A LITURGIA CELTA
- Reverendo Padre Jorge Aquino ✝
- 13 de out. de 2018
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Reverendo padre Jorge Aquino.
Antes de começarmos a falar sobre a liturgia celta, creio ser importante trazer algumas informações acerca desse grupo étnico tão distinto, amplo e, ao mesmo tempo, tão significativo para a história do Anglicanismo. Muito provavelmente a origem dos celtas está associado à Ásia Menor. De lá, eles passaram pela Europa deixando marcas duradouras e chegaram até à Inglaterra e Escócia. Sua cultura desenvolvida se notabilizou pela forma como eles dominaram a metalurgia e manipularam o ferro. Sua extensão foi tão grande que mesmo hoje, não devemos estranhar que Paulo tenha escrito uma carta aos habitantes da “Galácia”, que exista na Espanha uma região chamada “Galícia”, que a França tenha sido chamada de “Gália” pelos romanos, nem que uma parte significativa da “Grande Ilha” se chame País de Gales. O gaélico era a língua comum entre eles.
Em razão das informações que dispomos, podemos afirmar que os celtas passaram a ocupar a região da Inglaterra, Escócia, Gales e Irlanda entre os séculos VI e IV aC. Este povo guardava um viés pastoril, guerreiro e tribal, que se organizavam em clãs. Uma marca de sua cultura pode ser vista nos inúmeros ornamentos, adornos, utensílios domésticos e instrumentos de guerra que foram sendo descobertos nos últimos séculos. Outro detalhe importante é que eram um povo que valorizava bastante a arte e sua produção era bastante significativa e arrojada. No que diz respeito à religiosidade, eles viviam uma vida mística fervorosa. Sua religião estava fortemente ligada à natureza – e incluía até sacrifícios humanos – e eles eram guiados por sacerdotes chamados de druidas – a casta de maior prestígio social. Esse grupo era responsável não apenas pelo aspecto religioso, mas também por elementos filosóficos e jurídicos dentro da cultura celta. O druidismo é uma espécie de paganismo bastante peculiar. Assim, quando nos voltamos para o nome “druida” – que segundo estudiosos significa “aquele que tem o conhecimento do carvalho” – já verificamos que essa religião aponta para uma relação com a ancestralidade da floresta. Sendo essa uma religião fortemente animista, o druida estaria mais associado a um dirigente ritual do que a um sacerdote no aspecto moderno. Um erro que precisa ser evitado é associar o druidismo ao movimento Wicca, que é um neo-paganismo ocidental que celebram os ciclos da vida e a espiritualidade do masculino e do feminino. É verdade que ambas as religiões receberam elementos celtas e valorizam a nossa relação com a natureza e com a mãe-terra, mas existem diferenças bem marcantes entre elas. A principal é que, enquanto o druidismo utiliza seu próprio panteão, a Wicca se serve de vários panteões para desenvolver sua religião.
Com a chegada do cristianismo à Inglaterra – em torno do segundo século -, houve uma forte tendência de conversão dessa etnia à nova religião. Muitos ícones do cristianismo acabaram surgindo dentre os celtas, e dentre eles destacamos as figuras de São Patrício (389-461), que criou inúmeros mosteiros e foi sagrado bispo em 432, e São Columba (521-597), que atuou particularmente na Irlanda, Escócia e País de Gales. Esse novo cristianismo era centrado em mosteiros, muito embora a vida religiosa existisse e se desenvolvesse em torno do clã, de onde sairiam os seus bispos. Dessa forma, as dioceses eram tribais e não territoriais. No entanto, em torno do século V, com as invasões dos jutas, anglos e saxões, os celtas cristianizados, bem assim suas igrejas e mosteiros, foram sendo destruídas. O que ocorre é que os cristãos celtas fogem para as regiões norte da Escócia, para fugirem da perseguição e lá permanecem protegidos por séculos, com sua forma peculiar de viver o cristianismo, até a chegada do cristianismo romanizado. Esse novo cristianismo, vindo de Roma, acabaria por, em torno do século VII, dominando o cristianismo celta em todos os aspectos, inclusive o litúrgico.
Com a evangelização da Inglaterra, acaba surgindo um Rito Celta, que é o nome que damos às celebrações litúrgicas realizadas nas igrejas e mosteiros da Irlanda e regiões de Gales, Escócia e Inglaterra até o período Carolíngio. Eles existiam de forma bem difundida até que foram parcialmente destruídos pelos conquistadores Anglo-Saxões em torno do ano 600 dC. Esta forma celta de devoção cristã passou a existir na clandestinidade na Inglaterra, Escócia, Irlanda e Gales. Depois disso, e antes da conquista Normanda, a liturgia celta foi gradualmente restaurada em muitas partes da Inglaterra, mas a introdução do Rito Romano também serviu como freio para que a liturgia celta se espalhasse com mais vigor.
