Padre Jorge Aquino.

Em um de seus livros mais significativos, o ilustre teólogo católico belga Edward Schillebeeckx (1914-2009), que já havia exposto de forma clara seu pensamento em seu texto O Ministério da Igreja – o que fez com que recebesse uma dura crítica por parte dos órgãos oficiais da Igreja romana -, se volta, neste texto, quase que a pedir para que haja mais humanidade dentro da igreja, ou seja, para que ela tenha a possibilidade de recuperar o ethos messiânico presente nas primeiras comunidades cristãs.
Assim, a certa altura de seu texto, ele procura apresentar a concentração específica do carisma do Espírito – que foi concedida a todos – no carisma ministerial tanto dos diáconos, quanto dos presbíteros e bispos, com ênfase em seu caráter diaconal.
Para realizar seu programa, ele resolveu apresentar a situação do ministério no século II nas regiões da Ásia Menor, da Grécia, da Síria, de Roma, de Alexandria e no procunsulado romano da África.
Principiando pela realidade da Ásia Menor, Schillebeeckx nos lembra que, por muito tempo esse foi o centro da jovem Igreja. É dessa região que surgem muitos textos cristãos que revelam a realidade eclesial nesta área. Assim, a primeira carta que deve ser citada é a Carta de Clemente aos Coríntios. Muito embora ela tenha sido escrita em Roma, ela revela um claro conhecimento da situação dos destinatários. Ao que parece, o que ocasionou a escritura dessa carta foi o confronto existente entre um partidos dos “anciãos” – ou seja, dos presbíteros -, que era contraposto ao dos “mais jovens”. A resposta de Clemente, é que “os presbíteros são de fato responsáveis pela direção e por isso tem a última palavra” (SCHILLEBEECKX, 1989, p. 166). Neste texto entendemos que os presbíteros eram chamados de guias (hegoumenoi) da comunidade. A Carta de Clemente, na verdade, afirma que a direção presbiteral da Igreja deve ser respeitada “porque os presbíteros tem a episkope, a supervisão, a responsabilidade de ver que tudo corra bem na comunidade” (SCHILLEBEECKX, 1989, p. 167). Conforme assevera Clemente, é preciso que a comunidade de Corinto busque a paz e que compreenda ser o dever do colégio presbiteral prover a igreja tanto da supervisão (episkope), quando da direção ou serviço (leitourgia). Fica claro que, na visão que Schillebeeckx nos mostra, Clemente ensina que os presbíteros são justamente nomeados na comunidade de fé como episkopoi e diáconos. Schillebeeckx ressalta que “episkopoi é usado no plural, e, assim, não corresponde à figura do bispo que virá depois; como presbíteros, eles são os guias (hegoumenoi). Convém notar que esses presbíteros parecem ter uma dupla função, ‘episcopal’ e ‘diaconal’” (SCHILLEBEECKX, 1989, p. 168). Assim, quando Clemente nos diz que os presbíteros “praticam a retidão”, isso aponta para o fato de que eles “governam bem”, ou seja, que eles têm a função episcopal de dirigir com zelo e supervisionar os que “praticam a fé”, ao mesmo tempo em que desempenham o papel de servos (diakoneo). A ideia proposta por Clemente e destacada por Schillebeeckx é apresentar uma realidade eclesial que se aproxima, não de uma relação senhor-servo, mas a de uma autoridade que está à serviço.
Na região da Grécia, Schillebeeckx destaca a Carta de Policarpo aos Filipenses. Na verdade, existem dúvidas acerca do autor e da data precisa em que esse texto foi escrito (provavelmente em torno de 135). Ocorre que, lendo esta carta, verificamos um ambiente muito similar àquele que nos é apresentado pela Carta de Clemente. Isto fica claro desde seu início, quando a carta é endereçada não a um bispo monocrático, mas “aos presbíteros e diáconos”, guias da igreja de Filipos. Quando se usa o termo episkope o que verificamos é que ela é uma “indicação do que de fato os presbíteros fazem: supervisão, cuidado e direção” (SCHILLEBEECKX, 1989, p. 169).
O texto conhecido como Didaquê, que provavelmente é oriundo da região da Síria-Palestina, nos apresenta um quadro similar. Falando sobre esse texto Schillebeeckx nos diz que nele “jamais encontramos episkopos no singular; episkope é função dos presbíteros” (SCHILLEBEECKX, 1989, p. 170). Ao lado dos presbíteros, o Didaquê nos mostra aqueles que exercem funções mais carismáticas, como guias, profetas e doutores.
