
SEMINÁRIO TEOLÓGICO BATISTA DO NORTE DO BRASIL
MESTRADO EM TEOLOGIA
A SALVAÇÃO DOS NÃO-CRISTÃOS
A PARTIR DA PERSPECTIVA DO VATICANO II
Reverendo Prof. Jorge Aquino
Trabalho apresentado para cumprir as exigências da disciplina Antropologia e Missões em Recife, 1997
INTRODUÇÃO
Nenhum teólogo, ou mesmo um leigo que se interesse um pouco por Teologia, pode desconsiderar a imensa contribuição dada pelo Concílio do Vaticano II (1962-1965), no que diz respeito à relação da Igreja com a sociedade moderna. Nenhum concílio na história da Igreja conseguiu mobilizar tanto a opinião pública e atrair tanta atenção para a comunidade eclesial quanto fez esse Concílio.
O que torna o Concílio do Vaticano II absolutamente singular dentro todos os demais Concílios anteriores, foi a correlação de dois fatores de extrema importância. O primeiro deles diz respeito ao momento histórico singular. O Vaticano II ocorrerá no mesmo momento em que se deu a crise do pós-guerra, a guerra fria, a revolução de Castro em Cuba, o assassinato de Kennedy, a queda de Stalin, a corrida espacial, os golpes militares na América Latina, os movimentos de libertação das Colônias Africanas, a primavera de Praga, os jovens nas ruas de Paris, o movimento de contra-cultura, a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos e tantos outros eventos que tornaram a os anos que antecederam e sucederam o Vaticano II, momentos que exigiram da Igreja uma tomada de posição urgente, clara e firme.
O segundo fator que fará do Vaticano II um Conclave ímpar, será a própria disposição de espírito deste Concílio. Desde o Concílio de Trento, passando pelo Vaticano I até bem poucas décadas antes do Vaticano II, o “espírito” reinante era marcadamente apologético. Trento havia sido convocado para “barrar” o crescimento do Protestantismo e o Vaticano I, por seu turno, para se contrapor ao Comunismo e ao “modernismo” teológico. O Vaticano II será diferente porque marcará o surgimento de uma teologia nova, serena e positiva ao invés de defensiva e polêmica. Congar chega a afirmar que o Vaticano II vai marcar o “fim da contra-reforma” (CONGAR, In MONDIN, Vol. 1, 1987, p. 17).
O Frei Boaventura Kloppenburg OFM, responsável pela introdução e pelo índice analítico do Compêndio do Vaticano II nos informa que as “intenções fundamentais” (COMPÊNDIO DO VATICANO II, 1984, p. 7) do Concílio eram quatro: Ser um Concílio pastoral, ser um Concílio “ecumênico”, ser um Concílio doutrinário e ensinar autenticamente, ou seja, com autoridade divina. E o próprio Papa Paulo VI, em declaração feita a 7 de setembro de 1966, nos instrui que o Concílio foi celebrado para “despertar, para renovar, para modernizar, para intensificar, para dilatar a vida da Igreja. Quer dizer, para tornar maior não só a consciência da sua natureza e da sua missão, mas também para aumentar a sua energia, a sua capacidade de corresponder à própria vocação, à sua ânsia de santificação interna e de difusão externa, a sua aptidão de entrar em contato com os irmãos separados e de oferecer ao mundo contemporâneo a mensagem da salvação em Cristo Senhor. De fato nós observamos, ...que toda a Igreja está em formação” (COMPÊNDIO DO VATICANO II, 1984, Capa).
Do que vimos acima se pode, legitimamente, concluir que o Concílio do Vaticano II vai, não apenas marcar uma ruptura com o passado, mas também estabelece um compromisso com o “aggiornamento”, o que implicará numa nova relação com as ciências humanas e uma nova compreensão do que seja Missão. Neste sentido, o decreto Apostolicam Actuositaten (AA) determinou que fossem criadas “centros de documentação e estudos, não só de Teologia, mas também de Antropologia, Sociologia, Metodologia, em que melhor se estimulem os talentos dos leigos, homens e mulheres, jovens e adultos, em favor de todos os campos de apostolado” (AA, nº 33).
O documento que vai marcar a nova relação da Igreja com as demais religiões será a declaração chamada de Nostra Aetate (NA). No entanto, antes de nos determos mais atentamente sobre o conteúdo deste documento, é de suma importância que se dedique algum espaço para se entender como, na história, a salvação dos não-cristãos foi encarada e compreendida. Para tanto, falaremos de duas posições conflitantes e existentes até o Vaticano II, o exclusivismo e o inclusivismo. Para sermos absolutamente honestos, além dessas duas posições, autores como A. Race, H. Coward, G. Costa, F. Teixeira, e tantos outros, expuseram uma terceira possibilidade conhecida como a pluralista.
I. O EXCLUSIVISMO
Por exclusivismo, se entende aquela posição que afirma ser necessária para a salvação um conhecimento explícito de Jesus e a pertença à sua Igreja. Esta posição se tornou conhecida graças ao tradicional axioma: “extra ecclesiam nulla salus”, que significa: “fora da Igreja não há salvação”.
Desde o período chamado de patrístico, que as relações da Igreja com as demais religiões têm sido marcada por um tensionamento, muitas vezes, mortal. Não devemos esquecer que nos dois primeiros séculos de nossa era, a Igreja foi tremendamente perseguida pelos Imperadores pagãos. Nos primeiros escritos cristãos já se pode ver bem nitidamente a ideia de que os cultos pagãos, não apenas desagradavam a Deus, mas também eram incentivados pelo diabo. Justino (100-165) afirma que as crenças gregas “son no sólo irracionales, sino que su practica supone un insulto a Dios” (Apud DAMBORIANA, 1973, p. 38). Mais adiante, ele afirma que “todos los pueblos gentiles que adoran a las obras de sus manos, fueron extraños al verdadeiro Dios” (Apud DAMBORIANA, 1973, p. 38). Ademais, Justino não tem qualquer dúvida de que estas divindades eram, de fato, demônios (Apud DAMBORIANA, 1973, p. 38), e que suas religiões foram instituídas por esses próprios demônios, que pedem aos homens sacrifícios e culto (Apud DAMBORIANA, 1973, p. 38). Estas considerações claramente negativas que dizem respeito aos cultos pagãos, vão fazer com que Tertuliano (160-220), Atanásio (296-373), Lactâncio (240-320) e Cipriano (?-258) se neguem a admitir que haja no culto pagão alguma possibilidade dele servir de instrumento que leve o homem a Deus. Para corroborar estas afirmações teológicas, os chamados Pais Apologistas vão se servir de argumentos retirados da moral pagã. Atenágoras, por exemplo, vai atacar a prática da prostituição, do aborto e as injustiças praticadas contra os fracos. Justino vai falar da corrupção dos escultores de ídolos, enquanto Teófilo vai acusar as divindades pagãs de mau exemplo.
