cito, por fim, Justo Gonzalez, para quem, em termos gerais, a reforma católica “Tratava-se de um intento de reformar a vida e os costumes eclesiásticos, de empregar a melhor erudição disponível para purificar a fé e de fomentar a piedade pessoal” (GONZALEZ, Vol 6, 1989, p. 183).

Conforme afirmado acima, quase nada sabemos ou lemos – em nossa língua – acerca da reação orquestrada pela igreja romana à Reforma protestante. Essa reação, que como vimos, passou a se chamar de “Contra-Reforma”, não pretendeu ser, apenas, uma mera reação, uma resposta ou um gesto reativo à realidade que se impunha. Nas palavras do teólogo contemporâneo Paul Tillich, “A Contra-Reforma não foi apenas uma reação, mas verdadeira reforma. A Igreja Romana, depois dela, já não era a mesma. Estava determinada a se afirmar contra o grande ataque da Reforma” (TILLICH, s/d, p. 195).

O primeiro a levantar essa tese foi Hubert Jedin que, em 1946, escreveu a história do concílio de Trento em quatro volumes e que se referia a esse fato histórico como “Reforma-Católica”. Conforme exposto, em que pese a existência de uma clara e visível reação ao que ocorrera, ela foi, antes de tudo, uma ação propositiva e construtiva que tinha a deliberada intensão de reformar muito de errado que existia na igreja e de apontar para novos horizontes que o descobrimento do Novo Mundo e a convivência com a modernidade e a ciência exigiriam. Neste texto, portanto, pretenderemos apresentar a Contra-Reforma dentro de uma perspectiva histórica, mas, abordando três elementos fundamentais que estavam ligados a ela.

A realidade religiosa, espiritual, política e moral pela qual passava a igreja de Roma não era exatamente das melhores. Em um texto que expõe essa situação que acabou por produzir a reforma católica, Roger Olson afirma o seguinte: “A maioria dos líderes católicos romanos estava totalmente revoltada com a degradação da igreja. Queriam clérigos cultos, genuinamente celibatários, residentes em suas paróquias e pregadores do evangelho – ao estilo romano. Queriam que os papas se concentrassem nas questões espirituais e deixassem para os governantes seculares as guerras e a política e ansiavam pelo dia em que os cargos da igreja não fossem mais comprados e vendidos (simonia) ou entregues a parentes (nepotismo). Finalmente, queriam que a igreja declarasse, de modo claro e oficial, quais eram suas crenças e as obrigações de um bom católico em termos de doutrina e de prática” (OLSON, 2001, p. 445). Dessa citação compreendemos que a igreja de Roma carecia tanto de uma identidade estabelecida, como de uma moralidade e uma prática mais coerente com o evangelho.

É preciso notar que, no que diz respeito à doutrina católica, muitas de suas crenças, que eram frontalmente repudiadas pelos reformadores, nunca haviam sido efetivamente e oficialmente declaradas como dogmas pela igreja de Roma. De sorte, que existia um vácuo doutrinário que era ocupado por crendices populares e que exigia da igreja uma declaração dogmática oficial e final. É diante desse vácuo que “Lutero e todos os seus amigos viviam na consciência de proclamar novamente o evangelho, a verdade de Deus. A forma como Roma respondeu a esse apelo à reforma da Igreja em cabeça e membros é por isso uma das questões centrais de toda a história eclesiástica” (SCHMIDT, 1982, p. 45). Não podemos, portanto, descuidar de estudar um tema tão significativo e importante para a história da Igreja Ocidental.

Tendo feito essa pequena introdução, passaremos a expor a temática da Contra-Reforma, a partir de três palavras fundamentais: “reação”, “reforma” e “renovação”.

1. Reação

Assim como a Reforma, a Contra-Reforma também teve seu aspecto político. E, em sua dimensão política, a Contra-Reforma foi um movimento marcado por uma forte “reação”. Essa reação acabou por gerar uma unidade política que envolvia os países católicos romanos e que incentivavam a inquisição e a aplicação do Index. Examinemos cada um desses três elementos, por vez.

