A Teoria Tridimensional do Direito
- Reverendo Padre Jorge Aquino ✝
- 26 de mar. de 2019
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Reverendo Cônego Jorge Aquino.
Quando pensamos na teoria Tridimensional do Direito, imediatamente nos vem à mente a figura singular do doutor Miguel Reale (1910-2006), talvez o mais significativo nome do pensamento jurídico pátrio.
Sua teoria, não apenas ficou notabilizada em nosso território, mas transpôs nossas fronteiras e ganhou destaque acadêmico em toda a América-latina e mesmo em muitos países do mundo. Ela, se baseava em uma afirmação bastante clara: o Direito possui uma tripla face formada pelo fato, pelo valor e pela norma. Assim, podemos resumir todo o debate sobre o tema dizendo que “Miguel Reale propõe para a ciência jurídica, nos termos do culturalismo, uma metodologia de caráter dialético, capaz de dar ao teórico do direito os instrumentos de análise do fenômeno jurídico, visto na unidade sintética de três dimensões: normativa, fática e valoriativa” (KÜMPEL, 2012, p. 303).
Ligado, conforme vimos, à corrente culturalista – que valorizava o aspecto cultural do Direito -, coube a esse ilustre pensador retirar seu culturalismo jurídico de uma fundamentação kantiana segundo a quem – em Kritik der Sitten – “A produção, em um ser racional, da capacidade de escolher os próprios fins em geral e, consequentemente de ser livre, deve-se à cultura” (KANT, In GONZALEZ, 2000, p. 3). Assim, a teoria tridimensional pressupõe uma dada situação de fato, que é referida a determinados valores. Por isso, “Na medida em que isto se coloca como um problema para o jurista, surge a necessidade de esclarecer as relações entre fato, valor, e norma” (KÜMPEL, 2012, p. 303).
Enquanto marco teórico da Filosofia do Direito, Reale parte do pressuposto de que o fenômeno jurídico somente poderá ser adequadamente analisado se o for por meio de uma leitura que englobe aqueles aspectos epistemológicos que foram mais abrangentemente utilizados pelos juristas ao longo da história, quais sejam, o fato jurídico (experiência), o valor e a norma. Para Reale o grande problema do Direito é que ele somente era utilizado a partir de uma visão unilateral, ou seja, priorizando apenas um dos aspectos citados. Ele tanto criticava o positivismo de Kelsen, que apenas observava os diplomas jurídicos emanados pelo Estado, quando criticava aqueles que viam o Direito apenas como fenômeno social (historicistas) e que observavam apenas o espírito cultural da época. Aliás, acerca de Kelsen ele chegou a dizer que sua concepção científica é “cega para o mundo dos valores, pois ele pertenceu àquela corrente de teóricos que depositou excessiva confiança na causalidade e na indução” (REALE, In MACHADO SEGUNDO, 2010, p. 45, n. 28). Para Reale não existe nenhuma ciência – muito menos o direito – “assepticamente isenta de pressupostos axiológicos, o que Kelsen ignorou” (REALE, In MACHADO SEGUNDO, 2010, p. 46, n. 33).
Reale nada tem contra a letra da lei. No entanto, ele postula que sejamos capazes de ir adiante. Para esse insigne pensador, o Direito vai além da mera letra da lei ou vontade do povo. Ele reflete um ambiente local e temporalmente condicionado, em que três aspectos – o fático, o axiológico e o normativo – sejam levados em conta quando se jurisdiciona. Citando suas palavras, “Direito não é só norma, como quer Kelsen, Direito não é só fato como rezam os marxistas ou os economistas do Direito, porque Direito não é economia. Direito não é produção econômica, mas envolve a produção econômica e nela interfere; o Direito não é principalmente valor, como pensam os adeptos do Direito Natural tomista, por exemplo, porque o Direito ao mesmo temo é norma, é fato e é valor” (REALE, 2003, p. 91).