Por tudo isso e muito mais, Orígenes (185-253) e Cipriano falaram da impossibilidade de “maternidade de graça” fora da Igreja, a nova Eva. Deve-se considerar, no entanto, que estes autores não tinham a intensão de estabelecer ou elaborar uma teoria acerca da salvação dos não-cristãos. Em Orígenes a intensão era a de apelar aos judeus para que não se restringissem apenas ao Primeiro Testamento, ao paço que, para Cipriano, havia o desejo de defender a unidade da Igreja em face das ameaças de divisão da comunidade (TEIXEIRA, 1995, p. 38).
Com o passar do tempo, a Igreja vai assumir uma posição de extrema importância na sociedade europeia e ficará diante de um de seus mais fortes opositores: o Islamismo. Creio que não é preciso falar das relações profundamente tensas que existiam entre a Igreja cristã e a religião criada por Maomé. Basta apenas lembrar do que ocorreu durante as Cruzadas, para que imaginemos o grau de hostilidade que, durante muito tempo, a Igreja nutriu contra esta religião.
É importante lembrar que, foi justamente neste clima de expansão do Islamismo pelo Oriente, em que o Concílio de Florença (1442) determinou que “nenhum daqueles que vivem fora da Igreja Católica, não só os pagãos, mas também os judeus, os hereges e os cismáticos, pode tornar-se participante da vida eterna. Todos eles acabarão no fogo eterno, ‘preparado para o Diabo e seus anjos’ (Mateus 25:41), se não incorporarem nesta mesma Igreja, antes do fim de sua vida” (DENZIGER, Apud TEIXEIRA, 1995, p. 38, 39). É importante assinalar que, pouco tempo depois desta declaração, a Igreja se viu diante das religiões dos nativos do Novo Mundo, empreendendo uma evangelização-colonização marcada, infelizmente, pela dor, pelo sofrimento e pela espoliação.
Esta mesma fórmula vai aparecer no dictatus papae de Gregório VII, na bula Unan Sanctam de Bonifácio VIII e especialmente no decreto para os jacobitas, onde se afirma que “A Santa Igreja Romana, fundada pela palavra de nosso Senhor e Salvador, crê firmemente, professa e anuncia que ninguém que esteja fora da Igreja Católica, nem pagão, nem judeu, nem incrédulo, nem separado da unidade pode se tornar participante da vida eterna, mas, ao contrário, cairá no fogo do inferno, se antes de morrer não se unir a ela (a Igreja). A unidade do corpo da Igreja é tão importante que os sacramentos eclesiásticos. São salutares somente para aqueles que nela permanecem, e é somente para eles que os jejuns, as esmolas e outras obras pias e exercícios da milícia cristã produzem frutos eternos. Ninguém, nem mesmo quem derrame o próprio sangue pelo nome de Cristo, pode ser salvo se não permanecer no seio e na unidade da Igreja Católica” (FRIES, In LATOURELLE/O’COLLINS, 1993, p. 319).
II. O INCLUSIVISMO
A posição inclusivista, diferentemente do exclusivismo, terá como característica principal, a busca e a valorização dos elementos positivos das outras religiões, reconhecendo-as inclusive, como dediações salvíficas para seus seguidores.
Segundo esta escola de pensamento, as religiões não-cristãs também são caminhos de salvação, na medida em que implica a salvação de Jesus. Assim, por meio de seu Espírito, Cristo se faz presente e ativo no crente não-cristão (RAHNER, 1989, p. 341), agindo além dos limites da Igreja organizada e institucionalizada.
É importante que tenhamos pleno conhecimento de que o caminho entre o exclusivismo e o inclusivismo foi mediado por iniciativas importantes. Surpreendentemente, a primeira tentativa de se observar elementos positivos nos não-cristãos, nos vem do período Patrístico, especificamente da obra de Justino o Mártir.
Segundo Justino, ainda que a filosofia e a religião helênica representem uma clara “degeneração da revelação original”, seus principais representantes tiveram um importante papel na história da salvação. Tanto é assim, que homens como Heráclito e Sêneca – para não falar dos estoicos – poderiam muito bem ser chamados de cristãos. Eles receberam alguns raios da revelação que os fez ser monoteístas em um mundo inundado de divindades por todo lado.
Justino afirmava também uma teoria do “empréstimo”, segundo a qual os filósofos gregos, com frequência, se apropriavam de verdades tomadas das Escrituras judaicas. Essa teoria – defendida anteriormente por Fílon – lhe fazia encontrar nas páginas do Timeu narrativas similares às do Pentateuco.
Para Justino, àquelas verdades professadas pelos filósofos não-cristão, representavam uma participação no que ele entendia ser o Logos espermatikos (sementes da palavra). Assim, se manifesta Justino: “A nosotros, dice, se nos há enseñado que Cristo es el primogénito de Dios... El es la palabra (logos) de quien participa todo el género humano. Por eso todos aquellos que viven com el logos son cristianos, aunque sean tenidos por ateos. Tales fueron entre los griegos Sócrates y Heráclito... y entre los bárbaros Abrahán, Elias, Azarias, Misael y outros muchos... de esse modo, aquellos que em la antiguedad viveron – o al presente se conducen – conforme al logos, son cristianos” (JUSTINO, In DAMBORIANA, 1973, p. 23).
Esta argumentação de Jeustino era uma forma de provar aos seus interlocutores pagãos, que o evangelho não era uma filosofia incipiente, mas que suas próprias verdades já estavam presentes nos ensinos dos grandes filósofos da história grega.
Desta forma, com a tese do logos espermatikos, Justino queria dizer que Cristo é aquela verdade que ilumina naturalmente a inteligência de todos os homens e implanta neles os conhecimentos morais e religiosos que são herança comum a todo o gênero humano. É importante lembrar, contudo, que Justino não concordava com a idolatria e que provavelmente era mais inclinado a aceitar a salvação de um pagão intelectual do que a de seu sacerdote.
