
Padre Jorge Aquino.
Boa parte dos debates envolvendo os cristãos mais conservadores e aqueles que se consideram mais progressistas, giram em torno de um versículo bíblico escrito na Epístola de Judas. Assim diz o texto, na versão Almeida Atualizada: “Amados, quando empregava toda a diligência em escrever-vos acerca da nossa comum salvação, foi que me senti obrigado a corresponder-me convosco, exortando-vos a batalhardes, diligentemente, pela fé que uma vez por todas foi entregue aos santos” (Judas 1:3). Ressaltamos particularmente a parte final do versículo que diz: “pela fé que uma vez por todas foi entregue aos santos”. Na versão Almeida Corrigida, lemos: “batalhar pela fé que uma vez foi dada aos santos”. A tradução da Nova Versão Internacional diz: “batalhassem pela fé uma vez por todas confiada aos santos”. Originalmente, ao escrever originalmente em grego Judas pontuou: “τη απαξ παραδοθειση τοις αγιοις πιστει”, ou, transliterando: “tê hapaks paradotheisê tois agiois pistei”.
Quando lemos esse texto, imediatamente perguntamos: sobre o que Judas está falando? Qual é essa fé que foi, uma vez por todas, entregue aos santos e, pela qual devemos batalhar? Desnecessário dizer que a resposta a estas perguntas não é simples. Para que possamos, no entanto, nos aproximar do sentido original da intensão de Judas, alguns passos precisam ser dedos. O primeiro passo será observar o texto dentro de uma perspectiva gramatica. Iniciando com uma observação manuscritológica, devemos destacar que não existe nenhuma diferença, na expressão que destacamos, entre a família que deu origem ao Textus Receptus e a família Ocidental. Esta ausência de variação na fraseologia destaca a unidade que nos primeiros séculos unia todas as variantes de manuscritos acerca dessa perícope específica.
Ainda dentro do aspecto gramatical, destacamos o papel de cada uma destas palavras que compõe a perícope que estamos analizando. Assim, a perícope começa com a palavra “τη” (tê), que é um artigo definido dativo, que atua como adjetivo pronominal e que, conforme lembra Kelly, citado por Rienecker e Rogers (1985, p.598), “estando no dativo denota a causa a favor do qual a pessoa se esforça”, ou seja, batalha diligentemente.
A segunda palavra da perícope é “απαξ” (hapaks), que significa “de uma vez por todas” ou “de uma vez para sempre”. Conforme comenta Summers (1995, p. 278), “esta expressão tem o sabor de finalidade, de algo completo. No tempo de Judas, os ensinos de Cristo e seus apóstolos haviam chegado a um tal ponto de cristalização, que a lealdade a eles significava ortodoxia, e afastamento deles significava heresia”. Muito embora Judas não entre muito em detalhe acerca dessa fé que, de uma vez por todas foi entregue aos santos, quando ele usa a palavra ephapax “não quer dizer ‘em certa ocasião’, mas, sim, uma vez por todas. (...) A qualidade de uma vez por todas da ‘fé’ apostólica é inescapavelmente vinculada com a particularidade da encarnação, em que Deus falou aos homens através de Jesus de uma vez para sempre” (GREEN, 1983, p. 152).
A terceira palavra da perícope é “παραδοθειση” (paradotheisê), que é o particípio aoristo passivo de paradidômi, ou seja, lembra-nos Rienecker e Rogers (1985, p.598) significa “entregar, transmitir, confiar a”. Rienecker e Rogers também nos lembra que “A palavra é usada para a entrega da tradição autoritativa em Israel (...), e Judas está dizendo, portanto, que a tradição apostólica é normativa para o povo de Deus” (1985, p.598). Segundo a visão de Summers (1995, p. 278), “A palavra entregue era a palavra usada para designar o ato de se passar de uma para outra pessoa os ensinamentos que haviam começado com Jesus e continuado pelos apóstolos e missionários”.
Em seguida temos o termo “τοις” (tois), que é um artigo definido, dativo, masculino plural.
A palavra seguinte da perícope é “αγιοις” (agiois), que é um adjetivo pronominal, dativo, masculino, plural que traduzimos por “santo”. Assim, este termo que traduzimos por sagrado, significa, no sentido físico puro, no sentido moral imaculado e no sentido cerimonial consagrado. Assim, esse adjetivo possui o sentido de limpo, sem mácula ou sem defeito. No Novo Testamento essa palavra é usada pra designar os cristãos (At 9:13,14,32,41; 26:10; Rm 1:7; 8:27; I Ts 3:13) como santos ou santificados pela ação do Senhor e partícipes da comunidade cristã (I Co 7:14).
