A FREQUÊNCIA DA COMUNHÃO NO ANGLICANISMO
- Reverendo Padre Jorge Aquino ✝
- 22 de jan. de 2020
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Reverendo Padre Jorge Aquino.
Este pode até parecer um tema insignificante ou óbvio para quem é Anglicano, mas não é. Existem Anglicanos ao redor do mundo que não responderiam da mesma forma à pergunta sobre qual a frequência mais adequada para a celebração da Santa Comunhão. Essa é uma questão que exige de nós toda a atenção para os aspectos que podem ser encontrados nas Escrituras, na história da Igreja e na teologia do culto cristão. E, pensando nisso, creio que esses três caminhos parecem adequados para que cheguemos a uma conclusão razoavelmente fundamentada.
Assim, em primeiro lugar, verifiquemos o que nos diz as Escrituras Sagradas sobre o culto existente na Igreja primitiva. Um texto extremamente revelador sobre como era a reunião dos cristãos nos diz que: “no primeiro dia da semana, estando nós reunidos com o fim de partir o pão, Paulo… exortava-os e prolongou o discurso até a meia noite” (Atos 20:7). Creio que é desnecessário tecer muitos comentários aqui sobre as expressões “primeiro dia da semana” e “partir o pão”, que aqui aparecem juntas. Buscando estes relatos bíblicos da experiência cristã primitiva, eis que encontramos os seguintes textos: “Eles perseveravam no ensino dos apóstolos e na comunhão, no partir do pão e nas orações” (Atos 2: 42); “Todos os dias, continuavam a reunir-se no pátio do templo. Partiram o pão em suas casas, e juntos participavam das refeições, com alegria e sinceridade de coração” (ver Atos 2: 46); e “Quando vocês se reúnem, não é para comer a ceia do Senhor” (I Coríntios 11: 20).
Indubitavelmente, no primeiro dia da semana, a comunidade Cristã se reunia para compartilhar o pão (uma clara referência ao que ocorrera na páscoa em que Cristo repartiu o pão e o vinho com seus discípulos), orar, ler e refletir sobre as Escrituras. Por isso Paulo diz à Timóteo: “Aplica-te à leitura (pública), à exortação e ao ensino” (I Timóteo 4: 13). No texto de Colossenses 4: 16, Paulo diz: “E, uma vez lida esta epístola perante vós, providenciais para que seja também lida na igreja dos laodicenses”, revelando que, além dos textos das Escrituras, as cartas de Paulo também eram lidas. De fato, Pedro as compara com “as demais Escrituras” (II Pedro 3: 15,16), colocando-as em pé de igualdade com o Antigo Testamento. Assim, além da leitura e exposição da Bíblia, a Igreja primitiva se reunia para “partir o pão” (I Coríntios 10: 16; 11: 23; 14: 16), para cantar (Efésios 5:19; Colossenses 3:16b) e para orar (Atos 2:42; I Coríntios 14: 15, 16).
A referência à eucaristia era clara. Era provável que a essa altura da celebração houvesse a presença de cânticos e o ósculo santo. Nichols, falando acerca da relação existente entre a eucaristia e a festa do amor diz: “A outra (reunião) era conhecida como a festa do amor ou fraternidade. Era uma refeição comum, muito alegre e sagrada, símbolo do amor fraternal cristão. Cada um trazia a sua parte da refeição e estes elementos eram repartidos entre todos igualmente… Ao fim de tudo celebrava-se a ceia do Senhor em que se usava uma parte do pão que tinha sido servido na festa. Esta reunião era no dia do Senhor… É provável que a princípio… Fosse realizada à noite. Já no fim do Primeiro Século, a ceia do Senhor foi separada da festa do amor e celebrada numa reunião matinal” (NICHOLS, 1985, p. 23).