A teoria do logos espermatikos não foi a única forma de se contrapor à tese exclusivista. Muito antes do Vaticano II, Pio IX já afirmava que todos aqueles que “sofrem ignorância invencível”, mas que “cuidadosamente guardam a lei natural e seus preceitos, esculpidos por Deus nos corações de todos e estejam dispostos a obedecê-los, levando vida honesta e reta, podem conseguir a vida eterna pela operação da virtude da luz divina e da graça...” (DZ 1677, In TEIXEIRA, 1995, p. 23).
Pio IX vai marcar uma diferença indelével na forma de como a Igreja vai ver as demais religiões. Rehner vai afirmar que foi justamente com este papa que vai surgir uma linha teológica que apontará, e que refletirá, acerca de um otimismo salvífico.
A tese exclusivista, muito embora hegemônica até o Vaticano II, seria oficialmente refutada pelo magistério da Igreja, por meio de uma carta enviada pelo Santo Ofício (antigo Tribunal da Inquisição) ao Arcebispo de Boston, condenando a posição do padre jesuíta Leonard Feeney – dirigente do Centro de Estudantes Católicos de Harvard – que exigia o pertencimento à Igreja como condição para a salvação. Nessa missiva, o Santo Ofício afirmava que “para que alguém obtenha a sua salvação eterna não se exige sempre que seja de fato membro da Igreja, mas que esteja ao menos incorporado a ela por desejo (voto et Desiderio); nem é necessário que este desejo seja explícito, como no caso dos catecúmenos, mas quando alguém se encontra em uma ignorância invencível, Deus aceita também o desejo implícito, assim chamado por estar incluído na boa disposição da alma, pela qual alguém deseja conformar sua vontade à de Deus” (DS 3870, In TEIXEIRA, 1995, p. 40).
O padre Feeney seria excomungado em fevereiro de 1953 e, comentando este episódio determinante, Congar assinala ter sido esta uma “curiosa posizione di un uomo che viene escluso dalla chiesa per avere affermato che coloro i quali non appartegono esplicitamente ad essa sono dannati” (CONGAR, In TEIXEIRA, 1995, p. 40).
Nos dias de hoje, é extremamente comum se afirmar que o axioma “extra ecclesiam nulla salus” deve ser entendido ou compreendido, como sendo um princípio “instrumental”, e não como um princípio “pessoal”. Ou seja, não se pretende dizer quem se salva ou não, vez que não compete a ninguém fazer tal juízo, mas explicitar por quais meios a salvação pode atingir os homens, ou seja, por Cristo e pela Igreja.
Para concluir estas considerações, deve-se lembrar, no entanto, que o axioma pode ser utilizado ainda hoje, mas como pensa De Lubac “de modo positivo, para dizer aos homens de boa vontade, não: ‘fora da Igreja vocês estão condenados’, mas: ‘por meio da Igreja, e somente através dela, é que vocês se salvarão’. A salvação chega através da Igreja e através dela já está a caminho em direção à humanidade” (DE LUBAC, In LATOURELLE, 1993, p. 320).
A teoria inclusivista possui, pelo menos, duas grandes vertentes. A primeira é composta por teólogos como J. Daniélou, H. de Lubac e U. von Balthasar, que nomearíamos de “tese do acabamento”. A segunda grande vertente, que nomearíamos de “tese da presença de Cristo nas religiões”, associado aos nomes de teólogos como K. Rahner, H. Schette, R. Panikkar e G. Thils.
De acordo com os postulados da primeira posição, os valores positivos das religiões não-cristãs são “explicitamente reconhecidos, mas destinados a encontrar o seu ‘acabamento’ (arremate) no cristianismo” (TEIXEIRA, 1995, p. 46). Estas religiões não seriam vistas mas, como obstáculos a serem vencidos, mas como elementos de preparação para o Evangelho. Desta forma, elas representariam o desejo de união com o sagrado, que é algo comum a toda humanidade. No entanto, é preciso ressaltar que, pelo caráter “natural” destas religiões, elas não podem responder plenamente as aspirações humanas. Somente no cristianismo – vista como a “religião espiritual” – o homem pode efetivamente, encontrar a plena e total relação com Deus.
Na corrente que defende a “presença de Cristo nas religiões”, Rahner propõe, por exemplo, uma retomada da perspectiva do otimismo da salvação universal, afirmando que pode existir fé salvífica em uma pessoa não-cristã. E, se isso é possível, então é certamente a graça sobrenatural do Espírito que possibilita e move esta fé (RAHNER, 1989, p. 371). Para este teólogo, portanto, a experiência originária do homem com Deus pode ser tão universal, atemática e irreligiosa que poderia até ocorrer até de forma anônima, muito embora, real. Desta forma, Rahner acaba por criar a categoria de “cristãos anônimos” que, na visão de Teixeira, “abarca a todos que tenham aceito livremente a oferta da autocomunicação de Deus, mediante a fé, a esperança e a caridade, mesmo que do ponto de vista social (através do batismo e da pertença à Igreja) e de sua consciência objetiva (através de uma fé explícita, nascida da escuta da mensagem cristã) não tenha tematicamente assumido o cristianismo” (TEIXEIRA, 1995, p. 51).
Antes de encerrar nossas considerações acerca do inclusivismo, creio ser forçoso ressaltar que, embora ele não restrinja à Igreja Cristã a dinâmica mesma da salvação (como ocorre com o exclusivismo), ele nega às outras religiões a autonomia salvífica, vez que esta se deve, unicamente, à pessoa de Jesus Cristo. Fazer missão dentro desta perspectiva, portanto, significa – afirma B. Mondin (1984, p. 163, 164) – tornar os cristãos anônimos cientes da maravilhosa realidade da graça e da salvação que já possuem e de que a Igreja é o sacramento, ou seja, o sinal visível.
III. O CONCÍLIO DO VATICANO II (1962-1965)
Tudo teve início no momento em que, no quarto dia do Conclave (28 de outubro de 1958) reunido em Roma, aparece na loggia da Basílica de São Pedro, o Papa que acabara de ser eleito. Diante dessa cena, eis que uma mulher do povo grita a plenos pulmões: “Um Papa gordo!”, e desmaia. Sim, ele era gordo, baixo e, para completar, idoso, vez que já contava com 77 anos de idade. Seu nome era Giuseppe Roncalli, que assumiria o nome de João XXIII.
