
Reverendo Prof. Jorge Aquino
Trabalho apresentado ao Seminário Teológico Batista do Norte do Brasil para cumprir exigência de disciplina necessária para o Mestrado em Teologia.
"Pois bem, se a alma se vale do corpo
como de um instrumento, não está
forçada a receber afeições do corpo,
como tampouco os artesãos as
afeições de seus instrumentos"
Plotino
INTRODUÇÃO
Como frequentemente acontece na história, um momento de crise cética dará margem ao surgimento de um momento especulativo. O plotinismo será, segund Guillermo Fraile, “El último gran esfuerzo de la filosofia griega para constituir um esquema racional de la realidade” (FRAILE. G., 1965, p. 720).
Nascido em Licópolis – no Egito – em 205 d.C., Plotino, com a idade de 28 anos foi apresentado a um filósofo chamado Amônio Sakas, a quem alguns atribuem uma origem indiana.
Depois de onze anos aos pés de Amônio em Alexandria, Plotino decide abrir uma escola em Roma em 244. A escola de Plotino era completamente diferente das anteriores. Sabemos que “Platão havia fundado a Academia para, através da filosofia, poder formar homens que deveriam renovar o Estado; Aristóteles havia fundado o Perípatos para organizar a busca do saber; Pirro, epicuro e Zenão haviam fundado seus movimentos espirituais para dar aos homens a ataraxia, ou seja, a paz e a tranquilidade da alma. Já a escola de Plotino queria ensinar aos homens o modo de libertarem-se da vida daqui de baixo para irem reunirem-se ao divino e poder contemplá-lo, até o ponto culminante de uma transcendente ‘união extática’” (Reale, Vol I, 1990, p. 339).
Plotino sofre uma certa influência do oriente. Ele não só teve um mestre pretensamente oriental, como a oportunidade de, segundo seu discípulo e biógrafo Porfiro, “Tomar um conhecimento direto da filosofia que se pratica entre os Persas e da que é de gosto indiano”. Pierre Aubenque nos afirma que, segundo Bréhier, Plotino ultrapassará o quadro e os limites da filosofia grega. Assim, “Num capítulo intitulado ‘O orientalismo de Plotino’, Bréhier acredita com efeito discernir na filosofia plotiniana um aspecto místico que ‘dissolvia o racionalismo grego’; semelhante intrusão não pode, segundo ele, se explica senão ‘por circunstâncias que resultam de hábitos mentais inteiramente novos, nascidos de crenças religiosas cuja origem estava no oriente, fora do helenismo’” (BRÉHIER, In AUBENQUE, 1981, p.200).
O plotinismo, obviamente, não pode ser reduzido a um orientalismo religioso. Ele será um vasto sistema que saberá fundir elementos advindos de especulações anteriores, especialmente do platonismo, do aristotelismo, do estoicismo e também do orientalismo.
Onde estaria, portanto, a novidade de Plotino? Apesar de toda a influência recebida dos filósofos anteriores, é consensual afirmar que “El platonismo no es um mero sincretismo, sino una síntesis vigorosa, con carácter y espíritu propios, que le dan una nota de originalidad respecto de todos los sistemas anteriores” (FRAILE, 1965, p. 721). A originalidade plotiniana, segundo Pierre Aubenque, estaria em pelo menos quatro teses: a primeira é a transcendência absoluta do primeiro princípio. A segunda seria a da infalibilidade do primeiro princípio. A terceira seria a da “inversão do sentido e do valor da noção de infinito”, pois para os gregos, “o ser se mostrava tanto mais perfeito quanto mais determinado”. Em Plotino será diferente. Finalmente, preocupado como eram os helenistas com a felicidade do indivíduo, Plotino “parece situar essa salvação não mais na tomada de consciência teórica da natureza do homem e de seu lugar no universo, mas ao contrário num extinguir-se da diferença entre o indivíduo e o todo” (AUBENQUE, 1981, p. 200, 201). Resumindo: “El sistema plotiniano es una representación completa de toda la realidad, haciéndola depender del Uno y tender al Uno. Todo procede del Uno, y todo, o por lo menos el hombre, debe retornar a su principio, que es el Uno” (FRAILE, 1965, p. 722).