1.1 Unidade política. Muito embora pretendesse ter uma abrangência continental, a Contra-Reforma às vezes “é descrita como um movimento espanhol” (…) [afinal] “dois dos três grandes instrumentos da Contra-Reforma tiveram suas origens na Espanha, a saber; a Sociedade de Jesus e a inquisição. O terceiro foi o Concílio de Trento, finalmente convocado em 1545, após pressões constantes do Imperador Carlos V, neto dos grandes monarcas reformadores da Espanha, Ferdinando e Isabel” (PIGGIN, In ELWELL, Vol 1, 1988, p. 348). A importância e a participação dos imperadores espanhóis nesse movimento pode ser medida pelas palavras de Paul Johnson, para quem, a coroa espanhola “Controlava sua própria Igreja, tanto em casa quanto no além-mar, e podia encarregar-se das reformas que considerasse necessárias” (JOHNSON, 2001, p. 358). A realidade é que, a importância da Espanha em toda essa trama, assumindo um papel de liderança, se deu em razão da desunião tanto política quanto religiosa encontrada na Itália. Não é segredo para ninguém o controle político que a Espanha exerceu sobre a Contra-Reforma em geral e sobre os papa, em particular. Essa relação entre a Espanha e a igreja não era recente. Segundo pontua Earle E. Cairns, “A Espanha tornou-se a nação líder na obra da Contra-Reforma, uma vez que nacionalismo e religião tinham se unido para unificar e consolidar o estado espanhol e, então, expulsar os mouros muçulmanos e os judeus. Depois de seu casamento em 1469, Isabel de Castela, fervorosamente religiosa, e Fernando de Aragão, também religioso, lutaram por uma Espanha unida e leal a Roma” (CAIRNS, 2001, p. 283).

A dimensão política da Contra-Reforma é uma realidade que não pode, simplesmente, ser desconsiderada. Ela significou uma “reação” ao avanço protestante pela Europa. Já estabelecido na Alemanha, França, Suíça, Inglaterra, Escócia e Escandinávia, por causa da “reação” promovida pela Contra-Reforma, os protestantes só chegaria à Holanda em 1560, e amargariam ter que perder a Bélgica e a Polônia, em razão da “reação” feita pela igreja romana.

1.2. Inquisição. É claro que a Inquisição era algo que já existia mesmo antes do início da Reforma protestante, e ela estava visceralmente ligada ao catolicismo espanhol. Segundo escreve Johnson, “Em fins do século XV, a maioria das mais nobres e ricas famílias espanholas, inclusive a família real de Aragão, estava ‘contaminada’. Não obstante, introduziram-se leis raciais a fim de ‘purificar’ os estratos superiores da sociedade. Foram promulgados estatutos de limpieza de sangre, banindo os descendentes de mouros e judeus (sobretudo estes últimos) das universidades e ordens religiosas. A Inquisição controlava com eficácia sua imposição e foi gradualmente ampliando seu escopo” (JOHNSON, 2001, p. 368). A figura de Tomás de Torquemada (1420-1498) – responsável pela tortura e morte de cerca de 10.000 de pessoas -, foi o responsável por colocar toda essa engrenagem em movimento.

O que chamamos de “Inquisição”, foi uma reação religiosa com um claro apoio político, estabelecido em 1542 pelo papa Paulo III e com inspiração na obra de Torquemada. Inicialmente sua intensão era suprimir a ação dos luteranos na Itália, no entanto, com o passar dos tempos, ela se espalhou por toda a Europa – particularmente a península ibérica – e se voltou também contra os judeus, os mouros e os intelectuais humanistas. Esta perseguição se estendeu por toda a Europa, de sorte que “todos os governantes católicos preocupavam-se em extirpar a fé protestante, usando para isso a espada. Na Espanha estabeleceu-se a Inquisição, por meio da qual inumerável multidão sofreu torturas e muitas pessoas foram queimadas vivas. Nos Países-Baixos o governo espanhol determinou matar todos aqueles que fossem suspeitos de heresias. Na França o espírito de perseguição alcançou o clímax, na matança da noite de São Bartolomeu, 24 de agosto 1572, e que se prolongou por várias semanas. Segundo o calculo de alguns historiadores, morreram de vinte a setenta mil pessoas” (HURLBUT, 1979, p. 154). Em alguns países cujo governo não era protestante, a Reforma foi bastante refreada, mas em outros como a Boêmia e a Espanha, ela foi completamente extirpada. Sob o comando de Ximenes, a Inquisição assassinou quase 2.000 pessoas. Segundo informa Cairns, seu modus operandi era bem peculiar: “Presumidos como culpados até que provassem sua inocência, os acusados não podiam ser acareados com seus acusadores, eram forçados a testemunhar contra si mesmos, e eram obrigados a confessar sob tortura. Se condenados, eram punidos com o confisco de bens, prisão, queima na fogueira, a menos que confessassem e se retratassem” (CAIRNS, 2001, p. 285). Um dado revelador, e que mostrava a promiscuidade entre o poder da igreja e o poder estatal, é que estas punições eram executadas pelas autoridades seculares com a supervisão atenta dos olhares dos inquisidores.