Em segundo lugar, quando verificamos a prática histórica da Igreja Cristã, inevitavelmente perceberemos que a Igreja se reunia aos domingos para celebrar a Santa Eucaristia. Segundo registra Massey H. Shepherd Jr, “Desde tempos primitivos, a Santa Comunhão tem sido sempre celebrada aos domingos e em outros dias santos. Tem sido celebrada também em ocasiões especiais, em cada contexto imaginável da vida e testemunho cristãos. (…) A Igreja Ocidental, na Idade Média, celebrava a Eucaristia todos os dias, onde quer que houvesse um sacerdote para servir ao altar, sendo que em alguns lugares era celebrada várias vezes ao dia” (SHEPHERD JR., 1957, p. 169, 170). Esta afirmação possui uma sólida fundamentação histórica.
Em um documento fundamental, contemporâneo do Novo Testamento e escrito antes mesmo do livro do Apocalipse, chamado “Didaquê” ou “O ensino dos Apóstolos”, encontramos o seguinte ensinamento no Capítulo XIV.1: “Reúna-se no dia do Senhor para partir o pão e agradecer após ter confessado seus pecados, para que o sacrifício seja puro”. Com base neste texto, não resta dúvida de que a Santa Eucaristia era celebrada semanalmente.
Quando verificamos, por exemplo, a Carta de Inácio de Antioquia aos Magnésios, 9.1, escrita entre os anos 107 e 110 depois de Cristo, lemos que para ele, “Aqueles que viviam na antiga ordem de coisas chegaram à nova esperança, e não observam mais o sábado, mas o dia do Senhor, em que a nossa vida se levantou por meio dele e de sua morte” (Padres Apostólicos, 1995, p. 94). E na Carta de Barnabé 15.8, 9 (145 dC) ele diz que Deus fará “o início do oitavo dia, isto é, o começo de outro mundo. Eis por que celebramos como festa alegre o oitavo dia, no qual Jesus ressuscitou dos mortos” (Padres Apostólicos, 1995, p. 310). Em outras palavras, a Igreja Cristã primitiva deliberadamente se desassociou dos judeus, assumindo o domingo (o dia da ressurreição) como o dia em que a comunidade se reuniria para a celebração da Santa Liturgia. Já em outro texto, na sua Carta aos Filadelfiensis, 4, Inácio deseja que a Igreja participe de uma só eucaristia. Assim, diz ele, “De fato, há uma só carne de nosso Senhor Jesus Cristo e um só cálice na unidade de seu sangue, um único altar, assim como um só bispo com o presbitério e os diáconos, meus companheiros de serviço”. Assim, o desejo de Inácio é que a Igreja, em todos os lugares, mantenha a unidade da fé, assegurada pelos bispos que foram instituídos pelos próprios Apóstolos como seus substitutos. Desta forma, em Inácio de Antioquia – ou seja, no início do segundo século da Igreja Cristã -, já verificamos qual o dia em que os cristãos se reuniam e qual a celebração que realizavam. Esta foi a prática de toda a Igreja Cristã por toda a Idade Média.
Há muitos escritores que divulgaram a ideia de que os reformadores do século XVI tinham uma postura claramente oposta à celebração frequente da Santa Eucaristia. No entanto, um estumo mais aprofundado do tema nos faz ver outra realidade. O Dr. Shepherd Jr, por exemplo, nos diz que “Eles se opuseram, isto sim, às celebrações mais numerosas, sem comunhão por parte do povo. Todos os reformadores, com exceção de Zwinglio, insistiram no sentido de que a Santa Comunhão devia ser o ofício principal nos domingos e dias santos” (SHEPHERD JR., 1957, p. 170). É amplamente divulgado o fato de que Calvino teve um forte confronto com o Consistório de Genebra porque desejava celebrar dominicalmente a Ceia do Senhor, algo que eles discordavam.