Como se pode perceber claramente, a importância de Plotino, é a importância de quem realizou uma verdadeira “re-fundação da metafísica clássica, desenvolvendo posições que são novas em relação a Platão e Aristóteles” (REALE, 1990, p. 340).
CAPÍTULO I
PROCESSÃO E CONVERSÃO
A filosofia plotiniana tem como seu centro e sua base o uno (to en - to em). O Uno está para além de todo ser, de toda essência, de toda limitação e de toda determinação. Assim “El Uno es el principio supremo, la fuente primordial (phgh - pêgê) de la cual se deriva toda la pluralidad de los seres, por una procesión (proodoz - próodos) necesaria y eterna” (FRAILE, 1965, p. 723).
Embora o centro do plotinismo seja o Uno, seu sistema é dialético, na medida em que é composto de dois aspectos, o primeiro descendente e o segundo ascendente.
A ação do Uno não é uma ação Ad extra. Para Plotino não há uma obra exterior ao agente. O Uno consegue se propagar, sem contudo, sair de si mesmo. Ele se desdobra mesmo permanecendo o princípio deste desdobramento. Por causa desta linguagem hermética e mística, muitos autores falarão em “emanação” e outros, como Zeller vão qualificar “el platonismo de panteísmo dinamista” (FRAILE, 1965, p. 723). Sabemos que os autores que interpretam Plotino no sentido emanentista são Cousin, Vacherot e J. Simon. Mas, em um ponto todos eles concordam: a criação não será ex nihilo.
Normalmente a processão é entendida como “o curso pelo qual as coisas, e inicialmente as inteligíveis, nascem do Uno”. (...) “A processão se opõe o movimento inverso de conversão (epistrofh - étistrofê). Mas essa oposição não deve ser entendida no sentido de uma relação mecânica de inversão entre um ir e voltar ou uma descida e uma subida... Deve-se antes se representar a conversão como o ato pelo qual o fluxo se recolhe, ‘se lembra’ de sua fonte” (AUBENQUE, 1981, p. 203). A conversão faz parte da processão, e a constitui.
Há em Plotino três níveis nesta condição, e estes níveis são chamados por ele de hipóstasis árquica ou realidade suprema: o Uno, o Espírito e a Alma.
CAPÍTULO II
A ESSÊNCIA DA ALMA
(Enéada IV,1,2)
Este segundo capítulo do trabalho se baseará, fundamentalmente, no texto do comentário da Enéada IV, 1,2, conforme a tradução feita do grego pelo Padre Ismael Quiles. Estamos, pois tratando do que Plotino chama de a Alma, a beleza e a contemplação.
A primeira parte da quarta Enéada, se inicia com uma série de afirmações a respeito da “inteligência” e da alma. Fala-se de um “mundo inteligível” onde o verdadeiro ser existe. A melhor parte desse verdadeiro ser é a inteligência. As almas, contudo, também são parte deste verdadeiro ser, pois é de lá – do mundo inteligível – que elas se nos veem. Naquele mundo as almas estão sem corpos. Lá a inteligência existe em um todo, sem se dividir nem se distribuir em partes; ali a alma também está indivisa e sem partes, embora em sua natureza haja o poder e a capacidade de se dividir. Mas o que seria essa divisão? Esta divisão seria o seu “distanciamento” do mundo inteligível, portanto, sua corporificação. “Diz-se com razão que ela é divisível nos corpos, porque ela se distancia assim e se divide”, assevera Plotino, citando o Timeu.
Ao mesmo tempo em que fala “daquele mundo”, Plotino também se refere ao “nosso” mundo. Um lugar distante do mundo inteligível, e por isso mesmo um lugar onde as almas se dividem. Não obstante “Todas as almas existem num mundo único, onde não há distância local”.
Como, pois, pode a alma permanecer indivisível? Plotino responde, afirmando que “uma parte dela” continua ligada ao mundo inteligível. O fato, pois, de ela não está separada toda inteira lhe garante a unidade na diversidade. Plotino vai fazer citação de uma frase de Platão: “A alma está feita de uma essência indivisível e de uma essência dividida nos corpos”, para depois interpretá-la afirmando ser a alma feita por duas essências: uma “que permanece lá em cima” e outra que lhe é dependente “mas que emana até aqui como um raio que parte do centro”.