1.3. Índex. Se a invenção da imprensa, em meados do século XV ajudou a divulgação das teses Reformadas, em reação a isso, a Contra-Reforma também acabou por produzir uma forte reação. Essa reação veio na forma da criação de um catálogo de livros que deveriam ter sua publicação e leitura proibidos para os cristãos. Esse gesto, que já havia ocorrido em 1559 com Paulo IV – que promulgou o Index Romano de Livros Proibidos -, inspirou o papa Pio V a criar, em 1571, a Congregação do Índex, para a censura de publicações. Dentre os textos que deveriam ter sua leitura proibida para os católicos romanos, se encontram – além das traduções protestantes da Bíblia -, também os textos de inspiração humanista, como toda a obra de Erasmo. Segundo pontua Kunstmann, “Especialmente o humanismo (…) encarado do ponto de vista teológico, colocando o ‘humanum’ no lugar do divino, sendo antropocêntrico, gerou ideias perigosas com seu espírito crítico. A respeito de sua figura preponderante, Erasmo de Roterdam, o núncio papal em Worms em 1521, Aleandro, avisou o papa Leão X de que Erasmo seria muito mais perigoso à Igreja Romana, do que Lutero jamais poderia ser” (KUNSTMANN In O Catolicismo Romano, 1962, p. 30). Em sua criação, havia a orientação para que o responsável pela Congregação do Índex, mantivesse a lista sempre atualizada. Esta prática se conservou incólume até 1966 quando o Índex foi finalmente abolido.

2. Reforma

Em segundo lugar, em sua dimensão religiosa, a Contra-Reforma foi um movimento marcado por uma “reforma”. Esta reforma que atingiu a igreja católica romana pode ser, maiormente, vista em três grandes movimentos: um concílio ecumênico, novas regras morais para o clero e uma nova história – ou versão da história -, que deveria ser publicizada.

2.1. O Concílio de Trento. Foi por meio da promulgação de um decreto feito em 11 de novembro 1544, que o papa Paulo III faz a convocação do 19º Concílio Ecumênico da igreja, para se realizar na cidade italiana de Trento, a partir de março de 1545. A escolha da cidade não foi fortuita. Trento era uma pequena cidade que ficava exatamente na fronteira entre os estados papais italianos e o Sacro Império Romano. A ideia era procurar produzir a reconciliação entre os luteranos – muitos dos quais foram convidados para participar do conclave – e a igreja católica romana. Essa ideia original acabou por não prosperar.

Por outro lado, entre os líderes da igreja, havia a clara intensão de definir as diferenças entre os protestantes e os católicos romanos e de estabelecer que a igreja romana é a única igreja verdadeira. Por via de consequência, todos os demais dissidentes deveriam ser considerados hereges e anátemas.

Segundo Walker, ao lado da inquisição e da criação da Companhia de Jesus, o Concilio de Trento se tornaria um importante fator da Contra-Reforma. Historiando um pouco o Concílio, Walker nos diz que ele foi “Ansiosamente desejado por Carlos V e relutantemente convocado por Paulo III” (WALKER, Vol 2, 1981, p. 106). Convocado para se reunir em Trento, ele se transferiu para a Bolonha em março de 1547, em razão da maioria italiana. Voltou para Trento em 1551, onde a minoria espanhola permanecera. Em abril de 1552 foi suspenso em razão da revolta de Moritz da Saxônia contra o imperador e somente em janeiro de 1562 retomou os trabalhos, encerrando-os em dezembro de 1563. Como explica Walker, em sua exposição (Vol 2, 1981, p. 107), “A votação esteve restrita aos bispos e chefes de ordens, sem divisão por nações, como em Constança. A maioria ficou, pois, com os italianos. E ela representou o desejo papal de que definições doutrinárias precedessem as reformas”. Os espanhóis, por seu turno, postulavam que as reformas viessem antes das definições doutrinárias. No fim, ficou decidido que os temas seriam alternados, para agradar a ambos os grupos. Note-se a grande influência dos peritos teológicos do papa, os jesuítas Lainez e Salmeron na formulação final dos textos com um teor fortemente antiprotestante.