Entre os Anglicanos parece que ocorreu uma certa variação neste tema, em relação ao período histórico que se está sendo vislumbrando. Assim, afirma Shepherd (1957, p. 171), com exceção de poucas catedrais e algumas grandes igrejas, “o ofício dominical regular no Anglicanismo, depois da Reforma, passou a ser a Oração Matutina, Litania, Ante-Comunhão e sermão. A celebração completa da Santa Comunhão era observada apenas quatro vezes por ano, embora em alguns lugares fosse administrada pelo menos uma vez por mês”. O que precisa ser discutido aqui é se essa “variação” era ou não o reflexo da influência de uma teologia zwingliana dentro de setores da Igreja Anglicana. Digo isso porque, inquestionavelmente, desde os registros feitos por Justino o Mártir (150 dC), em sua Primeira apologia, 65-67, a ordem litúrgica que existia na Igreja primitiva era basicamente fundamentada em dois momentos: “o serviço da palavra, consistindo da leitura da Escritura e de um sermão, e o serviço da eucaristia, com as orações intercessórias formando uma ponte entre as duas partes. (…) até onde sabemos, o serviço principal do domingo da Igreja cristã, em todos os tempos e lugares (exceto para algumas seitas), incluiu invariavelmente esses dois componentes até a Semana Santa de 1525, quando Zuínglio, em sua igreja em Zurique, os separou e, no lugar de um serviço com essas duas partes mais importantes, instituiu dois serviços distintos, um serviço da Escritura-sermão e um serviço da Ceia do Senhor, sendo que o ultimo acontecia somente quatro vezes durante o ano” (WOLTERSTORFF In MCKIM, Donald K., 1998, p. 238, 239). Nunca devemos esquecer que essas observações foram feitas por um legítimo representante da tradição reformada.
Como podemos perceber muito claramente, a tendência de algumas paróquias Anglicanas em realizar a Santa Comunhão quatro vezes ao ano, ou mesmo uma vez por mês, não tem origem nem na prática primitiva da Igreja Cristã, nem na teologia litúrgica do Livro de Oração Comum.
Somente com o desenvolvimento do chamado Movimento de Oxford e sua ênfase em resgatar as práticas da Igreja primitiva, percebemos que a celebração da Santa Eucaristia se tornou algo mais frequente e a preparação para a comunhão se tornou algo mais adequado. Assim, ao final do século XIX “a maioria das paróquias tinha celebração da Santa Comunhão em cada domingo e dia santo, como provido no Livro de Oração” (SHEPHERD JR., 1957, p. 171).
Em que pese as diversas formas de manifestação da frequência da Comunhão dentro do Anglicanismo, Shepherd é muito claro ao afirmar que o programa ideal de culto revelado e claramente traçado pelo Livro de Oração Comum implica na realização “das Orações Matutinas e Vespertinas diárias, incluindo os domingos, frequente uso da Litania, e celebração da Santa Comunhão, com preparo próprio, pelo menos nos domingos e dias santos” (SHEPHERD JR., 1957, p. 172). Assim, a Santa Eucaristia não seria algo “extra” que somente ocorreria eventualmente, mas faria parte da vida cúltica regular de todas as paróquias Anglicanas.
Por fim, em terceiro lugar, de uma perspectiva teológica, a Santa Comunhão deveria ser uma celebração – no mínimo – semanal. Estamos falando da Igreja, cujas marcas – segundo os reformadores -, consistia na pregação da Palavra de Deus e na correta administração dos Sacramentos. Ora, se esses Sacramentos eram vistos como meios de graça, em outras palavras, como instrumentos dados por Deus para o fortalecimento da sua Igreja contra o pecado e contra as diversas heresias que surgiriam com o tempo, porque reduzir esse santo remédio a apenas quatro vezes ao ano? Porque impedir os Cristãos de se servirem do Corpo e do Sangue de Cristo, que os alimenta e fortalece? Isso nos parece algo extremamente contraditório e incongruente com o que se observa na teologia Anglicana.
De acordo com Brian A. Gerrich, comentando uma confissão de fé escrita por Calvino em seus últimos anos de vida (1562) para os cristãos reformados da França, existia uma óbvia diferença entre o seu pensamento e o que afirmava Zwinglio acerca da Ceia do Senhor. Para Calvino, na pergunta 353, “a natureza dos sacramentos é causar e comunicar (apporter et communiquer) o que eles significam. (…) na Ceia do Senhor, os benefícios de Cristo não são somente representados, mas dados (no francês: données), de modo que Ele nos faz participar de sua substância” (Gerrich, In MCKIM, Donald K., 1998, p. 209). Desta forma, considerando que para Calvino os Sacramentos não podem ser tanto sinais quanto a coisa significada, eles podem, no entanto, conferir aquilo que significam. Dizer isso é romper com Zwínglio e afirmar que o ponto gravitacional de sua teologia sacramental está situado na noção dos meios de graça, instrumento fundamental para o fortalecimento da Igreja.