Ninguém jamais esperaria muito daquele senhor idoso, eis a razão pela qual todos se surpreenderam com sua operosidade e seu empenho no “aggiornamento” da Igreja. Neste sentido, ele se empenhou imediatamente na reformulação do Direito Canônico, na reforma e descentralização do poder da Cúria Romana e em um relacionamento mais fraternal com todos os Bispos. Consciente que era, da missão universal da Igreja, não aceitava que a polarização entre o Leste e o Oeste, reduzisse a Igreja a uma mera instituição Ocidental. Escandalizou a muitos quando recebeu a visita da filha e do genro de Nikita Krushev e quando deu os primeiros passos na linha da chamada östpolitik, ou seja, da abertura para o Leste.
No entanto, a sua mais ousada decisão foi aquela anunciada no dia 25 de janeiro, convocando um Concílio Ecumênico, que deveria ter inicio em Roma no dia 11 de outubro de 1962. Este seria, de longe, afirma De Ávila (1991, p.244, 245), o evento mais significativo e renovador da Igreja desde o Concílio de Trento, que ocorreu entre 1545 e 1563.
1. A PREPARAÇÃO DOS ESPIRITOS
Em seu discurso de abertura, na primeira sessão do Concílio, o Papa João XXIII deixou logo bem claro que “o ‘ponctum saliens’ deste Concílio não é a discussão de um ou outro artigo da doutrina fundamental da Igreja... para isso não haveria necessidade de um Concílio. Mas da renovada, serena e tranquila adesão a todo ensino da Igreja, ...O espirito cristão, Católico e apostólico do mundo inteiro espera um progresso na penetração doutrinal e na formação das consciências, em correspondência mais perfeita com a fidelidade à doutrina autêntica; mas também de indagação e formulação literária do pensamento moderno. ...Sempre a Igreja se opôs aos erros; muitas vezes até os condenou... Nos nossos dias porém, a Esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia que o da severidade: julga satisfazer melhor às necessidades de hoje mostrando a validez de sua doutrina que condenando erros” (COMPÊNDIO DO VATICANO II, 1984, p. 8).
Pelo que se pode ver, com grande clareza, o ânimo que orientou os grandes debates e discussões no Vaticano II, não se notabilizou pela distribuição de anátemas, mas pela construção positiva e pelo reconhecimento da necessidade de se usar uma linguagem que seja relevante e moderna para se falar do Depósito da Fé.
Este espírito conciliatório ficou bem exposto quando foram convocados observadores não-Romanos para estarem presentes nas aulas conciliares, e quando , no dia 19 de novembro de 1962, Dom Emílio Smedt, em nome do Secretariado para a União dos Cristãos, apresentou aos padres conciliares, nove regras a serem observadas, para que os textos fossem redigidos em “estilo ecumênico”.
Um outro importante fato que serviu para dar o “tom” do Concílio, foi o lançamento da Encíclica Ecclesiam Suam, escrita pelo Papa Paulo VI – que substituiu João XXIII – em 1964. Nesta Encíclica, Paulo VI reconhece que “a Igreja deve estrar em diálogo com o mundo em que vive. A Igreja faz-se palavra, faz-se mensagem, faz-se colóquio” (Ecclesiam Suam, 67, In TEIXEIRA, 1995, p. 116). O diálogo é entendido como “modo de exercer a missão apostólica” (ibid, 1995, p. 116), e para que aconteça como “serviço” é necessário que se dê num clima de amizade: “ainda antes de falar, auscultar a voz e mesmo o coração do homem, compreendê-lo e, na medida do possível, respeitá-lo” (ibid, 1995, p. 116). Uma atitude de respeito se impõe na relação com as diversas tradições religiosas, que devem ser reconhecidas nos seus “valores espirituais e morais”, e seus ideais comuns “promovidos e defendidos” (ibid, 1995, p. 116). No entanto, a Encíclica adverte contra o risco do indiferentismo ou da equivalência entre as religiões, afirmando que “uma só é a religião verdadeira, a cristã”, que Deus revelou como a forma “infalível, perfeita e definitiva” pela qual quer “ser conhecido, amado e servido” (ibid, 1995, p. 116). Manifesta também o desejo de que todos venham a reconhecer a realidade deste modo. A Encíclica, em que pese ter uma ótica eclesiocentrada, revela uma atitude otimista para com as outras religiões, dando um passo adiante e sendo o primeiro documento oficial da Igreja a usar o termo “diálogo”.
2. UM POUCO DE HISTÓRIA
O documento final que viria a servir como declaração formal acerca do relacionamento da Igreja com as religiões não-cristãs, foi promulgada no dia 28 de outubro de 1965, pelo Papa Paulo VI, e que se chamaria Nostra Aetate (NA).
Esta declaração, no entanto, não aparece como que do nada. Ela foi o resultado de uma série de atos tomados por João XXIII e pelo Cardeal Bea, bem assim, como da enorme expectativa do mundo não-cristão.
No dia 5 de janeiro de 1960 é criado o Secretariado, e é escolhido como seu presidente, o Cardeal Bea. Mas mesmo antes que tivesse tempo de preparar um esquema acerca do ecumenismo, o Cardeal recebeu o encargo de redigir um decretum pro judacis, assim como uma declaração sobre a liberdade.
Ao longo de todo o ano de 1960, João XXIII se encontrará com a Organização Mundial Judaica (18 de janeiro), que agradeceu sua ação em favor dos judeus durante a guerra; com o professor Jules Isaac (13 de junho) e com cento e trinta pessoas da United Jewis Appeal (17 de outubro). Ainda durante este ano, o Instituto Bíblico de Roma, pede ao Concílio uma explicação bíblica sobre a questão judaica; e o Monsenhor Oesterreicher – diretor do Instituto Judaico-Cristão de Seton-Hall (USA) – transmite uma petição solicitando que seja suprimida dos catecismos os termos injuriosos relacionados aos judeus.
Em 1961, o Secretariado do Cardeal Bea elabora um projeto de sete páginas de um decreto sobre os judeus. O próprio Cardeal já havia escrito um texto sobre o inestimável e importantíssimo papel do povo judeu na história da salvação.
No ano seguinte, 1962, o documento já terminado seria submetido em junho à Comissão Central Preparatória quando, “por causa de condições políticas desfavoráveis” – termos usados pelo Cardeal Bea -, o decreto “foi retirado”. Em dezembro, o Cardeal escreveu pessoalmente ao Papa expondo as razões pelas quais julgava ser indispensável que o Concílio elaborasse um esquema sobre os judeus.