De uma perspectiva doutrinária, o Concílio definiu claramente sua posição contrária aos protestantes. Sendo assim, 1) as Escrituras foram colocadas ao lado da Tradição como fonte de verdade; 2) somente à igreja cabe o direito de interpretar corretamente as Escrituras; 3) embora a justificação seja definida de forma hábil, foi claramente deixado um espaço para as boas obras, e 4) os sacramentos foram definidos como aqueles sete que eram aceitos pela igreja medieval. Quando atentamos para o texto do Concílio, percebemos como ele pretende, claramente, marcar a identidade católica romana como algo dispare daquelas comunidades religiosas que advém da Reforma protestante. Dentre os textos que poderíamos citar, registramos os seguintes:

a) Acerca da inclusão dos livros apócrifos ou deuterocanônicos: “Se alguém não receber esses livros com todas as suas partes, como era costume de os ler na Igreja, e como se encontram na antiga edição da Vulgata Latina, e não os tenha por sacros e canônicos, seja anátema!”.

b) Acerca do papel da Tradição: “…Seguindo os exemplos dos padres ortodoxos, (a Igreja) recebe e venera com paridade de afeto e reverência todos os livros do Antigo e Novo Testamento, porque dos dois o único autor é Deus, e bem assim, as tradições, pertencentes tanto à fé quanto aos costumes, como se os tivesse ditado Cristo ou o Espírito Santo, e conservadas por continua sucessão na Igreja Católica…”.

c) Sobre ser a igreja católica o único caminho para a salvação: “Para que a nossa fé católica, sem a qual é impossível agradar a Deus, livre dos erros, permaneça em sua sinceridade integra e ilibada…” – “Se alguém disser que a verdadeira Igreja de Cristo, fora da qual ninguém pode se salvar, é outra que não a única, santa, católica e apostólica romana, seja anátema”.

d) Sobre a única autoridade para interpretar as Escrituras: “Para corrigir as inteligências fortes, decreta (o Concílio), que ninguém ouse interpretar, confiado em sua prudência, nas cousas de fé e de costumes pertencentes à edificação da doutrina cristã, a Sagrada Escritura, segundo seu próprio modo de ver, contra a orientação que seguiu e segue a Santa Madre Igreja a quem pertence julgar do verdadeiro sentido e interpretação das Escrituras, ou contra o assentimento unânime dos santos padres”.

e) No capítulo sobre a justificação (cânones IX e XII), declara que as obras são necessárias à justificação: “Se alguém disser que o ímpio é justificado pela fé somente, de maneira que entenda-se nada mais exigir-se para alcançar a graça justificante e de modo algum ser necessário preparar-se (o ímpio) e dispor-se com algum movimento próprio, seja anátema!”. (…) “Se alguém disser que as boas obras do homem justificado são dons de Deus, de tal modo que não sejam também bons merecimentos do homem justificado; ou que o mesmo justificado, pelas boas obras que, pela graça de Deus e por merecimento de Jesus, fizer, não mereça realmente o aumento da graça, a vida eterna, e (se morrer na graça), a obtenção da mesma vida eterna, e também o aumento da glória, seja anátema!”.

f) Sobre a importância de se crer para ser salvo, afirma o Concílio: “Se alguém disser ser necessário a todo homem para alcançar perdão dos pecados, que creia certamente e sem nenhuma hesitação, apesar de sua fragilidade e indisposição, terem-lhe sido perdoados os pecados, seja anátema!”.

g) Acerca do número dos sacramentos e da doutrina da transubstanciação, diz o Concílio: “Se alguém disser que o matrimônio não é real e propriamente um dos sete sacramentos da Lei do Evangelho, instituído por Cristo Senhor, mas inventado na Igreja pelos homens, e que não confere a graça, seja anátema!”. (…) “Se alguém disser que no Sacrossanto Sacramento da Eucaristia permanece a substância do pão e do vinho, junto com o corpo e o sangue de Jesus Cristo, nosso Senhor; e negar a admirável e singular conversão completa da substância do pão em corpo e de toda a substância do vinho em sangue, permanecendo somente as espécies do pão e do vinho cuja conversão a Igreja Católica chama justamente de transubstanciação, seja anátema!”.

