A SUCESSÃO APOSTÓLICA: Uma abordagem alternativa
- Reverendo Padre Jorge Aquino ✝
- 1 de nov. de 2019
- 6 min de leitura

Reverendo Cônego Jorge Aquino.
O tema da Sucessão Apostólica é muito significativo para os Anglicanos. No entanto ele ainda precisa ser bem compreendido para que não estejamos defendendo teses não-necessariamente vinculadas com o Anglicanismo clássico.
Antes de tudo, é digno de nota que a expressão “sucessão apostólica” não se encontra no conhecido Quadrilátero Chicago-Lambeth, criado pelo Reverendo William Reed Huntington. Surpreendentemente, na sua origem, aquilo que vemos como o quarto elemento essencial do Anglicanismo diz respeito ao “Episcopado Histórico, adaptado localmente nos métodos de sua administração às diversas necessidades das nações e dos povos chamados por Deus na unidade de Sua Igreja”. Eis que surge aqui uma grande questão: porque existe essa diferença na formulação da questão?
Um outro aspecto que é digno de nota me foi colocada em uma carta pessoal que recebi do bispo Roy Morales-Kuhn da Anglican Ortodox Church, na qual ele assim se expressou sobre esse tema: “O conceito de algum tipo de autoridade para a existência derivar de uma linha ininterrupta de bispos consagrados nos últimos dois milênios é uma falácia histórica. Devido à turbulência e ao caos durante o nascimento da igreja primitiva, grande parte de nosso entendimento da linha direta de sucessores dos primeiros bispos consagrados pelos Santos. Paulo, Timóteo, Tito e outros não podem ser totalmente autenticados. O conceito começou a se reunir nos últimos dias da igreja primitiva, a fim de combater heresias”. Há nesta explicação feita pelo bispo Roy Morales-Kuhn alguns elementos interessantes. Primeiro ele é incisivo ao afirmar que este conceito de existência de uma linha ininterrupta de bispos consagrados nos últimos dois mil anos é claramente uma “falácia histórica”. O que torna essa argumentação mais interessante é que a totalidade das linhagens que chegaram até mim, hoje, se iniciava com Padro, em Roma. Ora, qualquer seminarista sabe que a presença física de Pedro em Roma é uma possibilidade histórica muito remota, ainda que a Igreja de Roma diga que ele foi o primeiro papa. Creio que o que realmente importa, segundo a argumentação do bispo Roy Morales, é que aquele que se apresenta para o ministério episcopal esteja disposto a manter-se fiel à fé que de uma vez por todas, foi dada aos santos (Judas 1: 3).
Aparentemente, a posição exposta no site da GAFCON também é bastante reveladora e segue em uma direção similar. Lá lemos a seguinte afirmação sobre a “Sucessão Apostólica”: “A fidelidade Anglicana à nossa herança apostólica é simbolizada pela prática da imposição de mãos pelos bispos na consagração de um novo bispo. Esta prática é apontada como a continuação de uma linha de sucessão apostólica que remonta aos primeiros dias da Igreja, mas não estabelece um direito absoluto ao reconhecimento e à autoridade espiritual. É um símbolo vazio se os bispos deixarem de ser fiéis sucessores dos apóstolos em seus ensinamentos. O apóstolo Paulo expõe o que é exigido de um episcopado fiel, como acontece com todos os ministros do evangelho, quando ele instrui Tito que um superintendente ‘deve manter-se firme à palavra confiável como ensinada, para que ele possa dar instruções sobre sã doutrina. e também para repreender aqueles que a contradizem’ (Tito 1: 9)”. (Texto disponível em: https://www.gafcon.org/about/orthodox-anglican, acessado em 30 de outubro de 2019).
Há algumas questões que essa definição coloca. A primeira delas é que a imposição das mãos dos bispos é vista apenas como um símbolo da “fidelidade Anglicana à nossa herança apostólica”. Não se fala de uma linha ininterrupta de imposições de mãos, mas de uma fé herdada de forma ininterrupta. Em segundo lugar, a exposição feita acima deixa claro que essa imposição de mãos ininterrupta “não estabelece um direito absoluto ao reconhecimento e à autoridade espiritual”. Isso ocorreu no passado – quando víamos bispos que mesmo estando dentro da sucessão apostólica pregavam heresias -, e pode ser encontrada nos dias de hoje, quando um conhecido bispo da Diocese da California procurava falar com o espírito de seu filho falecido em seções religiosas próprias de outras religiões. Nesse sentido, o texto diz que tal imposição ininterrupta de mãos não passa de “um símbolo vazio se os bispos deixarem de ser fiéis sucessores dos apóstolos em seus ensinamentos”. Finalmente, o texto é muito claro quando afirma que o que Paulo realmente desejava de seus sucessores era que eles se mantivessem “‘firme à palavra confiável como ensinada, para que ele possa dar instruções sobre sã doutrina. e também para repreender aqueles que a contradizem'(Tito 1: 9)”.
