
Padre Jorge Aquino.
O tema do matrimônio misto não é um tema simples. Primeiro porque ele trata de um sentimento extremamente profundo e arraigado no coração de duas pessoas que praticam religiões diferentes. Em segundo lugar, porque, em geral, as famílias envolvidas – quer queiramos ou não – acabam por se imiscuir no assunto e, via de regra, alguém tem sua convicção desconsiderada e acaba se sentindo desprezada. Finalmente, porque, inquestionavelmente, o matrimônio misto exigirá, dependendo do grau de envolvimento religioso do casal, muito mais diálogo e capacidade de ceder do que aqueles casais que se casam dentro da mesma fé. Neste texto pretendemos examinar como cada tradição cristã, mais comum no Brasil, trata desse assunto. Privilegiaremos, portanto, os Evangélicos, os Romanos e os Anglicanos.
1. Os evangélicos
Em que pese a miríade de denominações evangélicas no mundo, a posição histórica das igrejas evangélicas tem sido a mesma: eles são, em geral, contra. Augusto Bello, por exemplo, nos diz que “O apóstolo Paulo, mostra implicitamente com quem o crente deve casar-se, em sua segunda carta a Igreja de Coríntios (II Cor 6:14). Para um crente e um incrédulo trabalharem juntos a fim de alcançarem um determinado alvo, seria como colocar juntos dois tipos opostos de animais, sob um único jugo, para ararem a terra (Deuteronômio 22:10). O boi é lento e o jumento rápido. Um quer ir por um caminho e o outro por outro caminho. No caso do jugo desigual entre o crente e o descrente, um vai estar preocupado com as coisas espirituais e o outro com as coisas materiais. Um vai em busca das coisas eternas na direção do céu e o outro nas coisas passageiras do mundo”. (sic) (BELLO, Augusto. Disponível em <http://solascriptura-tt.org/VidaDosCrentes/VidaAmorosa/CasamentoMisto-ABelloSFilho.htm> acessado em 03 de julho de 2017). Este é o pecado geralmente conhecido como pecado do “jugo desigual”.
Esta é a mesma posição assumida por Renato Vargens, que em seu Blog, nos diz: “Eu poderia enumerar inúmeras razões porque não concordo com o namoro entre cristãos e não cristãos, mas, vou citar somente uma: A Bíblia, a Palavra de Deus não recomenda. (...) Para muitos deles não existe o menor problema em namorar um não cristão. Entretanto, o que talvez eles desconheçam é o ensino bíblico de que não devemos nos colocar em jugo desigual com os incrédulos (II Co 6.14). ‘Não vos prendais a um jugo desigual com os infiéis; porque, que sociedade tem a justiça com a injustiça? E que comunhão tem a luz com as trevas? E que concórdia há entre Cristo e Belial? Ou que parte tem o fiel com o infiel?’ (VARGENS, Disponível em <http://renatovargens.blogspot.com.br/2012/07/razoes-porque-eu-nao-concordo-com-o.html> acessado em 03 de julho de 2017).
Finalmente, para não me tornar exaustivo, cito a manifestação do conhecido pastor Silas Malafaia quando chama esta atitude de “pecado” e apresenta como exemplo a figura de Salomão. Assim ele se expressa: “É evidente que a Bíblia nos revela os erros de Salomão não para serem seguidos, mas exatamente como um preventivo para que não incorramos neles; ao nos mostrar os efeitos danosos que sobrevieram ao povo de Israel [a idolatria, p. ex.], mas para o próprio Salomão, que também se tornou idólatra, e queimou incenso para outros ‘deuses’, e teve o seu reino dividido, ainda que Deus o poupasse desse desgosto, por amor ao seu pai Davi; mas assegurando-lhe de que sob o reinado do seu filho Roboão, Israel se esfacelaria. (...) Quem age deliberadamente assim não comente nada além do que pecado! E o pecado é o desprezo ao próprio Deus” (MALAFAIA. Disponível em <https://www.facebook.com/Pr.SilasMalafaia/posts/667432770077396> acessado em 03 de julho de 2017).
É verdade que algumas igrejas evangélicas até realizam o casamento misto, mas mesmo nelas, este gesto não é incentivado nem aceito com normalidade.
2. Os Católicos Romanos
O pensamento da igreja Romana está exposto em seu Código de Direito Canônico e é bastante claro. O pensamento romano sobre o assunto pode ser visto de forma resumida, por exemplo, no Guia Ecumênico da CNBB (1984, p. 186) que assim se pronuncia: “entende-se por matrimônio misto o casamento entre um cônjuge católico e outro não-católico, que este esteja batizado que não”. Existe, portanto, duas posições aqui. A) O matrimônio entre um católico batizado e um não-católico validamente batizado, e B) o matrimônio entre um católico batizado e um não-católico não batizado.
Para os Romanos, aqueles que se casam com pessoas oriundas de igrejas cujo batismo é reconhecido e o matrimônio é visto como sacramento, embora esteja fora da comunhão com Roma, são validamente aceitos, mas precisa de uma licença do Bispo. Vejamos o que diz o Código de Direito Canônico Romano em seu Cânon 1124: “O matrimônio entre duas pessoas batizadas, das quais uma tenha sido batizada na Igreja católica ou nela recebida depois do batismo, e que não tenha dela saído por ato formal, e outra pertencente a uma Igreja ou comunidade eclesial que não esteja em plena comunhão com a Igreja católica, é proibida sem a licença expressa da autoridade competente”. E quem é essa autoridade? O Bispo Diocesano, também chamado de Ordinário local.