Na segunda parte da Enéada quatro, Plotino faz algumas considerações negativas a respeito da essência da alma. Primeiro se diz que ela não é um corpo. Em seguida, que ela não é uma inteligência. A resposta que mais se aproxima – embora se deva ir mais longe – é que a alma é de natureza inteligível e que é uma parte da divindade. As coisas estão divididas para Plotino entre sensíveis e inteligíveis. Não há dúvida, para ele, que a alma faz parte do mundo inteligível.
Para Plotino, há coisas que estão, por natureza, divididas e desagregadas desde um princípio. Outras (essências) não admitem nenhuma divisão. Estas encontram-se “Através de todos os seres ao mesmo tempo... porque as outras coisas não podem nem querem estar sem ela”.
Plotino fala de um ponto comum a todas as coisas. O centro deum círculo de onde saem raios – que embora nasçam dele mesmo e participem do seu ser, deixam-no imóveis em seu mesmo ponto. Os raios tendem para fora ao mesmo tempo que permanecem unidos no centro.
Nosso autor usa essa metáfora para afirmar a existência de um “primeiro indivisível” que exerce domínio sobre todos os inteligíveis e sobre todas as verdadeiras realidades; há também, o que Plotino chama de “outra essência” nas coisas sensíveis, sendo esta inteiramente dividida. Há, por último, junto e no sensível, outra natureza, que embora não esteja fragmentada em seu primórdio, se divide quando chega aos corpos.
Assim como os corpos estão divididos, a forma que está neles também se divide. Ela porém, está toda inteira em cada uma das partes. Além disso, ao lado da “essência inteiramente indivisível”, há também uma essência que dela deriva. Esta essência “participa da indivisibilidade da essência indivisível”. Esta essência é, entretanto, “intermediária” entre a “essência indivisível primeira” e a essência que se divide nos corpos e que está neles.
Esta essência, está junta à essência indivisível, mas “vem aos corpos e se divide neles acidentalmente”. Relembra, no entanto, Plotino que “esta divisão não é uma propriedade que ela tinha antes de comunicar-se aos corpos”. Esta natureza, que Plotino chama de alma, é divisível porque está em cada parte do corpo em que se encontra e é indivisível porque está toda inteira em todas as partes, e em qualquer parte do corpo. Quem conseguir entender isto conhecerá, afirma nosso filósofo, “a grandeza e o poder da alma”.
Na segunda parte da 4ª Enéada, Plotino resume o que afirmara até aqui, dizendo ser necessário que a alma seja, a um só tempo, puramente divisível e puramente indivisível. Plotino rebate a argumentação de alguns estóicos e volta a afirmar ser “necessário que a alma seja uma e múltipla”. Para Plotino, não admitir que uma mesma coisa possa estar em muitos lugares é a mesma coisa que não admitir que um “ser sustenta e dirige todas as coisas, que as sustenta abraçando-as todas e que as dirige com sabedoria”; um ser múltiplo, porque as coisas são múltiplas, mas que é Uno porque o ser que o contém todo deve ser Uno.
No final, Plotino volta a citar o “enigma” de Platão e a interpretá-lo afirmando que “a alma é uma e múltipla; e inversamente as formas que estão nos corpos são múltiplas e uma. Os corpos não têm senão multiplicidade; o princípio supremo não tem senão unidade”.
CAPÍTULO III
DIFICULDADES RELATIVAS À ALMA
(Enéada IV,5)
No início da quinta parte da quarta Enéada, Plotino apresenta uma proposta de estudo que servirá de epígrafe deste capítulo: “Será acertado dedicar a atenção às dificuldades da alma”. Plotino propõe este estudo incentivado por dois fatos. Primeiro este estudo nos dará um conhecimento das “coisas das quais a alma é o princípio e daquelas de onde procedem”. Depois, porque se queremos alcançar “esta contemplação, que é o objeto do nosso amor, é justo que investiguemos o que é o ser que faz esta investigação”.
Segundo o Dr. Ismael Quiles, “o problema que Plotino deseja resolver a fundo é o seguinte: como procedem as almas da alma universal?” (QUILES, 1981, p. 38).