Impressiona o fato que, surpreendentemente, “de repente”, no mesmo espaço territorial, surge uma estrutura de poder absolutamente diferente testemunhada nas Cartas de Inácio, muito embora alguns comentadores leiam esses textos como uma espécie de “preparação histórica” para sua ideia. Nestes textos verificamos um modelo eclesial que geralmente só será perceptível mais tarde, na segunda metade do século. Agora, pontua Schillebeeckx, “existe um colégio de presbíteros, mas eles são dirigidos por um chefe, que é chamado de episkopos” (SCHILLEBEECKX, 1989, p. 170) distinto do presbítero e do diácono.
Schillebeeckx deixa claro o fato de que “Continua obscuro o modo como ocorreu essa evolução de episkopos (presbítero) para bispo. Alguns historiadores consideram o fato de que em Inácio o episkopos tem o peso da oikonomia da comunidade, a tarefa dos diáconos, como argumento para afirmar que episkope sozinha se originou do diaconato. Outros historiadores põem em evidência a constatação de que por muito tempo os bispos continuaram sendo chamados de colegas-presbíteros; acham que esse dado indique que, com o correr do tempo, um membro do colégio presbiteral se tenha tornado a pessoa e que o governo exercido por um só chefe tenha começado por esse caminho” (SCHILLEBEECKX, 1989, p. 170, 171). O fato é que, essa questão não pode ser resolvido por meio das Cartas de Inácio.
É certo que, em certos lugares da Ásia Menor, na segunda parte do século II – e nas cidades mais aquinhoadas -, é possível encontrar um “conselho de anciãos” com dois líderes bem claros, os oikonomos e os episkopos. Em outros casos aparece apenas um, chamado de archon. O detalhe é que, os dois primeiros seriam os superintendentes administrativos das cidades mais ricas, atuando como tesoureiros.
Assim, percebemos que ocorre uma nítida mudança na forma de se governar a comunidade cristã (ekklesia). Assim, “o que antes constituía a unidade da comunidade com o ministério se transformou na unidade da comunidade com o bispo” (SCHILLEBEECKX, 1989, p. 171). Ocorre, assim uma evolução real, embora não necessária, na qual a sua realização histórica se daria na unidade da comunidade com seu bispo. O monoepiscopado é o rebatimento na esfera eclesial da realidade sociocultural da Ásia menor romana. É fato que Inácio vai exprimi o que jerônimo já afirmara: “nenhuma comunidade eclesial pode existir sem padres”, mas Schillebeeckx, em seu texto O ministério na igreja, vai afirmar: “nenhuma comunidade sem ministério, mas também nenhum ministério sem comunidade” (SCHILLEBEECKX, In SCHILLEBEECKX, 1989, p. 172).
Quando observamos o ministério em Roma no século II, verificamos que ele é similar àquele que era encontrado no primeiro período na Ásia Menor e na Síria, ou seja, centrado em um colégio presbiteral que estava à frente da comunidade. O maior testemunho dessa realidade é o texto conhecido como O pastor de Hermas. Nosso ilustre teólogo belga destaca que no texto de Hermas, “também só fala no plural de episkopoi e de presbíteros, que ele chama de guias ou presidentes (prohegoumenoi); (...) Diz-se a respeito destes episkopoi de Roma que eles desempenham ‘serviços diaconais’ e fazem a leitourgia para o Senhor, exatamente do mesmo modo como fala Clemente” (SCHILLEBEECKX, 1989, p. 172). Em resumo, também em Roma do segundo século, presbíteros e episkopoi são as mesmas pessoas, que exercem sua autoridade que é, simultaneamente, uma diakonia.
Quando Schillebeeckx se volta para o Egito, particularmente, para a igreja em Alexandria, ele encontra o mesmo modelo presbiteral de ministério, durante o segundo século. com o passar do tempo, ele reconhece que, “Em Alexandria, uma direção presbiteral foi seguida por um governo estritamente exercido por um só chefe (...). Com efeito, depois que Alexandria teve um bispo, este permaneceu por longo tempo como o único bispo em todo o Egito e era, assim, não só o chefe da grande comunidade cristã e do colégio presbiteral da cidade, mas também o chefe de todas as comunidades cristãs do Egito” (SCHILLEBEECKX, 1989, p. 173, 174). Eis que, no Concílio de Nicéia, o bispo de Alexandria conseguiu que essa situação de facto se tornasse permanente. Esta mudança administrativa da igreja cristã é surpreendente! Ela ocorre em torno do ano 190 e aparece de forma repentina, com a menção de um bispo que se torna o chefe do colégio presbiteral. Assim, Alexandria era – diferentemente de todas as outras cidades -, a única cidade que possuía o monoepiscopado, ao passo que em todas as outras, a igreja era governada por um colégio presbiteral. Somente depois do bispo Demétrio (188-231) – afirma Schillebeeckx -, “foram nomeados bispos em todas as grandes cidades (metropolis) do Egito, por assim dizer, en masse, um processo que se completou no início do século IV” (SCHILLEBEECKX, 1989, p. 174). Desta forma, o colegiado de presbíteros, tão pungente no século II, foi totalmente minado pela emergência de um único bispo em Alexandria e, depois, pela expansão desse sistema em todo o Egito. Desta forma, tudo indica que “Assim que as zonas rurais começaram a depender das grandes cidades, desenvolveu-se uma hierarquia entre os bispos que, no fim, passaram todos a depender do patriarca de Alexandria” (SCHILLEBEECKX, 1989, p. 175.).