Entre os dias 18 e 19 de novembro de 1963, o projeto é apresentado aos padres conciliares para ser objeto de discussão (69ª e 72ª da Congregação Geral). Passa então daí a formar o capítulo IV do decreto sobre o ecumenismo e passa a se chamar “sobre a relação dos católicos com os não-cristãos, e principalmente, com os judeus”.
A 25 de setembro de 1964, o Cardeal Bea apresenta à 88ª Congregação Geral, uma segunda forma do esquema. Ela constitui a segunda das “declarações” colocadas em apêndice no decreto sobre o ecumenismo. E no dia 20 de novembro é apresentado uma terceira forma à 127ª Congregação Geral. Ela figura como apêndice na constituição sobre a Igreja.
Por fim, o texto levemente modificado, foi aprovado no dia 15 de outubro – com 1763 votos favoráveis e 250 contra – e promulgado pelo Papa Paulo VI no dia 28 de outubro de 1965.
3. O PENSAMENTO DA NOSTRA AETATE DENTRO DO CONTEXTO DO VATICANO II
Em face de questões que não nos interessa discutir neste momento, os Protestantes demonstraram muito mais abertura para o confronto entre a Teologia e as Religiões. No início, a Teologia Liberal – que tendia a equiparar o valor específico de todas as instituições, doutrinas e práticas – reinou absoluta. Mas ela foi fortemente confrontada pela Teologia Dialética, com uma visão essencialmente negativa das religiões, influenciada que era pela “sola fide”. Por fim, surge a Teologia da Secularização, cuja proposta consistia, justamente, em levar a mensagem evangélica para além de toda expressão religiosa. Era o que se popularizou chamar de “cristianismo sem religião”.
No campo Católico Romano, os teóricos tiravam proveito do que acontecia no Protestantismo para amadurecer seus próprios estudos no campo da Antropologia religiosa. Os manuais contudo, sempre continham um capítulo que tratava de vera religione. A mudança, na verdade, somente ocorreu no Vaticano II e ela veio por meio da instrumentalidade da Declaração Nostra Aetate (NA). Desta forma, nas palavras do missiólogo Protestante de Munique, Horst Bürkle, o que ocorreu foi “uma tomada de posição fundamental” (BÜRKLE, Apud ROSSANO, In LATOURELLE, 1993, p. 299).
Como já vimos, o pano de fundo do Vaticano II seria o progresso da humanidade e a busca da unidade. Ao buscar elementos comuns nas religiões, o Concílio reconhece a possibilidade de uma bondade moral e espiritual nas diversas expressões religiosas. As religiões passam a ser vistas sempre dentro do contexto do melhoramento da dignidade humana e do progresso da humanidade. Desta forma, diz a DeclaraçãoNostra Aetate: “Em nossa época, quando o gênero humano dia a dia se une mais estreitamente e se ampliam as relações entre os diversos povos, a Igreja considera mais atentamente qual deve ser a atitude para com as religiões não-cristãs” (NA nº 1, COMPÊNDIO DO VATICANO II, 1984). A Declaração termina com uma referência à base teológica da unidade, Deus como Pai de todos (Deum omnium Patrem), e suas implicações para os Direitos Humanos (NA nº 5,1-3, COMPÊNDIO DO VATICANO II, 1984).
A crença do Concílio no progresso da humanidade está embasada na implementação da lei moral que o Criador deu a todas as pessoas. A Constituição Pastoral Gaudium et Spes (GS), afirma que mesmo em um contexto de guerra, barbárie e terrorismo, a consciência do gênero humano proclama a existência de uma lei moral: “O Concílio tem em mira, antes de tudo, recordar o valor inalterável do direito natural dos povos e seus princípios universais. A própria consciência do gênero humano proclama estes princípios com segurança crescente” (GS nº 79,2, COMPÊNDIO DO VATICANO II, 1984). Relembrando os relevantes ensinamentos de Tomás de Aquino, a Constituição afirma ainda que: “na intimidade da consciência, o homem descobre uma lei. Ele não a dá a si mesmo. Mas a ela deve obedecer. Chamando-o sempre a amar e a fazer o bem e a evitar o mal. No momento oportuno a voz dessa lei lhe soa nos ouvidos do coração: faze isto, evita aquilo. De fato o homem tem uma lei escrita por Deus em seu coração” (GS nº 1,1, COMPÊNDIO DO VATICANO II, 1984).
A fundação teórica do Vaticano II, na verdade, não poderia ser outro senão o Tomismo. Nas palavras do doutor Miikka Ruokanen: “The Second Vatican Council leans heavily on the Thomistic axiom: Grace does not refute nature but perfects it (Gratia non tollis naturam, sed perficit). The Thomistic principle is combined with missionary motivation” (RUOKANEN, s/l, 1990, p. 57).
Quando a Constituição Dogmática Lumen Gentium trata da ação do leigo na Igreja, ela diz que os fiéis devem reconhecer o valor das criaturas para o louvor de Deus. Devem ainda, por meio de obras seculares, buscar uma vida mais santa para que o mundo seja imbuído do Espírito de Cristo e na justiça, amor e paz, atinja o seu fim” (LG nº 36,2, COMPÊNDIO DO VATICANO II, 1984). Quando a mesma Constituição fala da missão, sua motivação parece ser a mesma: “A Igreja trabalha de maneira tal que tudo o que de bom que se encontra semeado no coração e na mente dos homens ou nos próprios ritos e culturas dos povos, não só não desapareça mas seja sanado (sanetur), elevado (elevetur) e aperfeiçoado (et consummetur) para a glória de Deus, confusão do demônio e felicidade do homem “ (LG nº 17,1, COMPÊNDIO DO VATICANO II, 1984).
A Declaração NA, diz o Dr Ruokanen: “is given in the same framework of the Churche’s missionary vocation to promote the unity of menkind in terms of Theology of criation and natural moral law, and in terms of perfecting it by God’s explicit plan of salvation in Christ” (RUOKANEN, s/l, 1990, p. 57).
O preâmbulo da Declaração NA apresenta muito claramente, qual deve ser o dever da Igreja. Assim ensina a Declaração: “No seu dever de promover a unidade e a caridade entre os homens, e mesmo entre os povos, considera aqui sobretudo o que é comum aos homens e os move a viver juntos o seu destino” (NA nº 1,1, COMPÊNDIO DO VATICANO II, 1984).