São duas as respostas estudadas por Plotino nesta Enéada. Há, em primeiro lugar aqueles que “pretendem que nossas almas provém da alma do universo”. Os argumentos usados foram três: o que afirma que a nossa alma atinge as mesmas que a alma do universo; o que afirma haver o mesmo tipo de atividade intelectual em ambas as almas; e o argumento da autoridade de Platão.
Nesta primeira resposta há uma homogeneidade das almas individuais como o universo. Afirmar isso seria o mesmo que dizer que a alma “é a um só tempo, uma alma única e cada uma das almas”.
A esta altura, Plotino gasta muito tempo examinando a noção de “parte” de um todo, com a intensão de evitar mal entendidos com a linguagem.
Supondo que as almas são semelhantes e completas, segue-se “que a alma universal não está dividida à maneira de uma magnitude”. Fragmentar a alma em partes seria o mesmo que destruí-la.
No arremate de sua exposição, ele lança mão do exemplo da ciência. Nos diz Plotino que a ciência subsiste apesar da divisão em teoremas. Esta divisão “não consiste mais que em anunciar e atualizar cada uma das partes”. Cada teorema conteria, em potência, a ciência total, e a ciência total nem por isso deixa de existir. Se o mesmo ocorre com a alma total e as almas parciais, a alma total, que tem tais partes, não será a alma de tal ou qual coisa, e existirá só em si mesma; não será, pois, a alma do mundo, mas apenas mais uma alma parcial. Como pois, uma delas seria a alma do mundo e as outras partes do mundo? Não há respostas!
A segunda resposta apresentada por Plotino é a que afirma que a alma se divide em partes para produzir almas particulares. Para Plotino, os que fazem essa afirmação são os mesmos que “admitem que nenhuma alma se encontra fora de um corpo, ou bem que toda alma está em um corpo”.
Para rebater esta ideia, Plotino faz uso da figura do corpo e dos seus órgãos. Assim, “Se a ala do universo se dá a todos os animais particulares, como a alma individual a cada parte do animal, e se cada alma é nesse sentido uma parte, notemos que se se dividisse não se daria a cada animal. Deverá, pois, ser sempre a mesma, sempre inteira e uma, encontrando-se ao mesmo tempo em muitos seres simultaneamente”. Plotino vai se inclinar para a tese de que as almas particulares se distinguem da alma universal, mas não são partes dela. Embora procedam dela, dependem dela e continuam unidas a ela.
A seção final da Quinta parte será gasta discutindo a hierarquia das almas (que seria maior ou menor à medida em que se aproxima do mundo inteligível), a forma de como “as almas vem do corpo” (saindo de um para o outro ou entrando pela primeira vez num) e a relação de intimidade que a alma proporciona entre as coisas materiais e a inteligência: “é pois, impossível que algo haja que deixe de participar desta divindade”.
CONCLUSÃO
Muito do que esperávamos encontrar nestas seções da Enéada, não encontrei – particularmente sobre transmigração e retorno das almas ao Uno. No entanto, compreendo que li apenas partes selecionadas da 4ª Enéada, o que é muito pouco frente a enorme produção de Plotino.
Esta pequena leitura, contudo, já foi o suficiente para nos fazer entender que não há lógica na mística, já que ela é produto de um “encontro” (com Deus?) que não pode ser expresso na logicidade ocidental.
Mas talvez esta seja a explicação deste (ressacralização) redescobrir místico no ocidente. A logicidade ocidental está em crise e novos padrões estão sendo buscados no passado e em outras culturas. A mística, que procura entender a realidade inteligível aquém ou além da nossa realidade, talvez seja a única forma de “dar” uma explicação ou uma satisfação ao mundo que nos rodeia hodiernamente.
Referências bibliográficas:
AUBENQUE, P. História da filosofia: ideias e doutrinas. Vol I. Rio de Janeiro: Zahar, 1981
FRAILE. G. Historia de la filosofia I. Madri. La editora católica, 1965
QUILES, Ismael. A alma, a beleza e a contemplação. São Paulo: Associação Palas Athenas Centro, 1981
REALE, Giovanni. História da filosofia. Vol I. São Paulo: Paulinas, 1990
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