Por fim, chegamos ao proculsulado romano da África. Segundo expõe Schillebeeckx, aquilo que se havia desenvolvido de forma inconsciente e praticamente imperceptível em tantos lugares, no caso do procunsulado romano da África as coisas ocorreram com absoluto conhecimento de causa. Desta forma, aqui “o povo preferiu seguir, nas estruturas eclesiásticas, os ofícios civis” (SCHILLEBEECKX, 1989, p. 175). Isso já pode ser testemunhado em torno do ano 180. Neste sentido, um advogado romano chamado Tertuliano produz um farto material para demonstrar ao Imperador que o cristianismo é uma associação juridicamente permitida (collegium licitum) com todos os elementos que são necessários para que Roma possa reconhece-lo como uma ordo. Em seu texto ele apresenta a vida e a fé cristã e até mesmo os juramentos de fidelidade (sacramentum).
Cipriano segue pelo mesmo caminho de Tertuliano e demonstra como no cristianismo a democracia é similar ao modelo romano (senatus populus que romanus). Isto pode ser verificado no processo para a nomeação do bispo, no qual o candidato é apresentado ao povo reunido e este o aprova. Assim o rito da ordinatio afirma que o bispo é eleito pelo “povo”, pelo “povo e o clero”, ou ainda por “toda a fraternidade”. Isto ocorre por meio da imposição das mãos dos bispos limítrofes que confirmam a ordinatio. É somente após esses atos que a nomeação se torna juridicamente perfeita (ordinatio iure perfecta). Assim, arremata Schillebeeckx, “A estrutura da Igreja reflete a ordenação civil da província romana da África. Ai ordinare é o termo técnico para a nomeação estável com o objetivo de exercer o serviço imperial. O povo tem o direito de votar (suffragium), mas somente o imperador pode pronunciar o veredicto final (iudicium)” (SCHILLEBEECKX, 1989, p. 176).
No entanto, se, no passado, a Igreja assumiu o modelo próprio do sistema imperial romano, e acabou agudizando a autoridade episcopal durante a Idade Média, hoje, em um ambiente no qual os ares democráticos são cada vez mais fortes, parece que a estrutura eclesial deveria permitir que novos (?) valores passassem a vigorar na Igreja. Para Schillebeeckx, “o elemento democrático está aparecendo cada vez mais claramente. Encontramos isto antes de tudo na base da estrutura institucional, nas diferentes províncias eclesiásticas e Igrejas locais, nas relações entre os bispos e seus fiéis. Aqui já parece evidente em muitos lugares uma estrutura mais democrática. Isso pressupõe que o próprio bispo já tem uma nova concepção do funcionamento de sua autoridade” (SCHILLEBEECKX, 1970, p. 41). O problema, então, parece que está relacionado muito mais à pessoa que ocupa o lugar de poder do que com a Igreja em si. Em outras palavras, se os bispos serão capazes de compreender essa nova situação e nela exercer, da melhor forma, um papel mais adequado e moderno, caberá a eles. Assim, “o homem revestido de autoridade tem uma função muito ativa a exercer, mas não nos antigos modelos autoritários que só poderiam frustrar a evolução ou prejudica-la seriamente” (SCHILLEBEECKX, 1970, p. 41). Assim, o novo virá! Que venha e que com ele, venha mais diálogo, mais respeito e menos bullying eclesial.
Referência Bibliográfica:
MONDIN, Battista. As novas eclesiologias. São Paulo: Edições Paulinas, 1984
SCHILLEBEECKX et al. Cinco problemas que desafiam a igreja de hoje. São Paulo: Herder, 1970
SCHILLEBEECKX, Edward. Por uma igreja mais humana. São Paulo: Edições Paulinas, 1989
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