ACERCA DA IGREJA
- Reverendo Padre Jorge Aquino ✝
- 5 de out. de 2018
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Reverendo padre Jorge Aquino.
Antes de mais nada, gostaria de acalmar o leitor e explicar que não pretendemos, nesse pequeno opúsculo, tratar de forma exaustiva sobre todos os aspectos da Igreja. Não pretendemos escrever um tratado de eclesiologia. Nosso interesse se limita a procurar compreender qual a noção que os cristãos primitivos tinham desse termo e, de alguma forma, procurar aprender com eles algumas lições.
Antes de tudo, devemos compreender que o termo português “igreja”, é a tradução da palavra grega “ekklesía”. O ilustre exegeta J.H. Thayer, em seu famoso léxico nos diz que a palavra grega “ekklesía”, se forma da união de duas outras palavras “ek-kleiô”, e que ela aponta para uma “reunião de cidadãos chamados para fora de seus lares para irem a um lugar público; uma assembleia” (THAYER, 1969, p. 165, 166).
Em que sentido se pode compreender o uso desse termo em relação aos cristãos? Segundo entende Leonhard Goppelt, é possível encontrar em suas autodesignações a autocompreensão que tinham de si mesmo. Assim, afirma: “Tanto em Paulo como nos Atos dos apóstolos, a comunidade de Jerusalém é designada, de maneira bastante acentuada, de hoi hagioi, os santos; provavelmente se designavam a si mesmos dessa maneira (…). O mesmo, provavelmente, pode ser dito quando o apocalipse sinótico fala dos ‘eleitos’ (Mc 13: 20, 22, 27 par Mt) e, com toda certeza, quando o dito de Pedro, Mt 16: 18, fez referência à ekklesia, o povo de Deus ou de Jesus. (…) Será que os discípulos de Jesus também se compreendiam como o ‘verdadeiro Israel’ que se separa, antes do final dos tempos, da massa cheia de falhas da ‘igreja popular’ Israel, para herdar a graça prometida a Israel? Os títulos que eles se dão poderiam ser compreendidos dessa maneira, caso fossem separados do contexto de sua pregação; apenas um elimina essa compreensão. Segundo Mt 16: 18, eles não se designam mais, como Israel, de ekklesia de Deus, mas de ekklesia de Jesus: ‘Tu és Pedro, e sobre esse rochedo edificarei minha ekklesia!’. Ekklesia é, na LXX, a tradução de kahal. O kahal de Javé, a ekklesia kyriu, é o povo convocado por Deus” (GOPPELT, 1988, p. 265).
Um tema que certamente nos chama a atenção, em especial, é a ocorrência desse termo de uma perspectiva topológica no Novo Testamento. Muito embora o uso do termo “ekklesia” esteja mais relacionado à obra de Paulo, ocorrendo apenas uma vez nos evangelhos, acreditamos que esta única citação feita por Mateus que implica, necessariamente, que a realidade apontada por esse termo, não esteja subsumido em outras palavras ou imagens. Assim, sua aparente ausência em três dos quatro evangelhos, não significa, necessariamente, que os cristãos primitivos não se compreendiam como aqueles que foram chamados por Deus.
Quando atentamos para os Atos dos Apóstolos – onde o termo aparece 23 vezes -, muito embora apenas duas vezes (15: 41; 16: 5) no plural, compreendemos que o termo está designando comunidades cristãs locais específicas. Em apenas uma oportunidade (19: 32, 39, 41) o termo aparece para designar a reunião de pessoas sem qualquer conotação religiosa. Em duas das referências (8: 1; 15: 4, 22), é possível encontrar uma impressão teológica bastante desenvolvida. Não há como duvidar que a ekklesia é a comunidade cristã histórica reunida em Jerusalém. Essa designação histórico-temporal da comunidade de Jerusalém que tem, afirma Nobile, “a sua apresentação, quase estereotipada, como assembleia hierárquica, não é de valor neutro; ela recorda aquela assembleia do antigo Israel, (…) como ponto de referência teológico de Lucas” (NOBILE, In ALMEIDA, 2001, p. 13).
Nas cartas paulinas o termo “ekklesia” aparece 61 vezes. Uma vez que ele está sempre se referindo a comunidades concretas e definidas no tempo e no espaço, ele tanto usa o terno no singular como no plural. Para que possamos captar a verdadeira natureza dessas comunidades, no entanto, é preciso “prestar atenção as conotações que ele lhes confere: ‘de Deus’ (I Co 1: 2; 10: 32; 11:16, 22; 15: 9; II Co 1: 1); ‘de Cristo’ (Rm 16: 16); ‘dos santos’ (I Co 14: 33)” (ALMEIDA, 2001, p. 14). É claro que ao escrever para cada uma dessas comunidades Paulo conhece cada um dos seus problemas específicos, no entanto, ao reconhecer o aspecto sacro de cada uma delas, Paulo nos convida a pensar sobre uma realidade que, ainda hoje, nos atinge. Somos uma ekkesia de pessoas santas e pecadoras que amam e que esperam a parousia do Senhor.