De acordo com Aquino, essa liturgia assumiu contornos de um Rito e ele passou a ser chamado de “Rito de Sarum”. Para esse autor, este era o nome dado ao “Rito Romano modificado de acordo com o uso da Catedral de Salisbury. Ele foi designado como sendo o Rito Inglês utilizado antes da Reforma e que se tornaria a base sobre a qual se construiria o Rito presente no primeiro LOC (1549). Essa liturgia era composta de (1) um Breviário – contendo os Ofícios diários; (2) um Missal – contendo a Santa Eucaristia, com as coletas, Epístolas e Evangelhos; (3) um manual – contendo o rito batismal e outros ritos ocasionais, e um (4) Pontifical – com ritos de competência episcopal, tais como ordenações e confirmações” (AQUINO, Pequeno Vocabulário Anglicano). Este Rito teria surgido graças ao trabalho árduo do bispo Osmundo e é importante ressaltar que essa liturgia inglesa assumiu caráter próprio em torno do ano 1085, quando passou a ser chamada de “The Missal according to the use of Sarum”. Claro que ocorreram algumas variações em diferentes dioceses como York, Bangor ou Hereford. Mas os elementos centrais permaneceriam. Alguns elementos da cultura medieval são bem representados ali. Quando, por exemplo, uma mulher iria apresentar uma criança recém-nascida à Igreja, o Rito de Sarum dizia que ela deveria permanecer diante da porta da Igreja. Hoje, toda a família fica diante do altar.
Os documentos que dispomos para apresentar ou expor esse Rito são, lamentavelmente, insuficientes e sem coesão, contudo, por motivos históricos, é importante ver quais as características que marcaram o culto Celta. Um elemento fundamental no Rito de Sarum é que o Glória in exelcis ocorria no início da celebração. Este Rito era também marcado pela simplicidade, o que o aproximaria do Rito Galicano e com elementos oriundos do Rito romano e Oriental. Uma vez que o ambiente que gestou esse Rito foi o mosteiro, ele deixa transparecer, além de uma certa tranquilidade, uma linguagem simples e um elemento poético e místico marcante. Diga-se de passagem, este Rito era escrito tanto em latim quanto em inglês e chegou a influenciar bastante a criação do primeiro Livro de Oração Comum feito por Cranmer.
No que diz respeito à celebração eucarística, temos o testemunho do missal de Stowe (VIII) e o do palimpsesto de Mônaco da Bauiera (VII). Este era uma cópia irlandesa de um sacramentário Galicano, e aquele, uma liturgia pré-Gregoriana com três missas (no final) que seguem o estilo Galicano e Hispânico.
O que percebemos claramente, é “que seus autores (os compositores irlandeses) iam buscar inspiração em textos Romanos e Galicanos, mas sobretudo Ambrosianos e Hispânicos. Demonstra-se com isso que os Eclesiásticos Irlandeses, ao organizarem sua liturgia local, estavam informados, parcialmente talvez, mas com bastante amplidão sobre o uso litúrgico de todo o Ocidente” (MARSILI, 1987, Vol 2, p. 72).
Um outro fato importante de se notar é que, um grande número de textos da liturgia Celta revela um tom muito intimista, quase devoto. Essa característica pode ser explicada, talvez, porque o monasticismo irlandês tivesse uma espiritualidade muito mais individualista e menos eclesial. Seja como for, “O legado da espiritualidade Celta pode ter sobrevivido mais claramente entre as comunidades católicas de fala gaélica nas remotas Hébridas exteriores” (BRADLEY, 1998, p. 104).
Muito recentemente tem surgido um grande interesse pela cultura celta. Se você deseja estudar com mais cuidado o cristianismo celta, existe um vasto material a seu dispor. Como você pode notar, estou citando um texto de Ian Bradley chamado The Celtic Way, no qual ele pretende exatamente “contar a história do cristianismo celta e examinar seus temas principais” (BRADLEY, 1998, p. viii). No entanto, em um outro texto de extrema importância, Bradley faz referências a uma nova onda de busca pela ancestralidade celta e diz que “no contexto do atual renascimento, é tentador sugerir que o cristianismo celta é menos um fenômeno real definido em termos históricos e geográficos do que um construto artificial criado do pensamento positivo, da nostalgia romântica e da projeção de todo tipo de sonhos sobre o que deveria e poderia estar” (BRADLEY, 1999, p. vii). Para ele, muitas pessoas procuram encontrar na cultura celta o que não existe. E acabam pro projetar a existência de um tipo de religiosidade no qual existe uma enorme ligação entre a humanidade e a totalidade da criação, além de um enorme amor a Deus revelado pelo amor à criação e uma forma trinitariana baseada em espíritos livres.
Como celebrante de casamentos, percebo que recentemente – em razão da crise dos paradigmas modernos -, muitos estão as buscando celebrações mais exóticas e associadas a aspectos ancestrais na busca de um significado para suas vidas. Não posso me envolver nessa seara. Vivemos em um país laico e, se alguém quer uma “celebração celta” (muito embora esteja mais associado com as práticas da Wicca), não posso nem devo impedir. Sou um cristão Anglicano e a espiritualidade celta já tem influenciado a tradição Anglicana desde a origem do cristianismo inglês. Ainda podemos aprender muito com a tradição celta, afirma Bradley, mas nosso interesse se atém ao cristianismo celta, que por si só, já é bastante rico.
Referências Bibliográficas:
AQUINO, Jorge. Pequeno Vocabulário Anglicano. Natal: s/e, s/d.
BRADLEY, Ian. The celtic way. London: Darton, Longman and Todd, 1998
BRADLEY, Ian. Celtic Christianity: making myths and chasing dreams. Edinburgh: Edinburgu University Press, 1999
MARSILI, S. (et al.). Anamnesis. Vol 3. A eucaristia: teologia e história da celebração. São Paulo: Paulinas, 1987.
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