Ao fazer um exame mais detalhado das religiões do mundo, a Declaração NA define o que é comum a todas as pessoas nestes termos: “Todos os povos, com efeito, constituem uma só comunidade. Têm uma origem comum (unam habent originem), uma vez que Deus fez todo o gênero humano habitar a face da terra. Têm igualmente um único fim comum (unum etian habent finem ultimum), Deus, cuja providência, testemunhos de bondade e planos de salvação (concilia salutis), abarcam a todos, até que os eleitos se reúnam na cidade santa, que será iluminada pelo esplendor de Deus e em cuja luz caminharão os povos” (NA nº 1,2, COMPÊNDIO DO VATICANO II, 1984).
Em termos de Teologia da criação, todas as pessoas vivem na esfera da providência do criador e se alegram na bondade das coisas criadas. No entanto, é afirmado aqui nesta Declaração, que Deus é o fim último de todas as pessoas e que através de seu “plano de salvação”, Deus oferece a possibilidade de cidadania na escatológica Cidade Santa. Assim, “This is the soteriological-Eschatological offer of grace, madiated through the Church. This is the vocation of all men to become menbers of the people of God” (RUOKANEN, s/l, 1990, p. 58).
Pelo que claramente podemos verificar, existe um certo dualismo na Teologia da NA. Assim, de um lado, o homem vive na esfera do Deus criador – esta é sua vocação humana; no entanto, por outro lado, o significado da salvação é estendido a todos, só encontrando sua plenificação nos eleitos (electi) – esta é a vocação divina do homem. A vocação humana é entendida nos termos da Teologia da criação e da lei moral, enquanto que a vocação divina nos termos da media salutis e da graça divina.
A tese da voz de Deus na consciência humana não se limita apenas a questões morais, mas também a questões da verdade. Na Declaração GS nós lemos que “A consciência é o núcleo secretismo e o sacrário do homem onde ele está sozinho com Deus e onde ressoa sua voz” (GS nº 16,1, COMPÊNDIO DO VATICANO II, 1984). Existem elementos da “verdade e da graça” entre todos os povos; e isso tem como base a “secreta presença de Deus” em toda a sua criação (AG nº 9,2, COMPÊNDIO DO VATICANO II, 1984). Neste sentido, a Declaração NA diz que “a Igreja Católica nada rejeita do que há de verdadeiro (itálico nosso) e santo nestas religiões. Considera ela com sincera atenção aqueles modos de agir e viver, aqueles preceitos e doutrinas. Se bem que em muitos pontos estejam em desacordo com o que ela mesma tem e anuncia, não raro, contudo, reflete lampejos daquela verdade (itálico nosso) que ilumina a todos os homens (radium illius veritatis, quae iluminat omnes homines)” (NA nº 2,2, COMPÊNDIO DO VATICANO II, 1984).
Esta veritas a que se refere o texto da Declaração é a verdade cristã. Em resumo ela reafirma que “The validity of non-christian religions is measured by the Christian criteria” (RUOKANEN, s/l, 1990, p. 58). A seguinte passagem de Declaração NA nos relembra quem, efetivamente, personificou essa verdade: “Vê-se ela (a Igreja) de fato obrigada a anunciar incessantemente o Cristo que é ‘caminho, verdade e vida’, no qual todos os homens podem encontrar a plenitude da vida religiosa” (NA nº 2,2, COMPÊNDIO DO VATICANO II, 1984).
Assim, a Declaração NA afirma claramente que existe, “entre os diversos povos certas percepções daquela força misteriosa que preside o desenrolar das coisas e acontecimentos da vida humana” (NA nº 2,1, COMPÊNDIO DO VATICANO II, 1984). Intimamente ligadas ao progresso da cultura, as várias religiões se esforçam para responder a questão sobre o mistério da vida por meio de “conceitos mais sutis e linguagem mais acurada” (NA nº 2,1, COMPÊNDIO DO VATICANO II, 1984). As religiões são vistas aqui como aquela parte da experiência humana e da cultura que toma consciência de deus. A religião é na realidade “a alma da cultura” (BOFF, 1989, p. 813).
Ao falar das religiões não-cristãs, o documento se refere a quatro grupos bem específicos. O primeiro grupo é identificado com o judaísmo. Na Declaração NA, a Igreja reconhece que os primórdios da fé e da eleição se encontravam entre os patriarcas, Moisés e os profetas. Os cristãos são chamados aqui, de filhos de Abraão e a Igreja é vista em figura no êxodo (NA nº 4,2, COMPÊNDIO DO VATICANO II, 1984). A Declaração nos informa ainda, quão grande era o número de pessoas amadas por Deus e que estavam intimamente ligadas à Igreja. Fala-se de Paulo, dos Apóstolos, da virgem Maria e do próprio Cristo (NA nº 4,3, COMPÊNDIO DO VATICANO II, 1984). Apesar de todos estes dados positivos, a Declaração ressalta com ênfase que “Jerusalém não conheceu o tempo de sua visitação” (NA nº 4,4, COMPÊNDIO DO VATICANO II, 1984); e os judeus acabaram rejeitando o evangelho. Nem por isso, contudo, deixam de ser amados por Deus. E já que existe um tão grande patrimônio espiritual comum, Cristãos e Judeus precisam fomentar o mútuo conhecimento e apreço, obtido principalmente por meio de estudos bíblicos-teológicos e por diálogos fraterno (NA nº 4,5, COMPÊNDIO DO VATICANO II, 1984). Por fim, a Igreja deixa bem claro que ela reprova toda perseguição aos Judeus, lamentando as manifestações anti-semitas e declarando que os Judeus não devem jamais ser apresentados como amaldiçoados ou condenados por Deus, já que Cristo sofreu voluntariamente para que todos tivessem a salvação (NA 4,6-8, COMPÊNDIO DO VATICANO II, 1984).
O segundo grupo de que trata a Declaração NA é o Islamismo. Quanto a esta religião específica, a Igreja deve tratar com carinho, uma vez que ela adora a um único Deus “vivo e subsistente, misericordioso, onipotente, criador” e que falou aos homens. A Declaração apresenta ainda outras razões pelas quais a Igreja deve buscar ter um bom relacionamento com o Islamismo. Uma delas é o fato de que eles se esforçam para se submeter à vontade de Deus; eles veneram a Jesus como profeta; eles honram e invocam a virgem Maria; eles aguardam o Dia do Juízo e valorizam a vida moral, a oração, as esmolas e os jejuns (NA nº 3,1, COMPÊNDIO DO VATICANO II, 1984). Embora tenha havido muita perseguição e muito conflito no passado, o Concílio exorta a todos a que pratiquem a mútua compreensão e lutarem pela ampliação dos valores morais, da justiça social, da paz e da liberdade (NA nº 3,2, COMPÊNDIO DO VATICANO II, 1984). Dois detalhes importantes devem chamar a nossa atenção no que diz respeito a esta parte da Declaração. Primeiro, é imperioso que notemos que em momento algum Allah é chamado pelo nome; e, em segundo lugar, de que não há uma só palavra nos textos conciliares fazendo referência à Maomé.
