A SUPERIORIDADE DA PALAVRA SOBRE A ESTRUTURA ECLESIAL
- Reverendo Padre Jorge Aquino ✝
- 30 de jan. de 2020
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Reverendo Padre Jorge Aquino.
Certa vez o ilustre reformador inglês, Arcebispo Thomas Cranmer – responsável pelo Livro de Oração Comum e pelos Artigos de Religião – disse: “A Palavra de Deus está acima da Igreja”. Esta afirmação, longe de ser um disparate teológico, é a consequência mais clara da crença segundo a qual a verdadeira Igreja é aquela na qual se prega a verdadeira Palavra de Deus. A presença da Palavra é o que dá caráter veraz à instituição e a faz deixar de ser uma mera ONG para se tornar o Corpo de Cristo.
A superioridade da Palavra implica em que é ao seu redor que a liturgia deve ocorrer. Nossas celebrações não deveriam ter como objetivo a satisfação pessoal dos presentes, mas a adequação com o que ensina a Palavra de Deus. Quando Cranmer produz o Livro de Oração Comum e o presenteia todos os fiéis, ele está colocando nas mãos de cada Cristão um texto litúrgico solidamente fundamentado nas Escrituras. De fato, é praticamente impossível ler qualquer página do LOC sem reconhecer uma citação bíblica nela. Mais que isso, as matinas e as vésperas são demonstrações de que a Palavra deve está presente na vida de cada família da Igreja.
A superioridade da Palavra é o que torna aceitável o ensino da Igreja. Quando Cranmer presidiu a confecção dos 42 Artigos – que viria a ser 39 Artigos de Religião -, ele quis que ficasse claro que ninguém deveria impor sobre outros crença ou prática alguma que, como tal, não se pudesse provar pelas Escrituras. A supremacia da Palavra sobre o que era ensinado pela Igreja era clara. A Bíblia era a regra última de fé e prática.
Desta forma, compreendemos que quando tratamos que questões adiáforas (ou seja, aqueles que são indiferentes), temas a mais completa liberdade para atuar, ainda que contrariando outros elementos, como por exemplo, a prática tradicional da Igreja. Um desses assuntos, por exemplo, é a existência ou não de templos. Uma breve leitura do livro dos Atos dos Apóstolos ou das Epístolas paulinas, nos revelará sem qualquer sombra de dúvida, que a Igreja Cristã primitiva se reunia nas casas dos irmãos. E mesmo quando surgem os templos (em forma de basílica) com a oficialização do Cristianismo como a religião do Estado romano, não existiam bancos. Somente no final do século XIX é que as pessoas vão colocar bancos nas igrejas. Todos – exceto o coro e o bispo – assistiam a celebração, de pé.
Assim, em um mundo que se caracteriza pelo surgimento e pela multiplicação de grandes pregadores com igrejas cheias de milhares de membros, pergunto: seria esse o melhor modelo para o desenvolvimento das comunidades? Estou firmemente convencido que não.
Em primeiro lugar, creio que não, porque a própria Palavra de Deus nos dá um sólido testemunho de que a Igreja Cristã primitiva crescia dentro de comunidades que eram familiares. As Escrituras ensinam que: “no primeiro dia da semana, estando nós reunidos com o fim de partir o pão, Paulo… exortava-os e prolongou o discurso até a meia noite” (Atos 20:7). Em outros textos se diz que: “Eles perseveravam no ensino dos apóstolos e na comunhão, no partir do pão e nas orações” (Atos 2: 42); “Todos os dias, continuavam a reunir-se no pátio do templo. Partiram o pão em suas casas, e juntos participavam das refeições, com alegria e sinceridade de coração” (ver Atos 2: 46); e “Quando vocês se reúnem, não é para comer a ceia do Senhor” (I Coríntios 11: 20). Assim, sabemos que a Igreja primitiva se reunião nos lares – ver o exemplo de Priscila e Áquila (Atos 18: 26), Lídia (Atos 16: 15) e do Carcereiro de Filipos (Atos 16: 31-34) – e para, além da leitura e exposição da Bíblia, a Igreja primitiva se reunia para “partir o pão” (I Coríntios 10: 16; 11: 23; 14: 16), para cantar (Efésios 5:19; Colossenses 3:16b) e para orar (Atos 2:42; I Coríntios 14: 15, 16).
Em segundo lugar, porque em um mundo em que cada vez mais nos despersonificamos – ao nos transformarem em apenas um número -, desenvolver relacionamentos em pequenos grupos desenvolve mais profundamente nossas qualidades e nossos relacionamentos. Isso faz com que conheçamos todas as pessoas e as chamemos pelos nomes. Essa relação pessoal cria uma noção de comunidade e de corpo que é extremamente benéfico para o fortalecimento da Igreja enquanto Corpo de Cristo. Este tipo de comunidade é a base do que geralmente se convencionou chamar de “Igreja: comunidade terapêutica”.
Em terceiro lugar, porque o trabalho pastoral se torna mais efetivo em pequenos grupos. Certo dia, vindo de viagem com o pastor de uma das maiores Igrejas de minha região – com milhares de membros -, paramos em um restaurante no centro da cidade para almoçar e conversar um pouco sobre o curso que estávamos fazendo. A jovem que nos servia agia de uma forma bastante peculiar, a ponto de meu amigo dirigir a palavra a ela e perguntar se ela era “evangélica”. Diante da resposta positiva, ele perguntou: “em que igreja?”. E a jovem garçonete respondeu: “da sua!”. Esta resposta deixou meu amigo desconcertado, afinal ele demonstrava ser um pastor que não conhecia seu rebanho. É claro que, conhecer pessoalmente mais de quatro mil pessoas é algo praticamente impossível. Por isso ele tinha um grupo de pastores auxiliares que se responsabilizavam por várias áreas de atuação da igreja. Mas a questão central se impõe: seria esse o modelo pensado por Deus quando criou sua Igreja e quando chamou seus ministros para servir à comunidade? Creio que não. Em pequenos grupos podemos não apenas conhecer melhor cada pessoa, mas reconhecer os dons de cada um mais facilmente. Além disso, em comunidades assim, o ministro tem uma possibilidade mais concreta de servir pessoalmente às necessidades de todos os membros.
É claro que a tendência contemporânea é a de termos mega-igrejas com milhares de membros e seus pastores se transformando em meros administradores de pessoas. A tendência é ver nesses pastores, homens de sucesso! Exemplos a serem seguidos e cases a serem estudados e reproduzidos pelo mundo a fora. Quantos desses cases não se transformaram em livros que são comprados nas principais livrarias religiosas do mundo? É bem provável que esses homens sejam apontados como exemplos de missão e de evangelização. Sob esses aspectos, é bem provável que se alguém examinasse o ministério de Jesus e seus resultados práticos, é bem possível que ele fosse um exemplo de fracasso ministerial. Afinal, só conseguiu 12 discípulos e, um deles ainda o vendeu no final. No final de três anos de trabalho, seus seguidores o abandonaram, fugiram, um deles o negou três vezes e os demais se esconderam, com medo da polícia do lugar. Seja como for, nossa tese permanece de pé: a superioridade da Palavra de Deus sobre a estrutura eclesial nos leva a apontar para outros modelos eclesiais que podem ser menos espalhafatosos, mas certamente é mais efetivo.
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