Conforme assevera Gerrich, quer os 39 Artigos de Religião (1563-1571) sejam ou não considerados como uma Confissão reformada, seu ensinamento acerca da Ceia do Senhor é “cautelosamente calvinista”. E ele assim se manifesta porque para ele, o Artigo 28 rejeita totalmente o zwinglianismo ao afirmar que o corpo de Cristo é “dado, tomado e comido na Ceia, somente segundo um modo celestial e espiritual”. Por outro lado, quando ele se refere ao Catecismo Anglicano (1549-1662) ele diz que “a definição de sacramento no Catecismo Anglicano (1662) expressa exatamente a intenção de Calvino: o sacramento é um sinal externo e visível de uma graça interna e espiritual dada a nós, ordenada por Cristo mesmo, como um meio pelo qual recebemos a referida graça e como um penhor para nos assegurar a respeito dela”. Associada a essa definição de sacramento, a afirmação a respeito da Ceia do Senhor também deve ser considerada fielmente calvinista” (Gerrich, In MCKIM, Donald K., 1998, p. 213). Estranhamente, encerra Gerrich, a postura do Catecismo Anglicano é mais calvinista do que o texto da Confissão de fé de Westminster.
Assim, não existe dúvida de que, para que cresçamos na graça e tenhamos nossa fé fortalecida em Cristo, o Cristão não deve negligenciar os meios de graça, quais sejam, ouvir atentamente a Palavra de Deus sendo exposta, orar e participar adequadamente dos Sacramentos, ou seja, receber o Corpo e o Sangue de Cristo na Santa Comunhão, com a maior frequência.
A relação entre a Santa Comunhão e o domingo está presente de forma muito clara nos vários Livros de Oração Comum (LOC) espalhados pelo mundo. Na introdução à Santa Eucaristia do LOC da Anglican Church in North America nós lemos que a “Santa Comunhão é normalmente o principal culto de adoração Cristã no Dia do Senhor, e em outras Festas designadas e Dias Santos”. Nas explicações sobre o uso dos Salmos no LOC da Reformed Episcopal Church in North America, lemos: “Os textos fornecidos para os Domingos são particularmente apropriados para serem usados quando os textos da Oração Matutina precederem a Santa Comunhão”. Na língua portuguesa encontramos um LOC em português, cujo texto se baseia no LOC de 1662, e que contém a seguinte rubrica durante a Celebração Eucarística: “Quando o Ministro dará aviso para celebração da Santa Communhão, (o que ha de fazer quantas vezes no Domingo ou qualquer Dia-Santo imediatamente precedente,) depois de acabar-se o Sermão ou Homilia, lera elle esta seguinte”. Muito embora a introdução da Santa Comunhão não diga que ela deve ocorrer aos domingos, essa rubrica deixa claro que este é o dia em que os Anglicanos celebravam a Santa Eucaristia.
Não existe, portanto, nenhuma dúvida quer seja ela escriturística, histórica ou teológica, que a prática comum entre os Anglicanos é a de celebrar semanalmente a Santa Comunhão, desde sempre. Houve um momento em que essa prática parece ter se perdido em razão da influência de teologias estranhas ao Anglicanismo, mas a prática primitiva e histórica da Igreja indivisa, está claramente refeita. Assim, todos os que se levantam contra essa prática, estão cientes que se levantam contra o claro ensino das Escrituras, da Tradição dos pais apostólicos e da teologia litúrgica desenvolvida no Anglicanismo.
Referências bibliográficas:
MCKIM, Donald K. (Edit). Grandes temas da tradição reformada. São Paulo: Pendão Real, 1998
NICHOLS, Robert H. História da igreja cristã. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1985
Padres Apostólicos, Vol 1. São Paulo: Paulus, 1995
SHEPHERD JR., Massey H. Adoração e vida. Porto Alegre: Metrópole, 1957
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