h) Acerca da interpretação do sacrifício da missa: “Se alguém disser que o sacrifício da missa é somente de louvor e de ações de graças ou simples comemoração do sacrifício consumado na cruz, e não também de propiciação; ou que só vale a quem o recebe; e que não deve ser oferecido pelos pecados, penas, satisfações e outras necessidades dos vivos e dos mortos, seja anátema!”.

Por estas determinações e cânones citados acima e estabelecidos no Concílio de Trento, nos é possível ter uma visão razoavelmente ampla do tipo de catolicismo que estava surgindo de uma forma mais definida, clara e definitiva. Segundo informa Cairns, o controle que o papa exercia sobre o Concílio era tão evidente que, em uma bula papal, promulgada em 1564, era possível encontrar “um sumário da fé formulada no Concílio de Trento e que ficou conhecida como Confissão Trindentina de Fé. Todos os sacerdotes e professores tiveram que subscrevê-la, bem como os convertidos do protestantismo” (CAIRNS, 2001, p. 286). Em Trento o catolicismo romano se afirma e reforma sua doutrina e sua moral.

2.2 Nova moral. Como sabemos, os papas renascentistas eram, não apenas cultos, mas amantes da luxúria e extremamente gananciosos. A castidade também não era praticada com muita frequência. E o exemplo dado pelos papas acabava por influenciar também o clero, que era marcado pela imoralidade, pelo amor desenfreado ao dinheiro, mas, diferentemente dos papas, também pela extrema indigência intelectual.

Além de buscar e estabelecer definitivamente sua própria identidade, o Concílio de Trento também foi convocado “com o objetivo de investigar os motivos e por fim aos abusos que deram causa à Reforma” (HURLBUT, 1979, p. 153). A Contra-Reforma foi feita por homens que possuíam uma sincera vontade de servir a Deus, uma profunda piedade e um amor incondicional pela igreja. Os mais capazes dentre esses homens foram elevados ao cardinalato pelo papa Paulo III, garantindo uma sucessão papal com padrões bem mais elevados. Um dado interessante é que Paulo III escolheria nove homens, dentre os quais Caraffa, Contarini e Polo, para elaborarem um pleno de reforma religiosa para a igreja. Esse pleno foi apresentado em 1537 na forma de um documento que afirmava que “os abusos na igreja romana começaram com os pontífices anteriores que tinham vendido ofícios e dispensações indiscriminadamente” (CAIRNS, 2001, p. 281). Uma vez que, em 1555, o cardeal Caraffa se torna o papa Paulo IV, todo o seu zelo reformador é utilizada para imprimir mais força à Contra-Reforma. Essa nova moral seria fortemente exigida nas ordens que estavam surgindo. Entre os teatinos, por exemplo, os sacerdotes seculares eram obrigados a se submeterem aos votos de pobreza, castidade e obediência à comunidade religiosa, embora eles fossem livres para servir como sacerdotes paroquiais.

Um último elemento que precisa ser citado e que contribuiu para essa reforma moral, foi o incremento intelectual. Se o final da Idade Média foi marcado por padres licenciosos, gananciosos e pobres de cultura, a Contra-Reforma, por meio do cardeal Ximenes (mais um espanhol) introduziria o estudo sistemático da Bíblia entre o clero formado na Universidade de Alcalá. Foi também Ximenes que nos legou a Poliglota Complutense, que era uma edição da Bíblia com colunas em hebraico, grego e com a tradução da vulgata latina.