Finalmente, temos a palavra “πιστει” (pistei), que é um substantivo, dativo, feminino, singular traduzido por “fé”. Geralmente encontramos no Novo Testamento, três formas de fés. Existe a fé subjetiva que nós exercemos em relação ao nosso Senhor, como quando lemos Hebreus 11:1; existe a fé enquanto ação diária, ou seja, que se identifica com a virtude espiritual e que exercitamos em nosso dia-a-dia, e a fé objetiva, que diz respeito ao que cremos e ao conjunto ou sistema das crenças cristãs. Certamente é nesse sentido que Judas usa o termo. Para Rienecker e Rogers (1985, p.598), citando Kelly, “A palavra indica aqui o corpo de verdades e o dativo deve ser ligado ao verbo ‘esforçar-se’”. Conforme postula Ray Summers, “a fé parece ser um acervo de doutrina, como poderíamos dizer, ‘a fé cristã’” (SUMMERS, 1995, p. 278). Conforme alguns comentaristas, esta é uma construção rara no Novo Testamento cujo significado deve ser o mesmo em Tito 1:4. A visão que encontramos em Michael Green é a de que “’A fé’ aqui é um corpo de crenças, fides quae creditur, em contraste com o significado mais usual de pistis como ‘confiança’, fides qua creditur” (GREEN, 183, p. 151, 152). Normalmente quando consideramos “a fé” como algo estático, deduzimos que estamos frente a um sinal de uma data avançada.
Um segundo passo seria observar o texto dentro de uma perspectiva contextual, ou seja, lendo-o dentro de seu contexto próximo e ampliado. Ao lermos o livro de Judas, percebemos muito claramente seu interesse em escrever sobre a nossa salvação comum e, repentinamente, se viu obrigado a escrever para exortar a igreja a batalhar pela fé que, uma vez recebida, foi repassada aos santos.
Ele assim o faz em função da ação de homens ímpios que convertem em dissolução a graça de Deus (1:4) e negam o único e Soberano Senhor Jesus Cristo (1:4). Em sua argumentação Judas faz referência aos que foram destruídos no Egito porque não creram, e que nem mesmo os anjos caídos foram poupados. Estas penalidades também sobrevieram sobre Sodoma e Gomorra e sobre todos os que não aceitam a autoridade e blasfemam das dignidades (1:8). Eles difamam o que não entendem e corrompem o que não entendem espiritualmente. Estes, apesar de seu comportamento reprovável, parecem continuar participando da comunidade de fé, como pastores, e comungando sem qualquer recato (1:12). Eles são como nuvens sem água, como árvores sem fruto e como as ondas furiosas do mar, “espumando sua própria sujidade” (1:13). Eles são murmuradores, bajuladores, interesseiros, queixosos e arrogantes.
No entanto, devemos sempre lembrar das palavras dos apóstolos de Jesus, segundo quem, nos últimos dias existiriam escarnecedores causando divisões. Mas nós, edificados pela fé santíssima (1:20) e orando no Espírito devemos nos conservar no amor de Deus esperando a misericórdia de Jesus, para a vida eterna. Como cristãos, devemos nos apiedar dos duvidosos, salvando-os, arrebatando-os do fogo. E aquele que é poderoso para nos guardar da queda, nos apresentará imaculados, ao único Deus, nosso Salvador.
Quando nos aprofundamos dentro dos temas apresentados por Judas, nos damos contas de que existem algumas observações que precisam ser levadas em consideração, particularmente sobre o tempo e o lugar em que esse texto foi escrito.
Escrito pelo meio-irmão de Jesus, este livro pode ser observado à partir de quatro leituras. Na primeira, esse seria o primeiro livro escrito do Novo Testamento, e teria sido escrito por volta do ano 65 depois de Cristo. Uma segunda visão nos diz que o livro teria sido escrito entre 66 e 67, em função das semelhanças com a carta escrita por Pedro. Uma terceira corrente entende que a explicação para as semelhanças entre Judas e II Pedro estaria em uma fonte comum utilizada pelos dois e que tratava sobre o risco dos falsos mestres. Alguns poucos autores opinam que o livro foi escrito por um pseudônimo que queria assumir a identidade de Judas, o que indicaria a data em torno de 80 e 90 d.C. esta corrente entende que neste período já se pode falar de uma “fé” já minimamente estabelecida. Eduardo Lohse (1980, p. 233), por exemplo, entende que o autor apela para o uso do nome do irmão de Jesus, “a fim de reforçar a polêmica contra os gnósticos” por isso, para ele, “a época da redação deve ser fixada no início do séc. II”
Finalmente, um terceiro passo, seria observá-lo dentro de seu contexto histórico. Falando acerca de sua recepção no cânon, cremos que não existe dúvida a esse respeito. Citações de versículos e de temas presentes nesta carta podem ser encontrados no Didaquê (II.7), em Barnabé (II.10), no Pastor de Hermas (Sim. V.vii,2) e na Epístola de Policarpo aos Filipenses (III,2), revelando que sua aceitação era universal. Apesar disso Eusébio e Jerônimo colocam Judas entre os textos “contestados”. Entretanto, afirma Kümmel (1982, p. 563) “esta dúvida sobre a canonicidade evidentemente não se apoia numa tradição independente, mas na ofensa feita por Judas ao usar os apócrifos”.