Esta licença, contudo, só será dada com as seguintes condições apresentadas no Cânon 1632. Elas são em número de três: a) a parte católica se comprometer a fazer tudo o que puder para criar, educar e batizar a prole na igreja católica; b) informe esse compromisso à outra parte e este concorde com a condição; c) ambas as partes sejam instruídas sobre os fins e a natureza essencial do matrimônio.
Ademais, para matrimônio envolvendo uma parte católica e outra não-católica, a forma canônica é requerida para a validade. “Por isso a regra geral é que sejam contraídos perante o Ordinário [Bispo] do lugar, ou o Pároco, ou um delegado de um dos dois, e duas testemunhas” (1984, p. 191). Do mesmo modo, “não se faça uma celebração religiosa em que o assistente católico e o ministro não-católico, executando cada qual seu próprio rito, solicitam o consentimento das partes” (Cânon 1127 §§ 1 e 3). No entanto, o Diretório para a aplicação dos princípios e normas sobre o ecumenismo já prevê que, no número 158: “Se for solicitado pelo casal, o Ordinário do lugar pode permitir que o padre católico convide o ministro da Igreja ou da Comunidade Eclesial da parte não católica a participar na celebração do casamento, fazer uma leitura bíblica, fazer uma breve exortação e abençoar o casal” (2004, p. 131).
Quanto à forma, a igreja Romana entende que antes ou depois de celebrado o matrimônio no rito Romano “proíbe-se outra celebração religiosa desse matrimônio para prestar ou renovar o consentimento matrimonial” (Cânon 1127 §§ 1 e 3). No entanto, permite-se que o rito do matrimônio seja efetuado fora da liturgia eucarística (Missa), uma vez que a presença de pessoas não-católicas podem se sentir desconfortáveis com o rito da missa. A comunhão, contudo, por razões óbvias, não será dada à parte não-católica. Mesmo em se tratando da união entre um católico e um não-católico, devemos lembrar o que ensina Roman (2010, p. 14): “Todos os casamentos válidos, entre batizados, são de caráter sacramental. Também os celebrados entre dois batizados que não são católicos, se o fazem validamente de acordo com suas leis, é sacramento”.
Até aqui tratamos do caso em que tanto a parte católica quanto a parte não-católica são batizados. No caso em que apenas a parte católica é batizada e a outra não o é, assim se expressa o Direito Canônico da igreja Romana: “É inválido o matrimônio entre duas pessoas, uma das quais tenha sido batizada na Igreja Católica ou nela recebida e que não tenha abandonado por ato formal, e outra não batizada” (Cânon 1086 §1). Este é o caso, diz Ernesto Roman, de um casamento “realizado, por exemplo, entre uma pessoa católica e outra judia, maometana, budista etc., que não foi batizada” (ROMAN, 2010, p. 27). Em outras palavras, um matrimônio entre um católico e alguém que não seja cristão (por não ter sido batizado ou por ter rompido com o cristianismo) é, por natureza, inválido.
3. Os Anglicanos
Os anglicanos não são tão presos a aspectos jurídicos quanto os Romanos. A regra geral é que não sejam realizados casamentos entre pessoas que não são batizadas. No entanto, se uma delas não for, as diversas Igrejas Anglicanas espalhadas pelo mundo, entendem que é preciso pedir permissão ao bispo. O mesmo ocorre no caso de casamentos entre um cristão e uma pessoa não-cristã. Com essa permissão o casamento se realizará.
Somos cientes que o matrimônio entre pessoas que confessam fés distintas pode gerar dificuldades tanto para a fé de cada um, como para a harmonia do casal bem como para a criação dos filhos. No entanto, entre os Anglicanos geralmente se exige apenas que um dos cônjuges seja cristão legitimamente batizado, ou seja, com água e em nome da Santíssima Trindade para que este tipo de casamento seja realizado.
Contudo, antes da cerimônia é adequado que os ministros instruam os cônjuges sobre o valor e a natureza do matrimônio. Ademais os ministros devem valorizar o fato de que Deus é maior do que as estruturas religiosas; devem valorizar o amor que uniu duas pessoas tão diferentes em tantos aspectos valiosos para elas; e, acima de tudo, devem valorizar a união dos dois como uma expressão concreta de diálogo e inclusão que deve servir de exemplo em uma sociedade que cada vez mais é exclusivista e intolerante para com o diferente.
Pessoalmente já celebrei matrimônios entre cristãos católicos e adventistas, batistas, pentecostais, mórmons e até mesmo com judeus e muçulmanos. Nunca tive dificuldades com meu bispo em nenhuma circunstância no que diz respeito a esse assunto. Outra coisa importante, não acredito que o momento do matrimônio seja o mais adequado para se falar de religião ou da doutrina de ninguém, mas do amor e do companheirismo e, acima de tudo, das bênçãos que uma união como essa pode trazer para ambos e para os filhos que virão dessa relação. Em outras palavras, em um matrimônio, principalmente um matrimônio misto, há de se ter muito cuidado com quem convidaremos para ser o celebrante da cerimônia, por que ele poderá ser o diferencial entre uma cerimônia agradável e feliz e uma terrivelmente chata e desagradável.
Referência bibliográfica
CNBB, Guia ecumênico. São Paulo: Paulinas, 1984
CONSELHO PONTIFÍCIO PARA A PROMOÇÃO DA UNIDADE DOS CRISTÃOS. Diretório para a aplicação dos princípios e normas sobre o ecumenismo. São Paulo: Paulinas, 2004
LOURENÇO, Luiz Gonzaga. Código de Direito Canônico em verbetes. Santos: Leopoldianum, 2001
LOURENÇO, Luiz Gonzaga. Direito Canônico em perguntas e respostas. Santos/São Paulo: Leopoldianum/Loyola, 2010
ROMAN, Ernesto N. Nulidade Matrimonial. São Paulo: Paulus, 2010
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