Em terceiro lugar, na lista das religiões que são tratadas pela Declaração, estão o Hinduísmo e o Budismo. No que diz respeito à primeira religião, a Declaração faz referência à tentativa dos homens em explicar o mistério divino por meio de uma “inesgotável abundância de mitos e sutis tentativas filosóficas” que procuram a libertação das angústias da condição humana no ascetismo e na meditação profunda (NA nº 4,6-8, COMPÊNDIO DO VATICANO II, 1984). Quanto ao Budismo, a Declaração se limita a afirmar que ele corretamente reconhece a insuficiência deste mundo mutável, ao passo que ensina o caminho para que pudéssemos atingir a suprema iluminação (NA nº 2,1, COMPÊNDIO DO VATICANO II, 1984).
Finalmente, o texto faz referência às “demais religiões” que se encontram em todo o mundo e que se esforçam, de diversos modos, para responder às inquietações do espírito humano, propondo doutrinas, regras de vida e ritos sagrados. A Igreja, diz a Declaração, “não rejeita o que há de verdadeiro e santo nestas religiões” (NA nº 2,2, COMPÊNDIO DO VATICANO II, 1984), e exorta os cristãos a que, com prudência e amor, por meio do diálogo e pelo testemunho da fé cristã, se desenvolvam os valores socioculturais que se encontram entre elas (NA nº 2,3, COMPÊNDIO DO VATICANO II, 1984).
IV. CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS SOBRE O PENSAMENTO DO CONCÍLIO DO VATICANO II
No encerramento deste breve trabalho, seria imprescindível fazer algumas considerações críticas acerca desse tema que resolvemos abordar, principalmente porque a temática da pesquisa era essencialmente Antropológica e Missionária. Cremos que estes dois elementos estão intimamente relacionados na Declaração Nostra Aetate. Ou seja, dependendo dos pressupostos filosóficos que se tenham, inevitavelmente você desenvolverá um tipo específico de missão. Com isso queremos dizer que, se a sua visão acerca do homem for eminentemente negativa, seu zelo missionário tenderá a ser maior e mais aguerrido. O mesmo não ocorrerá se, dentro de sua visão de homem, ele for encarado como essencialmente bom e aberto às “revelações” de Deus. A primeira perspectiva se aproxima mais do Calvinismo, ao passo que a segunda se inclina mais para o Tomismo. Três elementos, no entanto, se destacam no pensamento revelado pelas Declarações produzidas por esse importantíssimo Concílio.
1. UMA IGREJA ABERTA PARA A CIÊNCIA
Se pudéssemos reduzir em palavras as características que marcaram a instituição “Igreja Católica Apostólica Romana” nos últimos séculos, nós diríamos que ela foi marcada claramente por uma postura monolítica, intolerante, dogmática e monárquica.
A relação da Igreja para com a ciência, por exemplo, nunca foi muito boa, e isto é assim, em grande medida porque a Igreja se acostumou a ver na Teologia a “rainha das ciências”, a pedra de toque que julga todo e qualquer conhecimento. Com o advento da Modernidade, no entanto, e mais particularmente durante o “esclarecimento”, as demais ciências assumem uma postura de autonomia e se emancipam de sua “tutora”. A Igreja reagirá, como sabemos, com violência. Basta ver como ela tratou o caso envolvendo Copérnico, Galileu, e como ela se relacionou com o advento do pensamento socialista e “modernista” do século XIX.
O clima que caracterizou o Concílio do Vaticano II, no entanto, diferia fortemente da postura até então presente na Igreja. Desta forma, vemos claramente que a Igreja se abriu para um diálogo franco e produtivo com o mundo. Os Padres conciliares incentivaram os cristãos Católicos a se abrirem para as Ciências Humanas (GS nº 54; 57, COMPÊNDIO DO VATICANO II, 1984), para uma real valorização e estudo das culturas autóctones (GS nº 53; 59, COMPÊNDIO DO VATICANO II, 1984) e para uma séria discursão em torno de temas como sincretismo (GS nº 22, COMPÊNDIO DO VATICANO II, 1984) e enriquecimento cultural (GS nº 58, COMPÊNDIO DO VATICANO II, 1984). Percebe-se, no entanto, que não existe uma explicitação clara do que se entende por “cultura” nos documentos conciliares. Muitas vezes o termo é utilizado com referência à ciência, ao conhecimento e ao conjunto de características de um povo, mas sem um aprofundamento sobre a distinção de cada um desses termos. Para tanto, veja-se (GS nº 60; 61, COMPÊNDIO DO VATICANO II, 1984).
2. UM OTIMISMO SALVÍFICO
Conforme já observamos anteriormente, o otimismo salvífico já esteve presente na vida da Igreja desde o período Patrístico. No entanto, vai ser exatamente no Vaticano II que esta postura se tornará majoritária, clara e irreversível. Este foi, na verdade, o primeiro Concílio da Igreja a tratar das outras religiões de uma forma positiva e aberta. Este, certamente, é um dado novo e relevante. Desta forma, “Esta mudança de perspectiva no confronto com as religiões pode ser verificada sobretudo nos seguintes documentos do Concilio: na Constituição Dogmática sobre a Igreja (LG 16-17); na Constituição Pastoral sobre a Igreja no mundo (GS 22); no Decreto sobre a Atividade Missionária da Igreja (AG 3, 7, 9 e 11) e na Declaração sobre as relações da Igreja com as Religiões Não-Cristãs (NA 1 e 2)” (TEIXEIRA, 1995, p. 118).