Quanto ao seu objetivo, quando lemos o texto da Epístola de Judas, compreendemos que ela, muito embora demonstre uma certa preocupação alguma falsa doutrina que, “este breve escrito não nos oferece dados suficiente para determinar que forma de heresia se tinha em vista” (HARRINGTON, 1985, p. 584). Muito embora seja acertada a consideração feita por esse teólogo, quando verificamos que boa parte das recomendações de Judas tendem a combater erros ligados à conduta moral, especificamente em questões sexuais, não me parece provável que seus destinatários fossem judeus – marcados pelo seus antecedentes puritanos -, mas pagão convertidos. Seguindo essa linha de raciocínio, os que estavam sendo atacados nesta carta, certamente estavam associados a algum tipo gnóstico de antinomianismo libertino.
Contudo existem autores que indicam que a perícope que estamos analisando só pode ser adequadamente compreendida em uma data bastante posterior. Harrison, por exemplo, faz referência ao fato de que, para alguns, a expressão “A fé que uma vez foi dada aos santos”, “refleja un período diferente al de la era apostólica, en el cual los hombres habían comenzado ya a pensar en aquello que se les había entregado como el mensaje autorizado del evengelio y como un baluarte contra la herejía” (HARRISON, 1987, p. 432).
Particularmente não creio que a perícope que estamos analisando tenha, necessariamente, que nos levar até o segundo século da era cristã. À luz das acusações feitas por Judas contra aqueles que negavam a fé, e diante dessa formação incomum, é verdade, mas correta de se colocar o assunto, “A fé que uma vez foi dada aos santos” não pode ser associada à uma construção doutrinária tão posterior quanto a que estabeleceu, por exemplo, a relação entre as duas naturezas de Cristo, negando as teses de Nestório. Não podemos entender que nossa perícope é posterior à decisão que determinou herética as teses de Ário, nem tampouco, podemos entender que na expressão “fé que foi de uma vez por todas entregue aos santos” já contemplaria a determinação da igreja acerca da relação das pessoas da Santíssima Trindade, negando o triteísmo, o modalismo ou o subordinacionismo. Em outras palavras, à luz do contexto literário, somente podemos falar da “fé que uma vez foi dada aos santos”, limitando-a ao aspecto da soberania de Cristo sobre nossa vida e nossa salvação. Aqui nada se diz sobre aspectos mais específicos da cristologia, da teologia própria, da escatologia, da soteriologia, etc. Nesse sentido, entendo que não se pode negar que “a fé cristã é uma a realidade que nos é dá de uma vez e para sempre. Quer dizer, há na fé cristã uma qualidade invariável. Isso não significa que cada época não deva ser redescoberta, repensada e experimentada novamente; mas quer dizer que há uma substância inalterável nela, e o centro permanente e inalterável da fé é que Jesus Cristo veio ao mundo, viveu e morreu para trazer salvação aos homens” (BARCLAY, acessada em 28 de agosto de 2022).
Minha inteira concordância com Barclay me faz dizer ser um sofisma acusar àqueles que pretendem reler às Escrituras dentro de um espectro hermenêutico diferente daquele que foi tradicionalmente utilizado, necessariamente os transforme em hereges, vez que mantém a fé “que uma vez foi dada aos santos” e estão apenas, redescobrindo, repensando e relendo o texto em um outro contexto vital.
Referência bibliográfica:
BARCLAY, Willian. A carta de Judas. Disponível em <httpsfiles.comunidades.netpastorpatrickJudas_Barclay.pdf> acessada em 28 de agosto de 2022.
GREEN, Michael. II Pedro e judas: introdução e comentário. São Paulo: Vida nova/Mundo Cristão, 1983
HARRINGTON, Wilfrid J. Chave para a bíblia. São Paulo: Edições Paulinas, 1985
HARRISON, Everett. Introducción al nuevo testamento. Michigan: SLC, 1987
KÜMMEL, Werner G. Introdução ao novo testamento. São Paulo: Edições Paulinas, 1982
LOHSE, Eduardo. Introdução ao novo testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1980
RIENECKER, Fritz/ROGERS, Cleon. Chave linguística do novo testamento. São Paulo: Vida Nova, 1985
SUMMERS, Ray. Comentário bíblico broadman. Vol. 12. Rio de Janeiro: JUERP, 1995
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