3. Nova história. Além de apresentar ao mundo uma nova doutrina e uma nova moral, o movimento de “reforma” ocorrido dentro da igreja romana, apresentou, também uma “nova história”. Ora, como sabemos, aquele que detém o poder é que apresenta a versão predominante dos fatos históricos, portanto, a “verdade”. E isso, a igreja romana quis fazer, e efetivamente fez, com maestria, nos países onde a Contra-Reforma atuou com mais energia. Segundo registra Cairns, “O cardeal Cesar Baronius (1538-1607), sob ordens de Philip Neri (1515-95), assumiu o encargo de pesquisar e escrever os seus doze volumes dos Anais Eclesiásticos (1588-1607), para refutar os treze volumes do Magdeburg Centuries editados por Matthais Flacius Illyricus. O ultimo volume dessa coleção pintava o papa como o Anticristo, e Baronius argumentava que a Igreja Católica Romana tinha sempre sido unida e inalterável e sempre fiel ao ensino apostólico” (CAIRNS, 2001, p. 283). Ainda hoje, para muitos estudiosos incautos, a Reforma ocorreu porque um monge queria casa e um rei queria casar de novo, reduzindo um movimento tão significativo na história da humanidade a uma questão de alcova.

III. Renovação

Por fim, a partir de uma perspectiva espiritual, podemos afirmar que ocorreu uma grande “renovação” na igreja católica romana. Essa renovação se deu de forma mais sensível em três áreas fundamentais, a criação de novas ordens religiosas, o desenvolvimento de uma rica espiritualidade e o incremento do fervor missionário.

1. Ordens religiosas. A importância das ordens religiosas para a “renovação” promovida pela Contra-Reforma foi clara. Antes mesmo do início desse movimento, a fundação, por volta de 1517, do Oratório do Amor Divino, foi fundamental. Esta organização informal que reunia clérigos e leigos que ansiavam por uma vida espiritual mais profunda foi essencial. Eles não apenas representavam um frescor espiritual, mas também tinham um viés voltado para a realização de obras de caridade. Dentre os mais importantes de seus membros, destacamos Giovanni Pietro Caraffa (1476-1559), que mais tarde (em 1555) se tornaria o papa Paulo IV, e Gaetano di Tiene (1450-1547) que serviria de fonte espiritual para muitos papas e Contra-Reformadores da igreja. Ademais, a ordem dos Teatinos teria sua origem nele.

Outra ordem importante que surge nesse período é a ordem dos Capuchinhos, fundada por Matteo da Bascio, em 1525. Conforme explica Cairns, essa ordem surge como “uma facção reformada dos franciscanos, [que] atraiu grandemente os camponeses com seu espírito auto-sacrificial de serviço e seu estilo popular de pregação” (CAIRNS, 2001, p. 282). O sinal principal dos capuchinhos era seu capelo pontudo e descalços, apontando para uma vida simples e austera.

As mulheres não ficaram atrás. Ângela Merici, em 1535, acaba criando a ordem Ursulina com o carisma voltado para cuidar dos enfermos e a educação das meninas. Até hoje essa ordem vem desenvolvendo um imenso trabalho em favor da igreja de Roma.

Sabemos que a “renovação” católica ocorreu, em sua dimensão espiritual, primeiramente, na formação de novas ordens religiosas. Mas, a mais conhecida e influente de todas elas é, indiscutivelmente, a ordem jesuíta. Criada por Inácio de Loyola (1491-1556), “A Companhia de Jesus (jesuítas), incorporada em 1540, foi a mais notável das novas ordens de sacerdotes reformados (clérigos regulares) que viviam entre os fiéis ao invés de se confinarem em mosteiros. (…) Os jesuítas ministravam aos pobres, educavam meninos e evangelizavam os pagãos. (…) Quando Inácio morreu, a Sociedade tinha cerca de 1.000 membros que administravam cerca de 100 fundações. Um século mais tarde, havia mais de 15.000 jesuítas e 550 fundações, o que é testemunho da vitalidade contínua da Contra-Reforma” (PIGGIN, In ELWELL, Vol 1, 1988, p. 348, 349). Os jesuítas era especialmente dedicados em razão dos conhecidos exercícios espirituais, que preparavam os membros da ordem para uma vida centrada na disciplina e no serviço.

No entanto, é preciso levar em consideração que, embora os jesuítas sejam a ordem religiosa mais conhecida da Contra-Reforma, outras ordens também tiveram origem nesse período. Dentre as várias ordens, destacamos os teatinos (1524), os somascos (1532) e os barnabitas (1534).

2. Espiritualidade. O incremento da espiritualidade foi um outro marcante elemento da renovação espiritual trazida pela Contra-Reforma. Para termos uma ideia bastante limitada, somente na Espanha do século XVI, mais de três mil obras místicas foram escritas. Dentre elas, as mais famosas pertenciam a João da Cruz, Tereza D’Ávila e Inácio de Loyola.