Percebemos, portanto, que o que interessava a Paulo era guardar a fé apostólica diante daqueles que apregoavam doutrinas erradas. Esse pensamento pode ser encontrado na exposição feita por Colin Buchanan, quando afirma que antes da época de Cipriano o tema da sucessão dos apóstolos era uma das questões preferidas de Irineu. Para ele, “Contra as seitas heréticas, ele apela para ela como uma nota da verdadeira Igreja. Ele lista os bispos de Roma desde os apóstolos, traça seus próprios ensinamentos através de Policarpo até João, e ressalta que não havia valentinianos antes de Valentinus, nem marcionitas antes de Marcion. Podemos ver que aqui também não temos insistência em sucessão apostólica por si mesma, mas apenas para um certo fim. Se examinarmos esse fim, veremos que a ‘sucessão’ não a garantirá hoje” (BUCHANAN, 1961, p. 22). Em outras palavras, a ideia de uma sucessão apostólica está intimamente ligada à preservação da fé apregoada pelos apóstolos e não a uma transmissão mágica de poder. Irineu escrevia contra a heresia gnóstica, que se opunha à tradição imutável da Igreja, ou seja, à sua tradição apostólica.
A questão é aprofundada quando se compara a Sucessão Apostólica com a recepção do depositum fidei apostólico. Isso nos remete a uma questão levantada por São Paulo sobre a verdadeira identidade dos filhos de Abraão. No livro de Romanos, Paulo deixa bem claro que os verdadeiros filhos de Abraão não são necessariamente aqueles que receberam a circuncisão no corpo, mas os que a receberam no coração, ou seja, os que creem. Vejamos suas palavras: “Assim ele recebeu a circuncisão como sinal, como selo da justiça que ele tinha pela fé, quando ainda não fora circuncidado. Portanto, ele é o pai de todos os que creem, sem terem sido circuncidados, a fim de que a justiça fosse creditada também a eles (Romanos 4: 11). O símbolo externo não é mais importante do que a realidade interna (fé) da qual a circuncisão é apenas um sinal.
Ora, Abraão é o Pai dos que creem, logo, seria natural afirmar que os verdadeiros filhos de Abraão seriam aqueles que permaneceriam na mesma fé de seu pai, e não, simplesmente, aqueles que tiveram seus prepúcios retirados. A retirada do prepúcio era um sinal de pertencimento, tanto quanto a imposição das mãos de um bispo que está dentro da sucessão apostólica também o é. Mas assim como a retirada do prepúcio não garante que aquela pessoa tenha a mesma fé que Abraão teve, a imposição das mãos de um bispo que está dentro da linhagem apostólica também não garante que o novo bispo tenha o mesmo compromisso com os ensinamentos dos apóstolos. É neste sentido que o bispo Headlam diz que a sucessão apostólica é “um fato, não uma doutrina”.
O episcopado é um fato “histórico”, e na qualidade de “histórico”, ele deve ser compreendido como “O bispo é um guardião e intérprete do ensino apostólico, o locus de comunhão para a igreja local, o focus de sua unidade e missão, seu representante nos conselhos da igreja universal, e (com seus colegas bispos e sacerdotes) parte do processo de discernimento e declaração da vontade de Deus em cada geração. É na combinação de todos esses fatores que a natureza ‘histórica’ do episcopado é estabelecida” (THOMAS. ANVIL. Vol 15, nº 2, 1998, p. 95).
Muito embora a circuncisão seja muito importante para que alguém se diga descendente de Abraão, o sinal ou o símbolo não é maior do que a coisa simbolizada, nem os gestos maiores do que aquilo para o qual eles apontam. Assim, a apresentação de uma lista ininterrupta que vai até ao apóstolo Pedro de nada adianta se tal bispo não acredita, não defende nem propaga a fé dos apóstolos. Antes de mais nada, o bispo precisa ser o guardião do ensino apostólico e o sinal de unidade – não de divisão – da Igreja Católica de Cristo. O critério principal – embora não o único – para que o bispo tenha a sua sucessão garantida está na satisfação do critério estabelecido por Vicente de Lerins, ou seja, se sua fé é parte do depositum fidei de toda a Igreja Católica.
Referência Bibliográfica:
BUCHANAN, Colin. The Church of England and Apostolic Succession. The Churchmam. Vol LXXV, Nº 1, 1961.
THOMAS. Philip. “The historic episcopate, locally adapted”: an element of Anglican tradition. ANVIL. Vol 15, nº 2, 1998
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