Assim, é possível dizer que no Novo Testamento, a palavra “ekklesia” apresenta uma duplicidade de significado no qual os dois elementos semânticos guardam um único pertencimento. Desta forma, podemos dizer que “a ‘igreja’ é a comunidade local, geograficamente definida; ao mesmo tempo, ela, e justamente ela, é o lugar de uma operação transcendental que a qualifica, a sacraliza e lhe confere uma caracterização supramaterial ou espiritual. (…) Textos da tradição paulina, como Efésios e Colossenses, levam às últimas consequências esse caráter teológico presente no conceito das cartas mais indubitavelmente autênticas de Paulo e fazem das ‘igreja’ não mais simplesmente uma realidade local, mas um lugar que transcende os limites espaciais para fazer-se realidade supralocal e sobrenatural, ‘corpo de Cristo’ (Ef 1: 23; Cl 1: 18)” (NOBILE, In ALMEIDA, 2001, p. 17).
Desta forma, podemos afirmar com toda a certeza que, quando o termo “ekklesia” está se referindo à igreja local e específica, ele pode ocorrer tanto no singular quanto no plural. Assim, podemos falar da igreja em Corinto ou das igrejas da Ásia. Por outro lado, quando estamos nos referindo à igreja no sentido supralocal ou supratemporal, o termo não pode ser usado no plural. É nesse aspecto que a palavra é utilizada em Mateus 16: 18. Aqui, cabe fazer uma consideração bastante lúcida e que precisa ser considerada por todos: a comunidade local não é apenas uma parte da Igreja global, tanto quanto a Igreja global não é, simplesmente, a soma das comunidades locais.
Por fim, encerramos essa breve reflexão acerca da Igreja, afirmando que a experiência histórica do cristianismo não tende a dissociar ou separar as comunidades, mas a unificá-las sob o mesmo termo, que aponta para uma convocação feita por Deus. Assim, afirma Cerfaux: “As igrejas são, realizada em cada uma delas, esta única convocatio que chama judeus e gentios na unidade, e as igrejas na unidade” (CERFAUX In ALMEIDA, 2001, p. 18). De sorte que, assim como não há mais de uma igreja, também não existe mais de uma convocação.
Diante do exposto, existem algumas lições que deveríamos sempre relembrar. A primeira delas é a de que só existe uma Igreja. Muito embora existam muitas “igrejas locais” que expressam aspectos característicos de sua cultura e de seus valores peculiares, só existe “uma” igreja, assim como Cristo só tem “um” único corpo.
Se esta primeira afirmação for verdade, então podemos aceitar, também, o fato de que, as várias expressões dessa única Igreja, são parte da Igreja ou do corpo de Cristo. Muito embora, por uma questão didática, falemos em igreja militante e igreja triunfante, igreja visível e igreja invisível, na realidade, embora existam várias expressões visíveis apresentadas histórica e temporalmente, o Cordeiro só tem uma noiva. Todo esse jogo de palavras que procuram – por razões didáticas – dividir a Igreja, é apenas perda de tempo. Mesmo os cristãos que já não estão mais conosco (chamados por muitos de membros da igreja “invisível”) são parte do mesmo corpo. Lembro da comparação feita por um patriarca Ortodoxo que visitou nosso seminário em minha juventude e que comparou a Igreja com um homem que está nadando. A parte do corpo que está submersa, embora invisível, continua fazendo parte do corpo. Portanto irmãos, tenhamos mais cuidado e respeito ao julgar os demais membros do corpo de Cristo que não estão associados à nossa expressão política e mundana que, lamentavelmente, também chamamos de “igreja”. Não sejamos pretensiosos ao ponto de julgar o próximo; afinal, quem julga é o Senhor! Sejamos humildes, porque o Senhor atenta para o humilde, mas ao soberbo, Ele conhece-o de longe (Salmo 138: 6).
Uma última verdade que eu gostaria de lembrar, nos ensina que, muito embora cada igreja particular do Novo Testamento apresente seus defeitos, suas imperfeições e suas falhas, todas elas continuam sendo chamadas de “santos em…”. De fato, se somos ekklesia, somos convocados ou chamados por Deus para pertencermos a seu povo. Agora, enquanto Igreja, somos o Corpo de Cristo e, mesmo com nossas faltas, recebemos o Espírito Santo como penhor de nossa herança e que em nós habita e nos habilita a sermos efetivamente chamados para testificar da mensagem do evangelho. Assim, se somos ekklesia, somos o que Israel deixou de ser: luz para as nações (Isaías 42: 6).
Referência bibliográfica:
ALMEIDA, Antônio José de. Igrejas locais e colegialidade episcopal. São Paulo: Paulus, 2001
GOPPELT, Leonhard. Teologia do novo testamento. Vol 1. São Leopoldo/Petrópolis: Sinodal/Vozes, 1988
THAYER, J.H. A greek-english lexicon of the new testament. Grand Rapds, Michigan: Zondervan Publishing House, 1969
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