Esta expressão da vida religiosa foi marcada por um quietismo de auto-renúncia, ou seja, por uma “elevação da alma em contemplação e oração silenciosa a Deus até chegar à união no amor divino ou a estase de uma revelação interior” (…) “Essa piedade era combinada com uma imensa devoção à Igreja e seus sacramentos. Satisfazia os anelos religiosos das mais ardentes almas católicas e a Igreja, por seu turno, reconheceu-a, canonizando a muitos de seus representantes” (WALKER, Vol 2, 1981, p. 108).

3. Missões. Dentre os mais famosos missionários desse período, destacamos a figura marcante do jesuíta espanhol Francisco Xavier (1506-1552) que trabalhou como missionário em Goa, no sul da Índia, Ceilão, Malaia e Japão. Em poucas palavras Jesse Hurlbut nos mostra um pouco de sua obra dizendo que “Durante sua curta existência [46 anos], mediante seu trabalho, conseguiu a conversão de milhares de pagãos. Organizou tão sabiamente a obra das missões, que o movimento continuou depois de sua morte. Como resultados de seus planos e esforços, os católicos no Oriente hoje contam-se aos milhões. Durante toda a sua existência, Xavier demonstrou espírito manso, tolerante e generoso, e isso contribuiu para que sua memória seja estimada, tanto por católicos como também pelos protestantes” (HURLBUT, 1979, p. 159, 160).

No entanto, não podemos olvidar dos inúmeros outros missionários que se espalharam, particularmente, pelo Novo Mundo e que visava cristianizar os povos selvícolas que habitavam a Meso-América e a América do Sul, além do México e Canadá. Para Walker, a mais exitosa experiência missionária realizada pelos jesuítas ocorreu no Paraguai. Segundo ele, “Iniciaram ali sua obra, em 1586. Em 1610 começaram a reunir os índios em ‘reduções’ ou aldeias, todas construídas dentro do mesmo plano, onde os habitantes eram mantidos em paz e aprendiam a religião e as artes industriais” (WALKER, Vol 2, 1981, p. 109). A existência de tantas ordens e a superposição delas em várias regiões, bem assim, a necessidade de dirimir eventuais questiúnculas, levou o papa Gregório XV a fundar, em 1622, a conhecida Congregação para a propagação da fé, para que, a partir de Roma, todo o campo missionário pudesse ser supervisionado. Embora nossa atenção tenha se voltado maiormente para o trabalho realizado pelos Jesuítas, é preciso registrar que os dominicanos e franciscanos também participaram desse imenso trabalho missionário, muitas vezes, oferecendo seus monges para o martírio.

Conclusão:

Diante do que expomos, poderíamos dizer que a igreja romana realmente experimentou uma enorme reforma interna. Além disso, ela foi apta para gerar uma reação ao movimento reformador e conseguiu renovar sua moralidade, sua espiritualidade e sua missão. Um espaço muito grande deve ser dado ao Concílio de Trento que, segundo afirma Roger Olson, “foi um sucesso espetacular em comparação com as três reuniões ecumênicas anteriores. Centenas de bispos, abades e gerais de ordens especiais dentro da igreja reuniram-se, em várias sessões, em um período de quase vinte anos. O concílio foi interrompido por pestes, guerras e por controvérsias entre os delegados. O papa que convocou o concílio morreu antes de seu término e ele foi concluído por Pio IV, um pontífice radicalmente antiprotestante. Longe de conseguir a reunificação da cristandade, Trento intensificou as divisões. Por outro lado, fortaleceu o catolicismo romano e deu ímpeto à sua revitalização e ressurgimento. Os líderes católicos agora sabiam o que todo bom católico deveria crer e defender. Além de livrar a igreja da corrupção, o concílio criou um conjunto de decretos e um credo que uniformizava o dogma católico e condenava todo aquele que, assim como Lutero e outros protestantes, rejeitasse qualquer parte dele” (OLSON, 2001, p. 446, 447). Nesse aspecto, inquestionavelmente, a igreja romana deu um passo adiante. Nesse mesmo diapasão, Walker registra que: “O resultado de todas essas influências foi que aí por 1565 estava reavivado o zelo católico. Estava muito difundido um novo espírito tenaz na oposição ao protestantismo, medieval em sua teologia, mas pronto a lutar ou sofrer por sua fé. Ante esse zelo renovado, o protestantismo não apenas parou de fazer novos avanços mas suas conquistas na Renânia e no Sul da Alemanha foram deveras abaladas (WALKER, Vol 2, 1981, p. 108). O catolicismo, portanto, renovou suas esperanças de reconquistar o espaço perdido.