Revelando sua influência contrária ao historicismo tradicional, que observava apenas os aspectos condicionantes da história, Reale afirmou: “O Direito é um processo aberto porque é próprio dos valores, isto é, das fontes dinamizadoras de todo o ordenamento jurídico, jamais se exaurir em soluções normativas de caráter definitivo” (REALE, 2003, p. 574). Está claro que sua leitura era basicamente dependente da dialética de Hegel. Assim é cediço que para Reale estes três elementos do direito estão em contínua atração posto que “o fato tende a realizar o valor, mediante a norma. Assim sendo, a conexão entre esses elementos é denominada dialética da implicação e da polaridade ou simplesmente dialética da complementaridade” (KÜMPEL, 2012, p. 303). O direito, visto assim – como a correlação de três elementos -, se mostra como um sistema aberto, dependente de outros que o abrangem e coíbem.
Contudo, em que pese aspecto dialético e valorativo, bem assim histórico, ele não pode ser adequadamente contado entre os relativistas. Bem à linha de Ortega y Gasset, Reale via o Direito como algo fundado na própria condição do ser, e, dessa forma, ele prima pelo fato essencial da liberdade. Assim, frente a acusações de relativista, Reale sempre recorria ao que chamava de “constante axiológica”, que eram os valores inerentes aos seres humanos e que envolviam a vida, a liberdade e a igualdade, próprios da condição humana. Eis suas palavras: “A vida do Direito não pode, efetivamente, ser concebida senão como uma realidade sempre em mudança, muito embora, a meu ver, se possa e se deva, reconhecer a existência de certas ‘constantes axiológicas’, ou, por outras palavras, de um complexo de condições lógicas e axiológicas universais imanentes à experiência jurídica” (REALE, 2003, p. 85). Desta forma, a acusação de relativista associada à pessoa de Reale, não pode prosperar.
Renunciar a uma visão metafísica do direito é condição sine qua non para que ele possa ser uma realidade apta a dizer o que é justo (iuris-dicere) diante de cada caso concreto. Por isso o julgador não vive em um mundo das ideias – nos moldes platônicos -, mas na realidade concreta onde os três elementos da teoria realiana se exprime. É nesse aspecto que Coelho, se refere a obra de Reale dizendo que sua teoria “afirma que o fenômeno jurídico não pode ser abstratamente concebido como norma vazia de conteúdo, mas sim como experiência concreta, forma de vida social em que se combinam três fatores: o fato, constituído por relações sociais reguladas pelas normas de direito, a norma que regula tais relações e o valor, fato que se articula com os dois anteriores. Essa articulação não deve, entretanto, ser compreendida como justaposição ou somatório de elementos estanques, mas como implicação de cada uma com as outras duas, num processo de recíproca exigência e intercomplementaridade” (COELHO, 2004, p. 129). Desta forma, por meio de uma dialética da complementaridade, o direito passa a ser visto como fazendo parte do mundo da cultura e passível de experiências empíricas, na proporção em que os valores e as normas, incidem sobre o comportamento das pessoas e da sociedade em geral.
Por meio de Reale o magistrado é convidado a abandonar uma leitura unilateral, acanhada e estreita do Direito, que privilegia apenas a letra de lei, e a ampliar a sua visão do Direito sendo capaz de jurisdicionar percebendo o que há por trás e, mesmo o que pressupõe a observação dos fatos. Aliás, para ele, “quando está em causa o problema do homem, põe-se, concomitantemente, com mais urgência, a indagação dos fundamentos do direito, e vice-versa” (REALE, In MACHADO SEGUNDO, 2010, p. 99, n. 47). Assim, quando o problema do homem se impõe, a justiça precisa falar. Mas, que fale de um lugar igualmente humano – com todas as suas circunstâncias -, e não de um altar onde os deuses postulam que suas decisões são inerrantes e infalíveis.
Referências bibliográficas:
COELHO, Luiz Fernando. Aulas de introdução ao direito. Barueri/SP: Manole, 2004
GONZALEZ, Everaldo T.Q. A teoria tridimensional do direito de Miguel Reale e o novo código civil brasileiro. Unimesp, 2000. Disponível em: http://www.unimesp.br/phpg/mostraacademica/anais/4mostra/pdfs/145.pdf. Acesso em: 25 de março de 2019
KÜMPEL, Vitor Frederico. Noções gerais de direito e formação humanística. São Paulo: Saraiva, 2012
MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Fundamentos do direito. São Paulo: Atlas, 2010
REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito. São Paulo: Saraiva, 2003
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