Uma visão mais detalhada dos textos conciliares, demonstrará muito claramente, como este conclave valoriza o que existe de “verdade e graça” (Ad Gentis nº 9), não somente entre os fiéis destas religiões, mas inclusive nos elementos objetivos das tradições religiosas que, com toda certeza, guardam “preciosos elementos religiosos e humanos” (Gaudium et Spes, nº 92). Verificamos também que, os documentos conciliares afirmam que “nos próprios ritos e culturas dos povos” (Lumen Gentium, nº 17 e Ad Gentis nº 9), nas “sementes de contemplação” (Ad Gentis nº 18), nas “iniciativas religiosas” que manifesta quão variada é a procura de Deus (Ad Gentis nº 3), é possível encontrar uma sensibilidade religiosa ímpar. Todas estas referências apontam, inquestionavelmente, para uma visão bem mais otimista – em relação às demais religiões e sua condição soteriológica -, do que as posturas anteriores.
3. A INFLUÊNCIA DO PAPEL DO ESPÍRITO E DA CENTRALIDADE DE CRISTO
É possível encontrar também, dentro dos documentos conciliares, uma elevação do papel universal do Espirito, que se revelaria presente para além dos limites da religião cristã. O texto da Gaudium et Spes, nº 11, nos diz que o Espírito do Senhor “enche a orbe da terra”, e também que “não há dúvida de que o Espírito Santo já operava no mundo antes da glorificação de Cristo” (Ad Gentis nº 4, COMPÊNDIO DO VATICANO II, 1984). Hoje, o Espírito se faz presente onde os “valores da dignidade humana sejam afirmados (Gaudium et Spes, nº 39,2 e 26,4, COMPÊNDIO DO VATICANO II, 1984) e “nas aspirações generosas com as quais a família humana se esforça por tornar mais humana a sua própria existência” (Gaudium et Spes, nº 38, COMPÊNDIO DO VATICANO II, 1984).
Segundo a interpretação feita pelo Concílio, é por meio desse mesmo Espírito que se oferece a todos a “possibilidade de serem associados ao mistério pascal”. E isto não apenas se aplica aos que creem em Cristo, mas para “todos os homens de boa vontade, no coração dos quais , invisivelmente opera a graça” (Gaudium et Spes, nº 22, COMPÊNDIO DO VATICANO II, 1984).
Ressalte-se, no entanto, que o Concílio não afirma de que forma o mistério da salvação em Cristo seria aplicado aos membros das diversas tradições religiosas, por intermédio do Espírito Santo. A visão límpida do Concílio é claramente cristocêntrica, portanto, para os Padres conciliares, estas tradições religiosas “não podem ser consideradas canais de salvação para seus membros fora de uma referência ao mistério de Jesus Cristo, sem o qual não há salvação” (DUPUIS, In TEIXEIRA, 1995, p. 122).
Na verdade, o texto que vai responder de forma definitiva se existe ou não salvação fora da Igreja, é o que se pode ler no documento Lumen Gentium, nº 16,1. Segundo a leitura feita por Roukanen, “This long passage give a clear definition of the possibility of bbeing saved extra Ecclesiam and the explicit gospel of Christ, offered in the Church, first, these candidates of extra-ecclesiastical salvation have not yet heard about the reveled christological way of salvatin, and therefore they are personally innocent for not knowing Christ. Second, they sincerely seek the truth, the still unknown God. Third, they practise the moral good that they recognize on the basis of their conscience” (RUOKANEN, s/l, 1990, p. 60).
Encerro registrando que sigo o pensamento de Roukanen, para quem, muito embora exista hodiernamente uma imensa legião de autores Romanos que reconhecem serem as religiões não-cristãs, instrumentos da divina revelação que expressam positivamente a salvação com base na graça salvadora de Jesus, me parece que, por mais otimistas e abertos que tenham se manifestado muitos dos Padres conciliares, as declarações oficiais e finais do Concílio Vaticano II não nos parece tão explícitas quanto desejam estes teólogos. Muito provavelmente, a mudança de liderança durante a vigência do Concílio, com a morte de João XXIII e a eleição de Paulo VI, tenha inclinado a Igreja para uma postura mais aberta do que o passado, mas não tão aberta quanto se desejava.
Desta forma, faço os seguintes apontamentos para que, oportunamente, venhamos a refletir mais detidamente. Em 1º lugar, reconhecemos que a postura exclusivista é essencialmente um discurso eclesiológico, ao passo que a visão inclusivista possua um discurso cristocêntrico e o pluralismo possua um discurso essencialmente teocêntrico. Em 2º lugar, lembramos que a Igreja pretende ser uma Igreja “Católica”, no entanto, sempre que fala em defender “valores” tais como, a “justiça”, estes valores sempre são vistos a partir de uma leitura Ocidental, portanto etnocêntrica. Reconhecer aspectos salvíficos em outras culturas. Este conflito é, particularmente, verificado no diálogo entre a Igreja e as religiões africanas. Em 3º lugar, entendo que no Vaticano II existe uma decisão de evangelizar o “mundo” não-cristão, partindo da tese do cristão-anônimo. Assim, evangelizar deixaria de ser “cristianizar”, como no passado, mas dialogar para promover valores como a “justiça”, a “paz” e um estilo de vida “cristã”. Em 4º lugar, parece-me claro que os Padres conciliares utilizam como critério para julgar as religiões do mundo, sua aproximação ou não, frente aos padrões ético-morais do Ocidente. Por fim, em 5º lugar, parece-me que o Concílio claramente se compromete com o aggiornamento da Igreja e com sua adequação ao mundo contemporâneo. No entanto, mantém pré-conceitos teológicos com os quais julga/intermedia relacionamentos com a cultura.
Referências bibliográficas:
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LATOURELLE, R. e O’COLLINS, G. (Org.). Problemas e perspectivas de teologia fundamental. São Paulo: Loyola, 1993
MONDIN, B. As novas eclesiologias. São Paulo: Paulinas, 1984
MONDIN, B. Os grandes teólogos do século XX. Vol 1, São Paulo: Paulinas, 1987
RAHNER, Karl. Curso fundamental da fé. São Paulo: Paulinas, 1989
RUOKANEN, Miikka. Chatolic teaching on non-christian religions at the second vatican council. In international Bulletin of Missionary Research, Vol 14, Issue 2, April, 1990. Disponível em <https://journals.sagepub.com/toc/ibm/14/2> acessado em dezembro de 1997.
TEIXEIRA, F. Teologia das religiões: uma visão panorâmica. São Paulo: Paulinas, 1995
VÁRIOS. Ecumenismo das religiões. Petrópolis-RJ: Vozes, 1971
VÁRIOS. Las relaciones de la iglesia com las religiones no cristianas. Madri: Taurus, 1968
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