No entanto, em que pese os movimentos de “reação”, de “reforma” e de “renovação” que ocorreram na igreja romana, para o professor de teologia Hans Küng, o que realmente ocorreu durante o período da Contra-Reforma, foi uma volta aos paradigmas medievais – particularmente de reafirmação do autoritarismo papal -, portanto, o que realmente representava a Contra-Reforma, era uma “restauração” do passado. Mas, essa “restauração” só se daria naquilo em que ela precisava se contrapor ao movimento da Reforma protestante. Também seguindo uma direção parecida, Johnson postula que “A essência da Contra-Reforma, logo, foi o poder espanhol. Não foi um movimento religioso. Não havia um programa específico que não a de determinação negativa de extirpar o ‘erro’ protestante” (JOHNSON, 2001, p. 359). Para ele, portanto, esse grande movimento foi prioritariamente político com rebatimento em aspectos religiosos.

É interessante notar que, segundo pontua Paul Tillich, a igreja medieval parecia muito mais aberta ao diálogo do que a igreja da Contra-Reforma. Para esse teólogo luterano alemão, “A igreja medieval sempre esteve aberta a todas as influências, assimilando tremendos contrastes como, por exemplo, franciscanos e dominicanos (agostinistas e aristotélicos), realistas e nominalistas, e biblistas e místicos. Esse espírito desapareceu na Contra-Reforma” (TILLICH, s/d, p. 195). Isso significou que a igreja romana passou a se definir negativamente, ou seja, como o “contrário” da Reforma. Nesse aspecto, ela deu um passo para trás; passo que, embora tenha procurado um aggiornamento no Vaticano II, voltou a se mirar à luz do paradigma romano medieval com os papas João Paulo II e Bento XVI.

Referências bibliográficas:

CAIRNS, Earle E. O cristianismo através dos séculos: uma história da igreja cristã. São Paulo: Vida Nova, 2001

ELWELL, Walter A (Edit). Enciclopédia histórico-teológica da igreja cristã. Vol 1, São Paulo: Vida Nova, 1988

GONZALEZ, Justo L. Uma história ilustrada do cristianismo. Vol 6. São Paulo: Vida Nova, 1989

HURLBUT, Jesse Lyman. História da igreja cristã. Miami: Vida, 1979

JOHNSON, Paul. História do cristianismo. Rio de Janeiro: Imago, 2001

KÜNG, Hans. Christianity: its essence and history. London: SCM Press, 1995

O Catolicismo Romano: Um simpósio protestante. São Paulo: ASTE, 1962

OLSON, Roger. História da teologia cristã: 2000 anos de tradição e reformas. São Paulo: Vida, 2001

SCHMIDT, Kurt Dietrich. A presença de Deus na história. São Leopoldo: Sinodal, 1982

TILLICH, Paul. História do pensamento cristão. São Paulo: ASTE, s/d

WALKER, W. História da igreja cristã. 2 Volumes. São Paulo/Rio de Janeiro: ASTE/JUERP, 1981

[1] O Reverendo Jorge Aquino é um presbítero associado à Igreja Episcopal Anglicana de São Jorge; é Graduado, Especialista e Mestre em Teologia, especialista em Direito e Licenciado e Mestre em Filosofia. Foi Reitor do Seminário Anglicano de Teologia de Recife e professor de Teologia, bem assim de Filosofia do Direito, Sociologia Jurídica, História do Direito e Hermenêutica Jurídica em várias faculdades de Direito em Natal-RN.

 
 
 

Posts recentes

Ver tudo
MUDAMOS PARA OUTRO SITE

Caríssimos leitores, já que estamos com dificuldades de acrescentar novas fotos ou filmes nesse blog, você poderá nos encontrar, agora,...

 
 
 

Comments


Post: Blog2_Post

©2020 por Padre Jorge Aquino. Orgulhosamente criado com Wix.com

bottom of page